Em 2017, o general Antônio Hamilton Mourão defendeu uma intervenção das Forças Armadas para resolver a crise brasileira e o problema da corrupção se as instituições político-civis, sobretudo a Justiça, não derem um jeito no país. Em fevereiro de 2018, o presidente Michel Temer decretou intervenção federal no Rio de Janeiro, recorrendo ao Exército para conter a violência no estado. Em maio de 2018, em meio à greve dos caminhoneiros, Temer voltou a lançar mão das Forças Armadas, agora para desbloquear rodovias e escoltar cargas. E, curiosamente, entre os próprios caminhoneiros há um grupo que defende a intervenção militar.
Acontecimentos como esses reforçam os apelos da parcela da população que defende um golpe militar como forma de “consertar” o Brasil. Mas será que as Forças Armadas teriam o poder de resolver os problemas nacionais? E elas são tão “superiores” em relação ao resto do Estado para apresentar uma solução redentora?
Primeiramente, é preciso dizer que a discussão não deve ser travada na suposta superioridade ou inferioridade dos militares em relação aos civis e, em particular, aos políticos. Mas sim no debate das diferenças (e semelhanças) entre eles. E essa discussão leva a uma resposta: não, as Forças Armadas não podem salvar o Estado brasileiro de seus dilemas. Porque elas não foram “desenhadas” para isso. E porque elas fazem parte desse mesmo Estado, compartilhando com as demais instituições muitos de seus males.
Direto ao ponto
- Militares na política viram políticos
-Forças Armadas não são imunes à corrupção
- Exército, Marinha e Aeronáutica gastam muito com pessoal e pouco com investimentos
- Previdência militar tem rombo gigantesco e estrutura salarial apresenta distorções
- Implantação do planejamento estratégico de defesa tem deficiências
Começando pelo começo: quais são as diferenças?
É a distinção em relação às instituições políticas que faz com que as Forças Armadas desfrutem da confiança de ampla parcela da população e da simpatia dos defensores da intervenção militar.
Pesquisa do Instituto Datafolha divulgada em junho de 2017 mostrou que 40% dos brasileiros confiam muito nos militares e 43% confiam um pouco. O Congresso, por outro lado, não tem a confiança de 65% da população; 31% confiam um pouco e apenas 3% confiam muito no Legislativo nacional. Outro levantamento, divulgado no início de setembro pelo Instituto Paraná Pesquisas, revelou que 64,7% dos brasileiros acreditam que a corrupção nas Forças Armadas é menor do que em outros órgãos de governo.
A população adere de modo acrítico a crenças que são próprias do ethos militar [conjunto de práticas e valores internos ], como a missão salvacionista das Forças Armadas [salvar a nação dos seus inimigos ]
“A população adere de modo acrítico a crenças que são próprias do ethos militar [conjunto de práticas e valores internos ], como a missão salvacionista das Forças Armadas [salvar a nação dos seus inimigos ]”, diz Érica Cristina Alexandre Winand, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), integrante do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional e diretora-financeira adjunta da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed).
“Dentro da organização, o militar se abandona como indivíduo vulgar e compõe um único corpo. O militar precisa acreditar que é diferente de outros indivíduos, precisa crer nos seus valores nobres, porque é em nome deles e da pátria que ele abre mão de sua própria vida em campo de batalha. O reforço dessa crença entre os militares mantém o chamado cimento organizacional, o espírito de corpo”, afirma a professora.
Segundo ela, é essa imagem que as Forças Armadas buscam transmitir à sociedade. “Para além disso, os militares se aproximaram mais da sociedade nos últimos anos, por meio das missões subsidiárias que concretizam um dos slogans das forças “mão amiga” (o outro seria “braço forte”) em que prestam diferentes tipos de assistencialismos que vão desde a distribuição de alimentos até o recapeamento de rodovias”, afirma Érica. “Isso, somado ao fato de a sociedade brasileira ser imediatista e vislumbrar no uso da violência a única garantia da lei, faz com que as Forças Armadas liderem o ranking de instituições mais confiáveis.”
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Érica destaca, porém, que o mundo militar e da política têm naturezas e objetivos distintos. Enquanto as Forças Armadas se organizam numa estrutura hierárquica e de ordem rígida para defender o país no caso de guerra, a política é o campo da busca de consensos sociais. Num caso, a lógica é de repressão da vontade individual. Noutro, de negociação, participação popular.
Em resumo: a organização militar e das instituições políticas são diferentes porque têm funções distintas. E misturá-las não é uma boa ideia. Numa situação de guerra, questionar a ordem do comando militar ou levá-la para a deliberação pública pode colocar a sobrevivência da nação em risco. Mas isso é saudável no ambiente das decisões políticas.
As Forças Armadas são parte do Estado brasileiro e não estão imunes aos problemas enfrentados pelo Estado
Militares na política viram políticos armados
Por causa disso, não adianta tão somente colocar militares no comando do país para “solucionar” a crise política. “Quando os militares vão para a política, eles se descaracterizam”, afirma Érica. Viram atores políticos regidos sob uma lógica particularmente violenta.
O período da ditadura militar no Brasil (1964-1985) é um exemplo histórico de como um governo das Forças Armadas não é isento de desvios de conduta e de equívocos de gestão. Embora houvesse censura que impediu que vários escândalos viessem à tona, casos de corrupção se tornaram públicos no período dos generais-presidentes.
Apenas alguns exemplos: a Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares) ganhou uma concorrência suspeita para a exploração de madeira no Pará e pelo menos US$ 10 milhões teriam sido desviados. Houve suspeitas de desvios de dinheiro na construção da ponte Rio-Niterói e na Rodovia Transamazônica. A General Electric admitiu ter pago propina a servidores públicos para vender locomotivas à Rede Ferroviária Federal (RFFSA), estatal federal.
Além disso, do ponto de vista dos resultados de gestão, a ditadura entregou aos civis, em 1985, um país com sérios problemas econômicos: crise da dívida externa, inflação elevada e altos índices de pobreza.
Forças Armadas não estão blindadas contra a corrupção
Ainda que se pudesse passar uma borracha nesse passado autoritário, as instituições militares hoje tampouco são perfeitas naquilo em que elas podem ser comparadas aos demais órgãos governamentais. “As Forças Armadas são parte do Estado brasileiro e não estão imunes aos problemas enfrentados pelo Estado”, diz Alcides Costa Vaz, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed) e professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
Militares e as Forças Armadas também se envolvem em casos de corrupção, ponto central da discussão atual sobre a intervenção militar. O almirante Othon Luiz Pinheiro, ex-presidente da Eletronuclear, por exemplo, é um dos personagens da Lava Jato. Foi condenado no ano passado a 43 anos de prisão por corrupção nas obras da usina nuclear de Angra 3. Deve-se ressaltar que ele cometeu crimes não numa função militar, mas de indicação política.
A compra de 36 caças Gripen pela Aeronáutica é alvo de investigação da Operação Zelotes, que apura a suspeita de superfaturamento na aquisição das aeronaves, fabricadas pela empresa sueca Saab. O ex-presidente Lula é réu numa ação envolvendo o caso por ter supostamente exercido tráfico de influência para a escolha da aeronave da Suécia. Não há militares denunciados. E a Aeronáutica afirma que Lula não influenciou na decisão de comprar os Gripen.
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Menina dos olhos da Marinha, o programa bilionário de desenvolvimento de submarinos 100% brasileiros também é investigado – nesse caso, pela Lava Jato. As investigações não indicaram a participação de militares – a corrupção teria se dado apenas entre empreiteiras e políticos.
A ausência de militares denunciados tanto no caso dos submarinos como no dos caças, em princípio, exemplifica a diferença das Forças Armadas em relação ao mundo político quando se fala em corrupção – mesmo quando projetos de defesa nacional estão no centro de suspeitas. “Não há dimensão de corrupção sistêmica nas Forças Armadas. O que se conhece são casos individuais”, diz Alcides Vaz. “Mas isso não é uma carta em branco para a intervenção.”
A professora Érica Winand afirma ainda que uma intervenção militar para “solucionar” a corrupção, por si só, seria uma forma gravíssima de corrupção, o desrespeito máximo à lei. “A intervenção iria corromper a ordem constitucional de modo essencial”, diz Érica. “Corrompe do Estado Democrático de Direito e mina as condições empíricas e jurídicas do Estado. A Constituição, afinal, não permite que os militares intervenham na política, qualquer que seja a intervenção.” Pelo ordenamento constitucional, os militares são “instrumentos” da política e não devem falar em nome dela. E, nesse sentido, até mesmo manifestações públicas de militares sobre assuntos políticos podem ensejar inconstitucionalidade.
Enfim, a Constituição, não permite que os militares tomem o poder. Eles só podem agir para garantir a ordem por determinação do presidente. A tomada do poder pelas Forças Armadas constituiu assim um paradoxo: seria uma violação da Constituição para garantir o cumprimento das leis.
Gastos elevados com pessoal: problema que também é dos militares
A organização e a gestão das instituições militares igualmente repetem muitos dos problemas comuns ao restante do Estado brasileiro. O governo federal gasta muito com o salário dos servidores e pouco com investimentos? Nas Forças Armadas a situação é parecida.
O país tem hoje um contingente de 250 mil militares: 222,8 mil no Exército, 18,7 mil na Aeronáutica e 8,5 mil na Marinha. Segundo Alcides Vaz, os gastos com pessoal (que também incluem o pagamento de militares inativos e pensões) consomem cerca de três quartos do orçamento da Defesa.
Um orçamento, aliás, que não é pequeno. O Ministério da Defesa é o quarto com mais verba na Esplanada neste ano: R$ 94,8 bilhões. Perde apenas para as pastas do Desenvolvimento Social e Agrário (com R$ 661,58 bilhões – a imensa maioria destinada a pagamento de aposentadorias do INSS); da Saúde (R$ 125,38 bilhões) e da Educação (R$ 107,5 bilhões).
Pouca verba para modernização
“O Brasil tem um dos maiores gastos militares da América Latina. Mas é muito mal distribuído. Gasta muito com pessoal e investe pouco em modernização”, diz Érica Winand.
Resultado: não há a destinação necessária de recursos para a atualização tecnológica e renovação de equipamentos. “As Forças Armadas podem racionalizar sua estrutura de gastos seus gastos com pessoal; reduzir o efetivo. Mas precisaria investir em tecnologia”, afirma Alcides Vaz.
A professora Érica afirma que essa situação é uma responsabilidade compartilhada entre militares e políticos. O militar ainda tem muita autonomia para opinar e os políticos pouca energia para pautar avanços. Ela lembra que os comandos das Forças pedem mais orçamento à classe política para se modernizar, mas sempre costuma haver resistência dos militares a quaisquer reformas em sua estrutura de pessoal e de pagamentos , para que os gastos sejam redistribuídos.
Alcides Vaz pondera que, ainda assim, existe uma defasagem no orçamento destinado às três Forças. De acordo com ele, o país gasta cerca de 1,5% de seu PIB com defesa nacional, quando o ideal seriam 2%.
Ele destaca ainda que as Forças Armadas têm assumido atribuições, delegadas pelo Estado, que consomem seus recursos e não fazem parte de sua atividade-fim: ações de combate à criminalidade (como a recente ocupação da Rocinha, no Rio de Janeiro), campanhas de vacinação, ações de combate ao mosquito da dengue, controle do tráfego aéreo comercial, distribuição de urnas eletrônicas nas eleições nos locais mais distantes. “Se olhar sob esses aspectos, o orçamento militar é justificável”, diz o professor da UnB.
O rombo da Previdência verde-oliva
Talvez o maior drama das Forças Armadas é que nem mesmo a maior parcela dos gastos com pessoal é destinada aos militares da ativa. A Previdência militar é um grande sorvedouro de dinheiro público – como também é a do funcionalismo público civil.
Dados de 2016 do Ministério do Planejamento mostram que os inativos pesam muito mais que os ativos das Forças Armadas. Cada militar ativo custa, em média, R$ 4.326 mensais aos cofres públicos. O militar reformado gera uma despesas de R$ 9.693. E a pensionista, de R$ 8.962.
Vários fatores explicam o rombo da Previdência militar. Eles, em geral, se aposentam cedo porque entram nas Forças Armadas cedo. Mas essa conta se deve, em grande medida, a três privilégios históricos concedidos aos integrantes das Forças Armadas que foram extintos (ao menos parcialmente), mas que ainda cobram a conta no fim de cada mês: a pensão integral paga a filhas solteiras de militares (e não apenas para as esposas); a promoção de patente quando o oficial ou praça se reforma (a aposentadoria fica maior que o soldo de fim de carreira); e a contribuição menor do que a do restante do funcionalismo.
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Desses três benefícios, os dois primeiros foram completamente extintos numa reforma na legislação realizada em 2001. Ainda assim, quem recebia os pagamentos até essa mudança tinha direito adquirido e continua a usufruir da aposentadoria pelas regras antigas. Já a contribuição previdenciária dos militares da ativa, descontada do soldo, foi aumentada. Era inferior a 5% da remuneração e passou a 7,5%. Mas, ainda assim, é menor que os 11% pagos pelo restante do funcionalismo federal.
O especialista em Previdência Paulo Tafner, professor da Universidade Cândido Mendes, afirma que o rombo das aposentadorias militares representa cerca de 45% do déficit de todo o funcionalismo federal e 15% do buraco previdenciário do país – incluindo o provocado pelos aposentados do setor privado (INSS). “Mas a trajetória é de redução do déficit [na Previdência militar]”, diz ele. Justamente por causa das reformas de 2001.
O professor da Cândido Mendes afirma ainda que, na atual discussão de reforma da Previdência, há uma ideia equivocada sobre os militares. Segundo o especialista, eles não ficaram de fora do debate e já houve sinalização do comando das Forças Armadas de que os militares aceitariam dar sua contribuição, aumentando o período de contribuição e a alíquota do desconto previdenciário de modo a chegar gradualmente aos 11%. Tafner também defende que, em função das características distintas da atividade, os militares tenham um tratamento diferente do restante do funcionalismo nas regras previdenciárias.
Distorções salariais dos militares da ativa
A estrutura salarial dos militares da ativa também apresenta distorções. É cheia de mecanismos que aumentam a remuneração final – algo que ocorre em outras categorias do funcionalismo. Os generais ganham um soldo entre R$ 11.196 e R$ 12.076. Com gratificações, porém, a remuneração mensal pode chegar a R$ 25.433 – mais que o dobro.
Há ainda uma variação muito grande entre a remuneração de oficiais de alta patente e os praças – uma desigualdade que sintetiza um dos grandes problemas da própria sociedade brasileira. O menor soldo atualmente é o de aprendiz de marinheiro: apenas R$ 879.
Os professores Alcides Vaz e Paulo Tafner fazem uma ressalva na questão salarial dos militares: eles ganham mal em relação ao restante do funcionalismo federal. “Um general [oficial de patente mais alta] ganha muito menos que um procurador que acabou de passar no concurso”, diz Tafner – um procurador da República em início de carreira recebe R$ 28.947. “O salário dos militares é um problema latente; uma questão mal resolvida”, afirma Vaz.
A professora Érica Winand faz uma ponderação: muitos militares, sobretudo os altos oficiais, desfrutam de alguns benefícios como moradia, carro e combustível custeados pelo Estado. E isso não entra na conta de sua remuneração.
Planejamento e implantação dele: mais uma deficiência partilhada com o Estado
As Forças Armadas também padecem de outro mal que é recorrente em todo Estado brasileiro: a dificuldade de elaborar e implantar um planejamento estratégico de longo prazo e de coordenar os esforços para atingir esses objetivos.
“Não há um plano uma estratégia de defesa nacional bem estruturado”, diz Érica Winand. Segundo ela, até o início dos anos 1990, o Brasil estabeleceu sua organização militar para enfrentar dois inimigos em potencial: a Argentina (ameaça externa) e os comunistas (ameaça interna). Isso fez com que houvesse uma concentração de tropas no Sul e nos grandes centros industriais.
Com a queda do Muro de Berlim, o fim da União Soviética e a melhora na relação com os argentinos, a estratégia mudou. A Amazônia passou a ser prioridade. Mais recentemente, com a descoberta do pré-sal, em 2006, o mar territorial também entrou nesse rol.
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“Houve avanços para atender à nova estratégia. Tropas foram deslocadas para o Norte do país. Houve uma renovação discursiva. Porém, sem que o Brasil definisse assertivamente a relação entre uma identidade estratégica própria e os meios militares para realizá-la”, diz Érica.
O mesmo ocorreu em relação ao mar territorial. Desconcentrou-se as frotas situadas no Rio e em Santos. O país começou a desenvolver um ousado programa de construção de submarinos, incluindo o de propulsão nuclear – o que colocaria o Brasil numa seleta lista que hoje conta com apenas cinco países que dispõe dessa tecnologia. Mas, ao mesmo tempo, a Marinha decidiu desativar, no início de 2017, o único porta-aviões que tinha.
Alcides Vaz afirma que também hás nas três Forças um problema de coordenação para trabalharem de forma conjunta na perseguição dos objetivos da estratégia de segurança nacional. Segundo ele, Exército, Marinha e Aeronáutica trabalham de forma muito autônoma um em relação ao outro.
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