No meio de uma semana cheia de atritos para resolver com o Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro abriu outro flanco para ser alvo de críticas, acirrar a crise política e até mesmo para dar motivo a um pedido de impeachment: a “comemoração” dos 55 anos do golpe militar de 1964, no dia 31, próximo domingo.
Oposição, Ministério Público Federal (MPF), entidades da sociedade civil e alguns aliados do presidente criticaram a intenção de celebrar a ditadura militar (1964-1985). O MPF alertou que a celebração do golpe poderia enquadrar Bolsonaro em crime de responsabilidade – que poderia resultar na cassação do presidente. Além disso, a possibilidade de celebrar o golpe também foi mais um elemento a pôr lenha na fogueira da crise entre Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) – que é filho de um exilado político pela ditadura.
No fim, Bolsonaro recuou: transformou a “comemoração” em “rememoração” do golpe. E o comando do Exército encomendou pareceres jurídicos para decidir se manterá as atividades previstas para o domingo.
As “devidas comemorações”
Na última segunda-feira (25), o porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros, anunciou a determinação do presidente ao Ministério da Defesa para que realizasse as “comemorações devidas” do dia 31. Na ocasião, Rêgo Barros disse ainda que Bolsonaro não considerava que a tomada do poder pelos militares havia sido um golpe.
Em entrevista ao jornalista José Luiz Datena, Bolsonaro classificou como “probleminhas” o que aconteceu durante o regime, comparando-o com um casamento. “Temos de conhecer a verdade. Não quer dizer que foi uma maravilha; não foi uma maravilha regime nenhum. Qual casamento é uma maravilha? De vez em quando tem um probleminha, é coisa rara um casal não ter um problema, tá certo?”, disse no programa Brasil Urgente, na TV Band.
A ameaça do impeachment
A ideia de “comemorar” o golpe colocou o governo no alvo do MPF. As Procuradorias da Repúblicas coordenaram ações – em pelo menos 19 estados – recomendando aos comandos militares e quartéis das Forças Armadas que se abstenham de qualquer forma de comemoração do golpe militar de 1694.
Documento da Procuradoria Geral da República (PGR) ressalta que possíveis comemorações violam a Constituição Federal e destaca que o presidente também deve se submeter às leis: “Não possuindo o poder discricionário de desconsiderar todos os dispositivos legais que reconhecem o regime iniciado em 31 de março de 1964 como antidemocrático. (...) O dever do Estado brasileiro é não só o de reparar os danos sofridos por vítimas de abusos estatais no mencionado período, mas também de não infligir a elas novos sofrimentos, o que é certamente ocasionado por uma comemoração oficial do início de um regime que praticou graves violações aos direitos humanos”.
A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do MPF, foi mais incisiva ainda. E, em nota, afirmou que Bolsonaro pode ser enquadrado em crime de responsabilidade por autorizar a comemoração do golpe. “O apoio de um presidente da República ou altas autoridades seria, também, crime de responsabilidade (artigo 85 da Constituição, e Lei n° 1.079, de 1950). As alegadas motivações do golpe – de acirrada disputa narrativa – são absolutamente irrelevantes para justificar o movimento de derrubada inconstitucional de um governo democrático, em qualquer hipótese e contexto”, destaca a nota da PFDC.
O artigo 85 prevê que é crime de responsabilidade, passível de impeachment do presidente, atentar contra o livre exercício dos três poderes. A Procuradoria entende que comemorar o golpe é passível de ser enquadrado como um atentado a esse princípio constitucional. “É preciso lembrar que, em 1964, vigorava a Constituição de 1946, a qual previa eleições diretas para presidente da República. O mandato do então presidente João Goulart seguia seu curso normal, após a renúncia de Jânio Quadros e a decisão popular, via plebiscito, de não dar seguimento à experiência parlamentarista. Ainda que sujeito a contestações e imerso em crises, não tão raras na dinâmica política brasileira e em outros Estados Democráticos de Direito, tratava-se de um governo legítimo constitucionalmente”, diz a nota da Procuradoria.
Vítimas e parentes de vítimas da ditadura também entraram com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo que a determinação do presidente fosse suspensa e que qualquer norma presidencial que obrigue órgãos públicos federais de comemorarem a data seja proibida, inclusive se já existirem. Quem deve analisar a questão é o ministro Gilmar Mendes. Uma ação na Justiça Federal de São Paulo também foi protocolada.
A organização de defesa dos direitos humanos, Human Rights Watch disse em nota que o presidente comemora uma “ditadura brutal”. PSDB, PT e PSol também repudiaram possíveis comemorações na data.
Até aliados criticam
As declarações de Bolsonaro conseguiram desagradar até mesmo apoiadores do presidente. A deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), disse que o governo “precisa virar a página” e não governar “com a cabeça em 64”. O músico Lobão, bolsonarista durante a campanha eleitoral, fez um vídeo em que criticou o período da ditadura.
Os próprios militares do governo foram mais contidos que Bolsonaro, embora também defendam o golpe de 1964. “O termo aí, comemoração, na esfera do militar, não é muito o caso. Vamos relembrar e marcar uma data histórica que o Brasil passou, com participação decisiva das Forças Armadas, como sempre foi feito”, disse o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, na terça-feira (26).
Na nota em que orienta os quartéis para a ordem do dia do próximo domingo, a cúpula militar destaca a “transição para uma democracia”. O vice-presidente, general Hamilton Mourão, embora seja um defensor do regime militar, reconheceu a legitimidade de grupos contrários ingressarem na Justiça com pedidos para evitar atos comemorativos na data.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), com quem Bolsonaro trocou farpas por mais de uma semana, também mostrou-se incomodado com a “comemoração” do dia 31 de março. Na quarta-feira (27), foi questionado se era a favor ou contra a celebração do golpe. E respondeu: “Sou filho de exilado político”. O pai de Rodrigo, o ex-prefeito do Rio César Maia, teve se exilar no Chile durante a ditadura militar por ser de oposição ao regime. Maia inclusive é chileno de nascimento.
Leia mais: Guedes diz que sai do governo se perder apoio de Bolsonaro e do Congresso
Com toda a repercussão do caso e em meio à crise com o Congresso, na quinta-feira (28) Bolsonaro baixou o tom e negou que tenha feito a determinação ao Ministério da Defesa de “comemorar” o golpe. “Não foi comemorar. Foi rememorar, rever o que está errado, o que está certo e usar isso para o bem do Brasil no futuro”, disse ao participar de um evento na Justiça Militar.
Já o Comando do Exército orientou a manutenção das “solenidades previamente agendadas” para o 31 de março, mas informou que aguarda pareceres jurídicos de dois setores a respeito do assunto. A cautela foi adotada por causa da recomendação do MPF para que as Forças Armadas se abstenham “de promover ou tomar parte de qualquer manifestação pública, em ambiente militar ou fardado, em comemoração ou homenagem ao período de exceção instalado a partir do golpe militar”.
Afinados
Alguns ministros mostraram-se ao longo da semana alinhados com o presidente. O chanceler Ernesto Araújo (Relações Exteriores) afirmou que não considera a tomada de poder pelos militares em 1964 um golpe, ao ser questionado na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. “Não considero um golpe. Considero que foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura. Não tenho a menor dúvida em relação a isso”, disse.
Já Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, disse que pretende rever as indenizações concedidas pela Comissão da Anistia. “Essas caixinhas serão abertas, agora neste ministério. Queremos entender se todos que precisavam da anistia foram alcançados ou se ficaram para trás. Vamos fazer também uma análise das indenizações que foram concedidas. Esse ministério tem sido demandado para fazer isso de uma forma muito transparente”, disse a ministra, em evento que empossou os 27 conselheiros do colegiado.
A Comissão da Anistia foi instituída em 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso, para analisar requerimentos de pessoas que sofreram perseguição política de 1946 até 1988.