O setor público no Brasil, ao longo de décadas, criou um mundo ideal para o funcionalismo. Em todas as esferas de poder, é ali que se concentram bons salários, com estabilidade e benefícios que vão do vale-fruta ao auxílio-moradia. É a “utopia burocrática”, como descreveu de maneira pertinente uma reportagem recente da Bloomberg. A redoma que protege o funcionalismo no Brasil virou notícia internacional.
A maior crise econômica da história brasileira fez com que os governos perdessem receita e tivessem de repensar sua estrutura funcional. Esse é ainda um processo incipiente, com uma ou outra ação difusa por estados e municípios, e uma tentativa um pouco mais ampla de re-estruturação da União. Pouco se escuta do Judiciário e do Legislativo, fortificações de benefícios instaladas nas ilhas de prosperidade do funcionalismo.
Que fique claro, o problema não está nos funcionários públicos, que viram na combinação de bons salários e estabilidade uma oportunidade de carreira. O erro está na construção paulatina de um mundo à parte, com regras e benefícios que destoam da vida da maioria dos brasileiros, patrocinada pela combinação de conforto de governantes, pressão de sindicatos e a instalação na máquina pública de uma burocratocracia. Governantes precisam dos técnicos e burocratas para fazer a coisa andar, e são esses funcionários que estão aptos a montar os grandes planos que todo governo gosta de ter na vitrine.
Essa simbiose é completada pelo uso político da distribuição de cargos. Na União, são cerca de 20 mil indicações políticas, embaralhadas, cortadas e distribuídas de acordo com a composição da sopa de letrinhas partidária do governo de plantão. As cartas passam de mão em mão a cada votação importante no Congresso e servem como moeda de troca – neste momento, o presidente Michel Temer pune, com a demissão de indicados, alguns dos deputados que votaram contra ele na denúncia enterrada pela Câmara na semana passada.
Uma reforma profunda do funcionalismo traria dois ganhos ao país. Um é fiscal. Tratar os funcionários como outros trabalhadores, com salários e benefícios adequados à realidade do mercado, traria economia. Ao mesmo tempo, as mudanças deveriam reduzir o poder de indicação política e aumentar a cobrança por eficiência da máquina pública. Os grandes planos da tecnocracia não entregam o que prometem e talvez devessem ser reduzidos em complexidade e objetivo: o mais simples para entregar o melhor serviço possível.
Hoje, as pessoas empregadas no setor público ganham em média R$ 3.272, contra os R$ 2.035 pagos pela iniciativa privada a quem tem carteira assinada, segundo o IBGE. Lembrando que a média do setor público inclui municípios, que geralmente têm salários mais baixos e contam com um número maior de pessoas em funções mais simples. Entre os servidores federais, os salários são bem mais altos. Cerca de 70% deles ganham mais de R$ 5,5 mil. O salário inicial médio das carreiras da União é de pouco mais de R$ 6 mil. Não é à toa que Brasília tem a renda per capita mais alta do país.
Há ainda outras discrepâncias difíceis de explicar. No Judiciário, por exemplo, são comuns os casos de juízes que ultrapassam, e muito, o teto salarial do funcionalismo. Benefícios como o auxílio-moradia não são atingidos pelo teto. Assim, os penduricalhos salariais vão se acumulando e o teto se tornou uma ficção no país. É algo que está espalhado por todos os estados do país. No Legislativo, a situação é semelhante: salários altos e benefícios que fazem os servidores da União reclamarem dos baixos salários. A média salarial no Legislativo federal é de pouco mais de R$ 16 mil.
É nesse cenário que o governo federal decidiu mandar para o Congresso medidas de contenção. Uma delas segura o reajuste do funcionalismo já negociado para o ano que vem. É uma proposta que não existiria se Temer não tivesse cedido nas primeiras votações do Congresso que ocorreram em seu governo – na época, com o orçamento já deteriorado, o governo não viu problema na aprovação dos aumentos.
Além disso, foi elevada a alíquota de contribuição previdenciária para os salários acima do teto do INSS. A medida reduz o déficit previdenciário do funcionalismo, proporcionalmente maior do que o dos trabalhadores da iniciativa privada, onde não existe aposentadoria com salário integral nem reajuste igual a quem está na ativa.
Para a reforma do funcionalismo ser completa, o Congresso tem de ir além da aprovação dessas duas medidas provisórias. Tramitam alguns projetos que o governo gostaria de ver aprovados, em especial o que faz o teto do STF valer de verdade para todos os rendimentos dos servidores públicos, e outros que regulam a demissão dos funcionários com baixo rendimento. Hoje, a lei já prevê essa possibilidade, mas os textos em tramitação tornam a demissão mais clara e fácil.
Ainda faltam outras peças, como uma revisão ampla das carreiras em todas as esferas para que elas sejam mais verticais, como ocorre na iniciativa privada. Mais degraus na carreira, combinados com um sistema de metas e meritocracia pode melhorar o serviço final prestado ao cidadão. Os governos também poderiam ter mais flexibilidade para contratos temporários, que engessam menos o orçamento e permitem a realização de projetos mais curtos.
O grande problema vai ser aprovar tudo isso. As medidas provisórias enviadas ao Congresso vão sofrer resistência dos grupos de pressão dos funcionários. O jogo é pesado – durante as discussões sobre a reforma da Previdência, policiais legislativos encostaram na parede o relator do texto, deputado Arthur Maia, literalmente. Houve quebra-quebra provocado por policiais e invasão da Câmara. MPs menos polêmicas já caducaram neste ano por falta de “clima político” no Congresso. Outros projetos de lei que estão na pauta podem ficar engavetados por tempo indeterminado. É cedo para comemorar.
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