O programa de governo que o então candidato a presidente Jair Bolsonaro (PSL) apresentou à Justiça Eleitoral traz, entre as propostas para a segurança, “retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81”. A “EC/81” citada no texto é a Emenda Constitucional 81, aprovada em 2014, e que incluiu na Constituição a exploração do trabalho escravo como um dos motivos que pode levar um produtor a ter suas terras desapropriadas sem direito a indenização.
A emenda 81 alterou o artigo 243 da Constituição. O texto, inicialmente, previa a desapropriação sem indenização apenas nos casos de cultivos de “plantas psicotrópicas”, como a maconha. As terras confiscadas, segundo a lei, devem ser destinadas a projetos de habitação popular e reforma agrária.
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Bolsonaro é crítico, há tempos, da EC/81. Em diversos discursos e entrevistas nos últimos anos o presidente disse que o texto representa uma ameaça à propriedade privada e uma punição que “se estende à família toda” do acusado. Bolsonaro falou também que a norma pode levar a desapropriações de casas e apartamentos, caso seja detectado trabalho análogo à escravidão de uma empregada doméstica.
O programa de governo do presidente eleito também define o “desrespeito à propriedade privada” como um “desafio urgente” e as propriedades como bens “sagrados, que não podem ser roubados, invadidos ou expropriados”.
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Conceito de trabalho escravo: o X da questão
O debate que a EC/81 motiva tem como um dos seus principais pontos de divergência o conceito de trabalho escravo. A norma foi econômica na redação e disse que a punição será aplicada onde houver “exploração de trabalho escravo na forma da lei”.
A partir daí, o debate se posiciona em basicamente duas correntes. De um lado, há quem defende que trabalho escravo é aquele em que há restrições severas à liberdade de locomoção do funcionário. Do outro, está o entendimento que inclui como condições análogas à escravidão regimes exaustivos de trabalho, dívidas impagáveis que levam a jornadas excessivas e condições estruturais deficitárias no local de trabalho.
“Ninguém defende o trabalho escravo”, diz o deputado federal Luiz Carlos Heinze (PP-RS), líder ruralista, que a partir de 2019 exercerá mandato de senador. “O que nós temos, especialmente no meio rural, são questões de horários de trabalho que precisam ser adaptadas à realidade do momento, e que são negociadas entre os sindicatos de patrões e empregados. Por exemplo, há dias em que a jornada precisa ser de 10, 12 horas. Se isso excedeu o que está combinado com o funcionário, que haja o pagamento de horas extras. E se isso não for feito, tem que executar quem não cumpriu. Mas não dá para comparar isso com trabalho escravo”, afirma Heinze. A opinião do parlamentar é similar à de Bolsonaro sobre o tema.
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Já o frei Xavier Plassat, membro da Comissão Pastoral da Terra do Tocantins, alega que “trabalho escravo não é só aprisionamento”: “O trabalho escravo é violação da dignidade da liberdade da pessoa. Não só da liberdade de ir e vir, mas da liberdade fundamental, daquela liberdade que é da autodeterminação da pessoa”.
O senador Paulo Paim (PT-RS) acredita que a emenda constitucional não representa desrespeito à propriedade. “Não existe [no texto da EC/81] perigo de desrespeito à propriedade privada, porque a punição só será aplicada quando for comprovado o trabalho degradante e o trabalho exaustivo, dentro do regulamento que a própria legislação assegura”, diz o senador Paim.
As divergências fazem com que, passados mais de quatro anos da aprovação, a EC/81 ainda não seja regulamentada. O que significa dizer que, até hoje, a norma não trouxe qualquer implicação prática. “Discutir isso é uma questão estúpida, porque até hoje a lei não foi aplicada”, diz Plassat.
Até Bolsonaro votou a favor da emenda em um dos turnos
O quadro de discordâncias sobre o assunto não reflete como se deu a aprovação da EC/81 por parte do Congresso Nacional. Apesar do longo tempo de tramitação – a proposta foi apresentada em 2001 e aprovada em definitivo em 2014 – foi alvo de poucos votos contrários.
O próprio Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo PTB-RJ, foi um dos que votou “sim” para a EC/81 em 2004. Na ocasião, a Câmara avaliou a proposta ainda sob o efeito da chamada “chacina de Unaí” – crime ocorrido em janeiro daquele ano em que quatro funcionários do Ministério do Trabalho, que investigavam denúncias de trabalho escravo, foram assassinados na cidade do interior de Minas Gerais.
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A Câmara aprovou a proposta em segundo turno em 2012, desta vez sem o voto favorável de Bolsonaro. E Senado referendou a mudança constitucional em maio de 2014, sem muita resistência. A promulgação da emenda, ocorrida em junho de 2014, foi pretexto para uma grande celebração no Congresso, com direito a promessas, por parte do então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), de que a regulamentação sairia em breve – algo que ainda não ocorreu.
“A aprovação da PEC [que gerou a EC/81] foi algo amplamente discutido e negociado com todos os setores. E aprovada mediante acordo, senão não seria aprovada. Ninguém aprova PEC no Congresso senão mediante acordo”, diz Paim.
Um dos poucos deputados que votou contra a proposta, Heinze diz que achava “absurda” a iniciativa e que o acordo feito com os outros parlamentares da bancada ruralista não o sensibilizou. “Eu votei contra. Não concordava com aquilo.”
Mudança exigiria aprovação de nova emenda constitucional
Caso Bolsonaro realmente se empenhe para transformar em realidade sua promessa, não terá vida fácil. A proposta prevê uma nova alteração na Constituição, que mudaria o determinado pela EC/81.
Para que uma modificação na Constituição seja efetuada, são necessárias duas votações na Câmara dos Deputados e duas no Senado, com o “sim” de três quintos dos parlamentares em cada uma das rodadas de votação. Além da alta quantidade de votos, o tempo também costuma se apresentar como um complicador – a própria EC/81 levou 13 anos para ingressar na Constituição, tempo superior a três mandatos presidenciais.
Heinze e Paim, que serão colegas de Senado a partir de 2019, preferiram não palpitar sobre as chances de aprovação de uma nova mudança constitucional sobre o tema. Ambos disseram que o cenário político é imprevisível, diante das novas bancadas que assumirão em Câmara e Senado.
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