O Estatuto do Desarmamento foi aprovado no fim de 2003 em clima de celebração no Congresso Nacional. A votação na Câmara, feita em caráter simbólico, foi comemorada com chuva de papel picado. No Senado, a nova lei foi festejada por uma gama ampla de políticos, unindo desde o PT, partido do presidente da República na ocasião, até os ferrenhos oposicionistas PSDB e PFL (atual DEM). Era o primeiro ano de mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tinha seu governo considerado ruim ou péssimo por apenas 15% da população.
Mais de 15 anos depois, o Brasil vive um momento oposto. O presidente eleito pela população adotou o discurso antidesarmamento em toda a sua trajetória política e incluiu o tema em seu programa de governo. A bancada de deputados federais e senadores escolhida pelo povo em outubro seguiu, em grande parte, a mesma linha. Conseguir um consenso como o de 2003, mas com o sinal trocado, é o desafio que o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores terão para que possam derrubar ainda mais as restrições ao uso de armas no Brasil.
O decreto assinado por Bolsonaro na terça-feira (15), que flexibilizou as regras para a posse de armas, foi elogiado por apoiadores do presidente. Mas também recebeu críticas de defensores das armas por uma suposta “timidez”.
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O fato, contudo, é que havia pouco o que Bolsonaro poderia fazer além do anunciado. Isso porque as principais restrições ao comércio e ao porte de armas estão descritas no Estatuto do Desarmamento. Por ser uma norma elaborada e aprovada pelo Congresso, só poderá ser modificada pelo próprio Legislativo – ou seja, em votação de deputados federais e senadores. É, portanto, algo que vai demandar uma boa dose de negociação política e, nas palavras de apoiadores e opositores, “pressão da sociedade”.
Flexibilizar o porte exigirá longo debate
O decreto assinado por Bolsonaro fixou regulamentações ao Estatuto, especialmente na posse de armas – que, segundo o presidente, tinha um texto vago e que permitia interpretações subjetivas. A posse é o direito de um cidadão de dispor de uma arma dentro de sua residência ou de sua empresa. Já o porte, que é a possibilidade de andar com a munição em vias públicas, não foi mudada pelo decreto de Bolsonaro. E nem poderia, já que quem estabelece suas regras é o Estatuto do Desarmamento.
“Para modificar o porte, não basta apenas uma regulamentação. É necessário modificar o Estatuto do Desarmamento. Aí precisa de aprovação no Congresso Nacional, um debate mais amplo”, diz o presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva.
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Na opinião de Paiva, ainda que lento, o trâmite que envolve o Congresso é necessário. “Acredito que isso é algo é proporcional ao tema. Porque, como o assunto é mais delicado, precisa ter a aprovação de todos os poderes. Precisa ter um processo legislativo mais robusto, com mais debate.”
Projeto de lei que muda o Estatuto está pronto para votação
Uma proposta que derruba o Estatuto do Desarmamento já está pronta para ser votada pelos deputados federais. Trata-se do Projeto de Lei n.º 3.722/2012, elaborado pelo deputado federal Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC). A norma já passou por todas as comissões necessárias e chegou a entrar na pauta da Câmara em novembro – mas acabou retirada por opção do próprio Peninha e também de Bolsonaro. Eles entenderam que havia risco de rejeição do projeto – possibilidade diminuída pelo perfil da próxima legislatura, que inicia os trabalhos em 1.º de fevereiro.
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“São dois aspectos que dão otimismo a nós. O primeiro é que teremos um Congresso com perfil mais conservador, especialmente na Câmara. E o segundo é que esse assunto foi sempre colocado pelo presidente Bolsonaro durante a campanha. Portanto, foi aprovado pela população”, explica Peninha à Gazeta do Povo.
O deputado diz esperar que a proposta vá à votação logo no início dos trabalhos da próxima legislatura. E, segundo ele, a escolha do novo presidente da Câmara não deve afetar muito o assunto. “Meu candidato é o Alceu Moreira [MDB-RS]. Mas o próprio Rodrigo [Maia, atual presidente da Câmara e candidato à reeleição] já havia sugerido colocar o projeto para votação. Não vejo problema quanto a isso, seja quem for o presidente”, afirma Peninha.
Oposição diz que vai apostar na articulação com a sociedade
Opositor a Bolsonaro e defensor do Estatuto do Desarmamento, o senador Paulo Rocha (PT-PA) reconhece que o quadro atual é favorável a quem defende mais acesso às armas. “Depois da aprovação do Estatuto do Desarmamento, cresceram as chamadas bancadas mais conservadoras. São alianças que mantêm uma maioria política. Então os setores progressistas e a esquerda vão ter que ter muita articulação com a sociedade para barrar alguns retrocessos que podem aparecer no governo Bolsonaro”, diz Rocha.
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O PT elegeu a maior bancada de deputados federais, com 56 parlamentares. O PSL, partido de Bolsonaro, fez a segunda maior, com 52 – mas governistas esperam que nomes eleitos por outros partidos migrem para a sigla do presidente da República. A deputada eleita Bia Kicis (DF), que foi eleita pelo PRP, é um nome praticamente certo no partido de Bolsonaro.
Aliados de Bolsonaro votaram a favor do Estatuto
O Estatuto do Desarmamento surgiu de um projeto de lei apresentado em 1999 pelo então senador Gerson Camata (PMDB-ES). A proposta tramitou inicialmente no Senado até que, em 2003, recebeu uma velocidade rara no Congresso: em menos de um semestre foi aprovada com modificações pela Câmara, retornou ao Senado e foi sancionada pelo então presidente Lula em 22 de dezembro daquele ano.
A votação no Senado recebeu apoios que hoje soam inusitados, como o dos senadores José Agripino (DEM-RN), rival do PT e que foi cotado para integrar o governo de Jair Bolsonaro, e de Magno Malta (PR-ES), um dos principais cabos eleitorais de Bolsonaro em 2018. E entre quem questionou a medida na ocasião estava a então senadora Heloísa Helena (AL), que ainda era filiada ao PT. Ela falou que a norma não avançava muito no combate à violência por não impedir a comercialização de armas e também por não barrar o posse dentro dos domicílios – este último, o ponto modificado por Bolsonaro por decreto.
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