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| Foto: REGINALDO CASTRO/AFP

Quando meu então chefe pediu para eu organizar uma viagem para a Itália em janeiro de 2011, para uma cobertura especial do caso Cesare Battisti, não contei a ele que achava o assunto muito chato. Eram muitos pareceres jurídicos, idas e vindas do governo brasileiro, intelectuais estrangeiros se intrometendo, demora do Supremo Tribunal Federal (STF) em se manifestar. Mas era um assunto crucial: no último dia de mandato, o ex-presidente Lula decidiu que não iria extraditar Battisti, causando revolta na Itália e no Brasil. Claro que minha disposição mudou com a perspectiva de passar uma semana na Europa. Mas confesso que, inicialmente, minha motivação não era puramente jornalística. Via a viagem como uma possibilidade de ir à desforra. Explico-me.

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A Gazeta do Povo queria ouvir o relato dos familiares dos mortos pelo grupo armado Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), crimes pelos quais Battisti foi condenado à prisão perpétua em 1988. Não só eles, como muitos italianos, e o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, protestaram veementemente contra a decisão de Lula. Na época, Battisti estava preso na Penitenciária da Papuda, em Brasília, e só seria solto pelo STF meses depois. Ele tinha sido detido em 2007, após uma ação da Polícia Federal em Copacabana.

Imaginava que havia exagero na reação, até porque era muito simples escolher um lado: se Berlusconi reclamava, eu apoiava; se ele era contra; eu era a favor. Não havia como apoiar esse político corrupto. Não só pelas notícias que lia na época sobre ele, mas por muitas coisas que presenciei quando morei na Itália, em 2005, época em que o então líder do partido Força Itália era o primeiro-ministro. Dessa minha experiência em terras italianas restaram também muitas mágoas, que contaminaram por vários anos minha relação com meus irmãos de sangue – tenho dupla cidadania. Em 2011, os italianos e italianas me pareciam todos machistas, preconceituosos e vingativos, tais como aqueles com que convivi anos antes.

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Então, quando comecei os contatos com os parentes das vítimas do PAC, imaginava que encontraria apoiadores de Berlusconi reclamando de Lula, o que não seria nenhuma novidade. Pretendia mostrar incongruências nos pedidos dos italianos, sedentos por algo que me parecia uma vendeta sem sentido. A defesa de Battisti era contundente: ele não tinha matado aquelas pessoas, e só foi incriminado pela delação premiada feita por um ex-companheiro de lutas, Pietro Mutti. Como tinha fugido da Itália ainda em 1981, foi julgado à revelia. Havia um advogado formalmente constituído, mas Battisti alegou que ele tinha procurações fraudadas, e que nunca teve chance real de se defender.

Nessa época, em meio a tantas críticas ao julgamento na Itália e à gestão de Berlusconi, não lembrava que Romano Prodi, líder da coalização de centro-esquerda que governava a Itália em 2007, havia comemorado a prisão de Battisti -- que vivia ilegalmente no Brasil, sem nenhum pedido de asilo. Por aqui ganhou terreno a versão dos defensores de Battisti, de que ele era perseguido pela direita italiana. Aliás, correu muita desinformação no país. Mas foi só quando ouvi as angústias dos italianos, sem mágoas, é que consegui entender isso. Italianos de diferentes idades, ideologias, preferências políticas e credos pediam a extradição de Battisti para ele cumprir sua pena na Itália. De forma mais contundente, os familiares dos quatro mortos ligados a Battisti: o joalheiro Alberto Torregiani; o agente penitenciário Antonio Santoro; o policial Andrea Campagna; e o açougueiro Lino Sabbadin.

Terror

Uma das versões propagadas, e que não faz nenhum sentido, é de que Battisti seria ainda hoje, em 2017, um “ativista”. Sim, há reportagens recentes, do início de outubro, falando que o “ativista italiano” teve a prisão preventiva decretada porque foi preso com 6 mil dólares e 3 mil euros perto da fronteira entre Mato Grosso do Sul e Bolívia. Na enciclopédia on-line Wikipedia, onde qualquer um pode editar os textos, ele também é descrito como “ativista”. Na maior parte dos casos, porém, a mídia o qualifica como “ex-ativista”. Mas isso também não é um retrato fiel.

Battisti é considerado terrorista na Itália. Se isso parece exagerado, basta lembrar que nos anos em que ele lutou pelo PAC, no fim da década de 1970, a Itália vivia em regime democrático, e que a luta armada na época era ilegal. Em entrevista no Brasil ao site Conjur, o italiano disse que se sente “caluniado” quando lê que ele é terrorista. “Existe no processo o termo subversão, não terrorismo. Usar o termo terrorista nesse contexto é uma ilegalidade”, disse. Bom, o que ele fez foi usar um subterfúgio jurídico: na Itália não havia a qualificação penal de crime de terrorismo, assim como no Brasil, que só veio a ter a primeira lei a respeito em 2016, sancionada em meio a preocupações com os Jogos Olímpicos e a crescente onda de terror mundial.

Esse argumento também foi usado em 2010 pelo então advogado de Battisti, Luís Roberto Barroso, hoje ministro do STF. O fato concreto é que não havia como ele ou qualquer outro ser condenado por “terrorismo”, mas todos os extremistas de esquerda e de direita durante os anos de chumbo na Itália (1969-1980) foram classificados como terroristas. As vítimas do PAC constam ainda da publicação “Para as vítimas do terrorismo na Itália republicana”, lançado em 9 de maio de 2008, em comemoração ao Dia da Memória.

Além disso, Battisti se beneficiou diretamente da “doutrina Miterrand”, que concedia asilo na França a terroristas italianos que haviam renunciando às armas e que não tinham cometido crimes de sangue. A proteção dada pelo presidente francês François Miterrand durante seu governo (1981-1995) e que garantiu a liberdade a centenas de italianos por quase duas décadas, portanto, não era direcionada a “ativistas”, mas a terroristas.

O PAC foi criado para defender direitos dos presos, que estavam sendo desrespeitados durante os anos de chumbo. Battisti diz que não matou ninguém, mas confirma que participou de um grupo de luta armada e que fez atos subversivos. Ele tem o direito de alegar o que quiser; o fato é que a condenação dele foi confirmada por três instâncias da Justiça italiana, e a Corte Europeia não aceitou o recurso de que o processo devia ser suspeso por ele ter sido julgado à revelia.

Então, chama a atenção o tratamento concedido por parte da mídia ao caso. Desconheço o uso da palavra “ativista” para classificar quem combateu os militares, que tomaram o poder no Brasil à força. Por qual motivo um extremista italiano condenado por combater um governo democraticamente eleito ganhou o direito de ser chamado de “ativista”? Ou mesmo de “ex-ativista”?

Para quem acha que terrorista é demasiado forte para qualificar Battisti, fica a sugestão de outra palavra: escritor. O italiano tem livros publicados em vários países, dos quais li apenas “Minha Fuga Sem Fim” – o qual não me fez compadecer do condenado. Pelo contrário.

A intelectual francesa Fred Vargas foi uma das mais atuantes defensoras de Battisti. Ela escreve o posfácio do livro e conta que discutiu várias vezes com o amigo sobre a necessidade de provar sua inocência. Ele se negou a fazê-lo, pressionado pela estratégia de defesa, que era a de proteger todos os abrigados pela Doutrina Miterrand, independentemente de inocência ou de ter comparecido em julgamento, diz ela. “Destacar a inocência de Battisti quebraria, portanto, a linha solidária de uma defesa coletiva”, escreveu.

Battisti foi preso em junho de 1979 com outras quatro pessoas em um apartamento em Milão, onde foram encontradas diversas armas e dinheiro. Já nas primeiras reportagens a respeito, como a publicada em 28 de junho pelo La Stampa, consta que chamou a atenção dos policiais uma pistola Magnun 357, do mesmo tipo que a utilizada contra Torregiani, Santoro e Campagna. É possível consultar o texto pelo arquivo digital do jornal, ou ainda neste endereço: bit.ly/Battisti_lastampa.

Em outras reportagens publicadas à época, a acusação atribui a Battisti um papel secundário na morte de Torregiani. Em 1.º de abril de 1981, o La Stampa publicou que nesse inquérito o Ministério Público pediu condenação de Battisti apenas por participação em grupo armado. Mas Battisti, que estava preso na época, tinha medo de atrocidades nas prisões italianas, e decidiu fugir. A evasão ocorreu em 5 de outubro de 1981; ele viveu anos no México, depois foi para a França, atraído pela Doutrina Miterrand.

As reportagens após a fuga destacam que Battisti era ligado ao PAC, grupo que tinha reivindicado as mortes de Torregiani, Santoro, Campagna e também de Lino Sabbadin. Após a delação de Mutti, em 1982, Battisti foi incriminado pelos outros crimes, o que foi noticiado pelos jornais. Assim como uma primeira condenação, em junho de 1983, e depois, em junho de 1985. Causa espanto a alegação que nem Battisti ou algum familiar tenha tido conhecimento de tudo isso.

Próximos passos

Independentemente de tudo isso, o Brasil acolheu Battisti. Ele vivia na clandestinidade depois que a França resolveu extraditá-lo, em 2004; só foi preso em 2007, no Brasil. O refúgio concedido em 2009 pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro, foi considerado ilegal pelo STF, com o entendimento de que ele não sofrera perseguição política no julgamento na Itália. Entretanto, os ministros também decidiram que a decisão final sobre a extradição caberia ao presidente da República. Lula negou o pedido, argumentando que mandar Battisti para o país natal o colocaria em perigo.

O presidente Michel Temer pretendia agora, em 2017, entregar Battisti à Itália, e quase teve uma ajuda com a prisão do terrorista na fronteira com a Bolívia. Entretanto, a Justiça o libertou, com a condição de comparecer em juízo na comarca de residência, em São Paulo – tudo não passou de um mal-entendido, diz a defesa. Por outro lado, para garantir a permanência no Brasil, os advogados dele ingressaram com um habeas corpus no STF para impedir revisão na decisão de Lula, com um argumento muito justo, por sinal: o italiano “não pode restar, ad eternum, submetido ao sabor das alterações do cenário político brasileiro e à consequente possibilidade de ser entregue a seu país de origem”. Em março de 2015, uma juíza federal havia decretado a deportação de Battisti, num processo que foi suspenso.

O ministro Luiz Fux concedeu liminar e liberou o caso para apreciação da Primeira Turma, em sessão marcada para a próxima terça-feira (24). Barroso, antigo defensor de Battisti, é um dos cinco integrantes do colegiado, mas não irá participar do julgamento. Outros ministros, porém, querem debater o assunto no plenário, por se tratar de tema complexo, envolvendo questão de extradição e revisão de decisão presidencial.

A participação de todos os ministros não é garantia que teremos uma boa decisão, mas ela é, de fato, necessária, para tentar encerrar um assunto que já consumiu muito tempo e energia dos nossos poderes. Já lamentei termos decepcionado a Itália quando foi negada a extradição, mas, agora, há outras questões em jogo. O STF permitirá que uma decisão presidencial seja reformada? Seja lá qual for o resultado, precisa ser muito bem fundamentada, sob o risco de o Brasil sair menor do episódio e virar, de fato, uma “republiqueta que aceita qualquer solução improvisada para se livrar de um problema”, nas palavras ditas em 2015 pelo ministro Barroso.

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