Após sofrer sua primeira derrota na Câmara dos Deputados há duas semanas com a suspensão do decreto presidencial sobre a Lei de Acesso à Informação, o governo de Jair Bolsonaro já tem marcado um novo teste de força para sua ainda incerta base aliada. A Medida Provisória (MP) 870, que reduziu o número de ministérios, já recebeu 539 emendas. E, na avaliação de líderes partidários, será um desafio manter a estrutura da Esplanada da forma que foi pensada pelo Palácio do Planalto.
As emendas contestam a extinção do Ministério do Trabalho e o da Cultura, o monitoramento de ONGs, a transferência da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, entre outras questões. A MP, apresentada no primeiro dia do novo governo, precisa ser votada até junho, mas ganhará caráter de urgência a partir do dia 22.
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Com a medida, o número de ministérios caiu de 29 para 22 e alguns órgãos foram transferidos de pasta, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que passou a ser vinculado ao Ministério da Justiça – antes, estava atrelado ao extinto Ministério da Fazenda.
Uma comissão já foi criada para analisar as mudanças propostas, mas os partidos ainda não indicaram todos os integrantes. Após passar pelo colegiado, a proposta ainda precisará ser votada separadamente na Câmara e no Senado.
Governistas temem “consequências graves” de eventual derrota
Para governistas, uma eventual derrota na votação da MP teria “consequências muito graves”. Ministérios que foram extintos teriam de ser recriados, os servidores remanejados e até os letreiros da Esplanada dos Ministérios teriam de ser refeitos.
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Autor de 21 emendas e membro da comissão, o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) disse acreditar que a tramitação da medida provisória será “a primeira prova de fogo” para a recém-escolhida líder do governo no Congresso, a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP). Para o emedebista, a falta de uma base definida do governo torna a aprovação da medida um desafio. Embora defenda a redução na quantidade de ministérios, ele também protocolou emendas à MP, entre elas uma que prevê a definição de um número máximo de embaixadas brasileiras no exterior.
Até aliados de Bolsonaro querem mudar a MP
A maioria das mudanças propostas na MP partiu da oposição. O PT pediu 221 alterações e o PSol, 114. No entanto, há também nove propostas do próprio partido de Bolsonaro, o PSL, além de siglas que podem vir a compor a base aliada, como PRB e DEM.
O senador Major Olímpio (PSL-SP) é o autor de quatro emendas. Ele defende a recriação de um ministério apenas para tratar de segurança pública, separado da pasta da Justiça de Sergio Moro. “As emendas que apresentei são para o aperfeiçoamento da medida e acho natural que apareçam múltiplas emendas neste começo de governo”, afirmou Olímpio. “Nós da bancada da bala entendemos que a segurança pública deve ser apartada do ministério da Justiça”, diz.
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O senador, no entanto, não acredita que a quantidade de emendas apresentadas até agora atrase a tramitação da MP. “Vai ser feito um trabalho de triagem pela relatoria. Não vejo um número astronômico em função disso. É que a MP mexeu com a estrutura de muitas áreas diferentes”, afirma Olímpio.
A oposição aposta que a medida provisória só será aprovada com alterações significativas. “Acho difícil que a medida seja aprovada sem mudanças importantes, principalmente na questão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da demarcações de terras indígenas e também na extinção de ministérios como o da Cultura”, diz o líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ).
PGR também quer mudanças na questão indígena e agrária
Além de deputados e senadores, procuradores da República também querem mudanças na MP. Em nota técnica que passou a ser distribuída aos procuradores da República e parlamentares nesta quinta-feira (7), a 6.ª Câmara da Procuradoria Geral da República (PGR) considera a medida provisória é inconstitucional e cria “conflito entre interesses indígenas e política agrícola da União”.
O Ministério Público Federal (MPF) ataca a decisão, contida na medida, de transferir da Funai para o Ministério da Agricultura a competência de localizar, identificar e demarcar terras indígenas no país, assim como a transferência da Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
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A nota técnica, assinada pelo subprocurador-geral da República e coordenador da 6.ª Câmara, Antonio Carlos Alpino Bigonha, pode ser usada como baliza para a ação de procuradores da República em todo o país e vai subsidiar parlamentares no momento da análise da MP. A 6.ª Câmara é responsável, na PGR, pela coordenação e revisão de assuntos relativos às populações indígenas e comunidades tradicionais.
Para Bigonha, a subordinação de assunto de grande interesse indígena, como a demarcação de terras, à pasta que cuida da Agricultura fere a Constituição. “A Constituição de 1988 deu um passo não integracionista do indígena ao separar o interesse agrícola da política indigenista. A medida provisória coloca as duas questões sob o mesmo guarda-chuva. É inconstitucional porque onde o constituinte distinguiu, o legislador não pode estabelecer uma igualdade”, afirma Bigonha.
Na nota, Bigonha escreveu que a perspectiva integracionista do índio (de integração dele à sociedade branca) “tornou-se incompatível” com a Constituição de 1988 quando ela estabeleceu o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos indígenas. Ao mesmo tempo, “reconheceu a legitimidade das próprias atividades produtivas indígenas, reservando-lhes o direito à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar”.
A nota técnica do MPF diz que a passagem de atribuições da Funai para o Ministério da Agricultura “operou a repristinação [restauração] da velha política integracionista do direito antigo e obrigado os índios e suas comunidades a um falso tratamento isonômico em relação aos demais atores da sociedade brasileira”.
O paracer também critica a transferência da Funai ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela pastora evangélica Damares Alves. “A subordinação da Funai ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos infirma [enfraquece] a diversidade preconizada pelo Constituinte e faz letra morta a Norma Maior, pois parte do pressuposto de que os valores dessas comunidades compõem um mero subsistema da ordem social geral e não um sistema próprio, indígena, tal como previsto na Carta Política. Nesse sentido, como já afirmou o STF, quando voltada aos povos indígenas, a aplicação dos direitos humanos pressupõe o respeito à sua organização social, seus usos, costumes e tradições, garantindo-se sua diversidade cultural, a ser considerada, junto às suas histórias e anseios, pela educação pública”, diz a nota técnica.
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