Um acordo firmado entre a Petrobras, a força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba e o Departamento de Justiça norte-americano virou alvo de questionamentos de advogados, políticos e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O acordo prevê a criação de uma fundação tutelada pelo MPF para gerir um recurso bilionário pago pela petrolífera brasileira em uma ação na qual figura como ré nos Estados Unidos.
A Justiça norte-americana concordou que 80% do valor devido pela Petrobras no processo seja pago no Brasil. O valor, de R$ 2,5 bilhões, foi depositado em uma conta vinculada à Justiça Federal em Curitiba. Pelo acordo entre a estatal e o MPF, homologado pela juíza da Lava Jato Gabriela Hardt, metade desse valor (R$ 1,2 bilhão) será usado para pagar eventuais indenizações a societários da estatal que questionam os prejuízos na Justiça.
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A polêmica, porém, está na outra metade. O restante do dinheiro – outros R$ 1,2 bilhão – será empregado em projetos sociais e programas de combate à corrupção a serem definidos pela fundação.
Segundo o acordo, o dinheiro deve ser destinado “para investimento social em projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades e redes de entidades idôneas, educativas ou não, que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção”.
O Ministério Público Federal ficou responsável por constituir a fundação, que será privada, e pela redação da documentação estatutária, que deverá ser homologada pela Justiça Federal.
O MPF vai formar um Comitê de Curadoria Social (CCS), composto por cinco membros “com reputação ilibada e trajetória reconhecida em organizações da sociedade civil, no investimento social e/ou áreas temáticas cobertas na destinação desse recurso”, segundo o acordo.
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O acordo prevê ainda que o MPF e o Ministério Público do Paraná terão a prerrogativa de ocupar um assento cada no conselho de deliberação da fundação criada com o dinheiro da Petrobras.
Iniciativa gera críticas no Supremo
A iniciativa do MPF tem sido alvo de críticas de todos os lados. O PT já anunciou que vai entrar com uma ação no Supremo questionando o acordo para a criação da fundação. O partido alega que o MPF não tem competência para definir o destino de recursos públicos e estaria entrando na atribuição do Executivo e do Legislativo.
No próprio STF, o caso não é visto com bons olhos. Para o ministro Marco Aurélio Mello, a destinação de recursos para uma fundação é ilegal. Ele afirmou ao jornal O Estado de São Paulo que a responsabilidade de “administrar” o cofre público é do Executivo, não de magistrados ou procuradores. “Quem somos nós para administrar o cofre da União? A destinação ocorre sob o ângulo político das necessidades momentâneas, não cabe ao Judiciário definir se vai para ministério X ou Y. Não cabe. Nunca coube”, declarou.
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“A mesclagem do público com o privado não interessa ao Estado, não interessa à sociedade. É pernicioso fazendo surgir 'super órgãos', inviabilizando o controle fiscal financeiro. É a perda de parâmetros, é o descontrole, é a bagunça administrativa. É a Babel”, disse ainda ao portal UOL.
Para o doutor em Direito do Estado, Bernardo Strobel Guimarães, ao criar a fundação, o MPF está usando uma técnica jurídica que não tem amparo na legislação brasileira. “É algo que não tem previsão na nossa ordem jurídica que o MP possa fazer isso, ele está criando algo novo. Em tese, ele não pode fazer isso”, disse.
Segundo o especialista, para fazer um acordo como esse, a Petrobras teria que ouvir o Conselho de Administração da estatal, o que não ocorreu. “Isso precisaria ter sido discutido e aprovado em assembleia”, reforça Guimarães.
Lula pede acesso a acordo bilionário
A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pediu acesso ao acordo entre a Petrobras e o Ministério Público Federal. Para os advogados, os procuradores estão “extrapolando suas funções constitucionais e legais ao buscarem constituir uma fundação com vultoso patrimônio oriundo de uma sociedade de economia mista e participar de sua administração”.
A defesa do petista também alega que, de acordo com a Constituição, os procuradores não têm atribuição para proporem a criação da fundação.
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Para Bernardo Guimarães, há ainda um conflito de interesses a partir do momento em que os procuradores têm uma cadeira no conselho da fundação. “O MPF pode fiscalizar a fundação, mas ter uma cadeira no conselho é uma atitude diferente. Não é atribuição do MP participar de uma fundação dessa natureza”, afirmou.
“A questão que fica é: será que eles [força-tarefa] não estão tentando se promover”, questiona Guimarães. “É muito dinheiro. o que você vai fazer de fato com esse dinheiro? Tem boas possibilidades de ser questionado”, opinou o advogado.
Tentativas anteriores
Em fevereiro, o relator da Lava Jato no STF, ministro Edson Fachin, negou pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) para que R$ 71,6 milhões recuperados através do acordo de colaboração do marqueteiro João Santana fossem destinados ao Ministério da Educação. Fachin alegou que o valor deve ser destinado à União e que ela é quem deve decidir como usar o dinheiro.
Em 2016, a força-tarefa da Lava Jato tentou usar parte do dinheiro recuperado com a colaboração premiada do ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, para criar um fundo de combate à corrupção. O relator da Lava Jato na época, ministro Teori Zavascki – morto em um acidente em 2017 –, negou o pedido dos procuradores. Ele argumentou que, por ser uma empresa de capital misto que foi lesada pelo esquema, a Petrobras deveria ficar com o valor recuperado.
No mesmo ano, os procuradores tentaram colocar cláusulas nos acordos de leniência com as empresas envolvidas na Lava Jato para ficar com cerca de 10% das multas aplicadas. Zavascki também barrou a medida.
Ministério Público rebate críticas e diz que não é beneficiário dos recursos
Em nota, a força-tarefa da Lava Jato se pronunciou sobre a polêmica envolvendo o acordo. O MPF afirmou “que os recursos serão geridos por uma fundação independente para destinação a iniciativas sociais, com ampla transparência e prestação de contas pública”.
“Os recursos a serem geridos por essa fundação serão destinados ao investimento social em projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades idôneas que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção, inclusive para a proteção e promoção de direitos fundamentais afetados pela corrupção, como os direitos à saúde, à educação e ao meio ambiente, entre outros. Apenas a própria fundação poderá avaliar os projetos e decidir quais serão contemplados. Não existe a previsão de destinação de recursos para o próprio Ministério Público, ou para quaisquer órgãos públicos”, diz a nota.
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Ainda segundo os procuradores, a fundação será criada e gerida por membros da sociedade civil “de reputação ilibada e reconhecida trajetória e experiência”. Até o final de abril, segundo o MPF, será formado o Comitê de Curadoria Social previsto no acordo para supervisionar a constituição da fundação e definir as regras de seu funcionamento.
O MPF informa ainda que está “obtendo uma seleção de nomes de diversas entidades, a fim de viabilizar a criação do Comitê de Curadoria Social. Em seguida, a fundação será constituída e definirá como ocorrerá sua gestão”. Até lá, os valores seguem depositados na Caixa Econômica Federal, em conta vinculada à Justiça Federal.
Para auxiliar a constituição da fundação, o MPF solicitou auxílio à Advocacia-Geral da União (AGU), à Controladoria-Geral da União (CGU) e ao Ministério Público do Estado do Paraná.
O MPF também pediu a indicação de nomes para composição do Comitê de Curadoria Social ao Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), à Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), à Transparência Internacional (TI), ao Observatório Social do Brasil, à Associação Contas Abertas, ao Instituto Ethos, à Amarribo, ao Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, ao Instituto Não Aceito Corrupção, ao Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e à Fundação Dom Cabral (FDC).
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