A proposta de emenda à Constituição (PEC) que foi desengavetada e aprovada pela Câmara dos Deputados, na última terça-feira (26), ameaça engessar ainda mais o Orçamento – e já a partir de 2020. Para entrar em vigor, a PEC precisa ainda da chancela do Senado. O presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disse que a proposta será votada na próxima quarta-feira (3).
Há muita controvérsia sobre os impactos econômicos e políticos da medida. O texto aprovado na Câmara, modificado por destaques propostos pelos deputados em plenário, é vago e deixa margem para mais de uma interpretação sobre o que de fato o governo será obrigado a executar.
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Por causa disso, até mesmo técnicos que trabalham com orçamento no Congresso ainda estão afinando os cálculos para mensurar qual será, de fato, o impacto financeiro da proposta – algumas das primeiras projeções indicam que o Executivo poderia ter uma margem de apenas 3% do orçamento para manejar sem justificativas.
Do ponto de vista político, a articulação para colocar a PEC 2/15 em pauta e aprová-la no mesmo dia foi feita à revelia do Palácio do Planalto e da equipe econômica. Até mesmo os deputados do PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, votaram a favor da medida. Cravar que foi uma vitória ou derrota do governo depende um pouco do humor do analista.
A Gazeta do Povo separou quatro pontos para explicar o que já se sabe dos impactos econômicos e políticos da aprovação da PEC do Orçamento.
O que a PEC obriga o governo a fazer?
Esse é um ponto cheio de controvérsias, mas duas coisas são certas. A primeira é que a proposta retira poder do Executivo sobre o Orçamento, pois determina a obrigatoriedade de pagamento de despesas que hoje podem ser adiadas, como emendas de bancadas estaduais e investimentos em obras.
A segunda é que assim que a PEC for aprovada, sua vigência será obrigatória já no exercício seguinte. Isso quer dizer que se o projeto virar uma emenda constitucional em 2019, seus efeitos já valerão para o orçamento de 2020.
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O texto que foi aprovado na terça-feira foi modificado por destaques no plenário da Câmara, que o deixaram um tanto vago e provocam mais de uma interpretação, inclusive no corpo técnico que trabalha no Congresso. Fontes ouvidas pela Gazeta do Povo concordam que há muita confusão e que o texto ficou vago, mas não há consenso sobre o que de fato a PEC vai obrigar o governo a fazer.
Um entendimento do corpo técnico da Câmara é o de que a PEC dá uma definição vaga, mas ainda assim relevante, que determina que em toda a programação orçamentária que tem a ver com uma entrega à sociedade – uma obra ou investimento em saúde ou educação, por exemplo – há uma definição de dever de execução.
No entanto, embora determine que o Executivo deva tomar os meios e medidas para executar essa programação, o texto abre margem para que a administração pública alegue contingenciamento ou impedimento para realizar esse gasto. Mas é obrigatório justificar essa negativa, publicar e assumir a responsabilidade por essa informação.
No caso das emendas de bancadas estaduais, é esse o mesmo princípio aplicado. A diferença é que ela é quantificada: há um limite de até 1% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior e não é possível ultrapassar esse porcentual – mas ele pode ser menor.
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Outra corrente entende que o que foi efetivamente aprovado é só a obrigatoriedade de execução das emendas das bancadas estaduais, e que a parte da proposta que era mais “bomba” foi retirada, já que neste caso há limite vinculado à receita corrente líquida.
Qual o impacto dessa obrigação sobre o engessamento do Orçamento?
A PEC retira poder do Executivo sobre o Orçamento, porque aumenta as despesas obrigatórias e o torna ainda mais engessado. Para 2019, o orçamento total é de R$ 1,4 trilhão. Esse projeto pode elevar o gasto obrigatório do governo em valores que variam entre R$ 4 bilhões e R$ 8 bilhões por ano. Além disso, reduziria o percentual do Orçamento que o governo poderia mexer sem justificativas – nesse caso, há projeções que apontam que 97% do Orçamento ficaria engessado caso essa PEC entre em vigor.
Vale ressaltar que o Orçamento atualmente já é engessado – pouco mais de 90% dele já está comprometido com algum tipo de despesa obrigatória. As principais contas fixas do governo federal são a Previdência e o gasto com pessoa. Em 2010, a despesa primária do governo estava em R$ 1,16 trilhão. A Previdência consumia 36% desse montante e o gasto com pessoal, 23,8% -- sobravam 6,3% para investimentos.
Com o passar dos anos, a despesa primária e os gastos com previdência subiram – houve uma tímida redução do gasto com pessoal e uma queda maior em investimentos. No ano passado, as despesas primárias do governo representaram R$ 1,37 trilhão. A Previdência é responsável por 43,4% desse gasto e as despesas com pessoal representaram 22,1%. Já os investimentos foram de 3,9%. Os valores comparados estão corrigidos pela inflação.
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Um integrante do corpo técnico da Câmara avalia que o engessamento na verdade é a alteração da margem de liberdade que o governo tem para executar o Orçamento, porque precisa explicar porque está mudando de prioridade.
Já para a corrente que defende que a mudança só valerá para as emendas de bancadas estaduais, atreladas à receita corrente líquida, o impacto financeiro pode ser ainda menor por causa da limitação de 1%.
Poder ao Parlamento ou engessamento ao governo?
A aprovação relâmpago da PEC 2/15 na Câmara tem um efeito curioso. Ao mesmo tempo em que ela atende a um discurso de Paulo Guedes, o ministro da Economia, de dar mais poder ao Parlamento na definição do Orçamento, vai contra o seu próprio discurso de desvincular as despesas do orçamento, porque mantém inalterado o compromisso com despesas obrigatórias – como salários de servidores e Previdência.
Durante a votação da proposta, vários deputados exaltaram a “autonomia do Legislativo”. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que a obrigatoriedade de executar emendas de bancada fortalece os mandatos e ressaltou que a votação da PEC não foi um movimento do Legislativo contra o Executivo.
Nesta quarta-feira (27), Maia voltou a afirmar que a PEC reforça o regime de disciplina fiscal e é compatível com o teto de gastos. “É uma medida importante de inovação na cultura orçamentária do país, comprometida com os valores da responsabilidade fiscal, da eficiência administrativa e da valorização do Poder Legislativo”, declarou ao portal da Câmara dos Deputados.
Deputado em seu primeiro mandato e líder do MBL, Kim Kataguiri (DEM-SP), afirmou que a emenda segue o caminho do fim da política do “toma lá, dá cá”. “O Executivo não terá mais na mão uma moeda de troca para comprar ou vender parlamentares. O Congresso vai determinar, de acordo com as bancadas, como será distribuído o Orçamento”, declarou em registro do portal da Câmara.
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O próprio Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, lembrou que tanto ele quanto o pai – quando era deputado – eram favoráveis à medida. Ele ainda afirmou que a proposta traz mais independência aos deputados federais.
Mas, nem todos os parlamentares concordam – apenas seis se opuseram à PEC. No PSL, apenas três deputados votaram contra a proposta, incluindo a líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann (PSL-SP). A deputada, inclusive, lembrou que a proposta contraria o plano de Guedes e chegou a dizer que o governo trabalharia para segurar a proposta no Senado.
Como essa PEC foi desengavetada e votada em um único dia?
A PEC 2/15 foi apresentada em fevereiro de 2015 pelo deputado Hélio Leite (DEM-PA). A proposta passou por várias comissões, inclusive foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em 25 de novembro daquele ano. O relator da PEC era o deputado Carlos Henrique Gaguim (DEM-TO), que na época fazia parte do então PMDB.
Apesar de ter sido aprovada em novembro de 2015 na CCJ, a matéria nunca entrou na pauta do plenário. O pedido de inclusão na pauta aconteceu na última segunda-feira (25), de acordo com a tramitação da proposta. E foi o próprio Hélio Leite quem fez a requisição.
A decisão de colocar o tema na pauta do dia de terça-feira (26) veio depois de uma reunião de líderes de partido da Câmara, da qual o líder do governo na Casa, o Major Vitor Hugo (GO), não participou porque estava em um encontro da própria bancada. Também foi um acordo entre os líderes que permitiu que a proposta fosse votada em dois turnos no mesmo dia.
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As propostas de alteração constitucional demandam amplo apoio dos parlamentares nas duas casas – na Câmara, exige no mínimo 308 deputados favoráveis – e também têm um rito de tramitação mais arrastado que o de projetos ordinários. Mas, esse texto foi resgatado da gaveta e aprovado em dois turnos, em menos de uma hora, no mesmo dia em que entrou na pauta – um recorde de agilidade dos parlamentares.
A adesão à proposta foi impressionante. No primeiro turno, a PEC foi aprovada por 448 a 3. No segundo turno, passou com 453 votos favoráveis e apenas 6 contrários. Em nota nesta quarta-feira, Rodrigo Maia, presidente da Câmara, negou que a aprovação da medida foi uma medida casuística, tomada por causa do desgaste e instabilidade da relação entre o Executivo e o Executivo nas últimas semanas.
Maia e o presidente Jair Bolsonaro trocam farpas sobre a condução da proposta de reforma da Previdência – para o deputado, falta participação do presidente na articulação política para aprovação da reforma. Já Bolsonaro repete que fez sua parte ao entregar o projeto aos parlamentares e que agora a responsabilidade está com eles.