Você deve ter visto no WhatsApp ou no Facebook: o rombo da Previdência é uma farsa. Textos, gráficos e vídeos internet afora tentam provar que o governo manipulou números para, assim, acabar com a aposentadoria dos brasileiros e dar mais dinheiro a banqueiros e rentistas.
A tese não é nova. Surgiu no governo FHC, atravessou as gestões de Lula e Dilma e ganhou força inédita depois que Michel Temer apresentou sua proposta de reforma. A ideia é sedutora. Mais fácil de aceitar que o discurso de que, sem mudanças, ou vai faltar dinheiro para pagar aposentados e pensionistas, ou outras despesas públicas essenciais serão sacrificadas.
Mas, no fim das contas, o tal rombo da Previdência é ou não é uma falácia? A resposta varia conforme a fonte. O governo (e não só este, mas também os anteriores), o Tribunal de Contas da União (TCU) e grande parte dos especialistas no assunto garantem que o déficit existe, é gigantesco e crescente. Do outro lado, organizações sociais, sindicatos e advogados da área previdenciária adotam uma contabilidade alternativa para provar que, sim, o rombo é uma mentira. Este quadro explica a diferença entre os métodos de cálculo.
O debate ganhou novos contornos com a conclusão da CPI da Previdência no Senado, em outubro de 2017. O relatório final da comissão encampou a tese da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita (Anfip) e declarou com todas as letras que “é possível afirmar com convicção que inexiste déficit da Previdência Social ou da Seguridade Social”.
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Contraditoriamente, o mesmo relatório traz a informação de que, de acordo com a metodologia da própria Anfip, a Seguridade passou a ser deficitária em 2016, com um saldo negativo de R$ 57 bilhões. A entidade alega que isso é passageiro e só aconteceu por causa da crise, muito embora seu próprio cálculo revele que o resultado da Seguridade começou a declinar já em 2013 – ou seja, antes do início da recessão.
Essa discussão não terminará tão cedo. De todo modo, ela ignora o essencial: o problema do sistema previdenciário não é uma mera questão contábil. Se fosse, bastaria mudar rubricas de lugar – como reivindicam os que dizem que as contas estão no azul – e estaria tudo resolvido.
O verdadeiro problema é demográfico: como a Previdência vai lidar com a queda das taxas de natalidade (que reduzirá a força de trabalho) e o envelhecimento da população (que aumentará a quantidade de aposentados)? Esses fenômenos vão limitar as contribuições ao sistema previdenciário e multiplicar as despesas com aposentadorias e pensões – que já são maiores que as de países bem mais ricos e envelhecidos que o nosso.
Em outras palavras, mesmo que a “foto” ainda esteja mais ou menos boa, como alegam os que denunciam a suposta mentira do déficit, o “filme” não caminha para um final feliz.
Menos jovens, mais velhos
A transição demográfica tem óbvios aspectos positivos. Há mais brasileiros chegando à velhice, e idosos vivendo mais. Por outro lado, o número de pessoas em idade produtiva, que já cresce devagar, logo vai se estagnar e, em duas décadas, passará a cair.
Assim, haverá menos gente para sustentar a Previdência. Como o regime é de repartição simples, sem formação de poupança individual, o dinheiro de quem contribui é imediatamente gasto no pagamento dos aposentados.
Hoje existem 8,5 brasileiros em idade de trabalhar para cada idoso com 65 anos ou mais. Na Previdência a relação é muito mais apertada. No INSS, por exemplo, 54 milhões de contribuintes regulares bancam – com a ajuda do Tesouro, isto é, dos pagadores de impostos – cerca de 27 milhões de aposentadorias e pensões.
Mesmo jovem, o Brasil já destina 13% do PIB para pagar os benefícios do INSS e dos regimes de Previdência do setor público. Mais que países como Alemanha e Japão, cuja proporção de idosos é o triplo da brasileira. E essa despesa só vai subir.
Por volta de 2060, haverá pouco mais de duas pessoas em idade ativa (e ainda menos contribuintes) por idoso. Se as regras de acesso ao benefício continuarem as mesmas, dentro de algumas décadas perto de 20% das riquezas geradas pelo país serão destinadas à Previdência.
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Para fechar a conta, o governo terá de cobrar mais impostos do contribuinte ou, como já tem feito, tirar recursos de outras áreas. Em 2008, a União destinava 37% de sua receita para pagar as despesas do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e do Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a idosos e deficientes pobres. Em 2017, essas rubricas consumiram 53% da arrecadação.
Se incluída a Previdência dos servidores da União, o comprometimento do caixa se aproxima de 60%. Portanto, sobra cada vez menos dinheiro para os investimentos públicos e despesas essenciais, como saúde, educação e segurança.
BANDEIRAS JUSTAS
O economista Pedro Nery, consultor do Senado, observa que a tese de “mito do déficit” levanta bandeiras “inquestionavelmente justas”: a recuperação da dívida ativa do INSS, o combate à sonegação e a redução de desonerações e isenções. “Todas são medidas importantes e louváveis, mas certamente insuficientes perante o acentuado processo de envelhecimento da população”, apontou, em artigo sobre o tema.