Não durou 24 horas a ideia do governo de criar uma nova alíquota para o Imposto de Renda Pessoa Física, de 30% ou 35% para quem ganhasse mais de R$ 20 mil. A medida viria acompanhada de outras providências, como a tributação de dividendos e de investimentos em LCAs e LCIs. A gritaria foi tamanha que o presidente Michel Temer disse que não haveria nova alíquota.
O debate trazido pela equipe econômica – e que pode reaparecer sem a alíquota nova – é importante porque toca em um ponto que poderia ajudar no ajuste fiscal de longo prazo. Mexer no IR não é, claro, uma solução isolada e milagrosa. A estrutura tributária brasileira inteira merece uma revisão. E, sozinha, ela não substitui a reforma da Previdência, de longe o maior gasto da União. Mas há boas razões para a discussão sobre o IR evoluir:
A carga tributária está em queda
Pouca gente notou, mas o governo vem cobrando menos impostos nos últimos tempos. Nas contas do tributarista José Roberto Afonso, a carga tributária total chegou a 34,1% do PIB em 2011 e caiu para 32,7% do PIB no ano passado. A tendência é a mesma anotada pelos dados da Receita Federal, para quem a carga caiu de 33,4% do PIB para 32,6% do PIB, de 2011 a 2015.
Há por trás disso a conjuntura de menor atividade econômica, que atingiu alguns setores altamente tributados, e também fatores estruturais. A geração de riqueza está cada vez mais concentrada no setor de serviços, geralmente menos taxado que a indústria. Além disso, muita gente tem migrado dos contratos de Pessoa Física para os de Pessoa Jurídica, menos tributado.
Para lidar com uma carga tributária em queda, é normal que os governos olhem para novas receitas de impostos. Naturalmente, a sociedade pode se opor – haveria bons argumentos para se cortar um pouco os impostos. O problema é que os gastos públicos também teriam de cair. Nessa hora, a conversa muda.
O ajuste não vai ser feito só com corte de gastos
O ajuste fiscal preferido dos contribuintes é sempre pelo lado do corte de gastos. Em um país onde a corrupção corre solta, como o Brasil, esse discurso é mais forte ainda. De forma pragmática, porém, devemos encarar o fato de que o engessamento do orçamento torna muito difícil inverter a curva do déficit público sem mais arrecadação. Parte do problema se resolverá quando a economia voltar a crescer. Outra parte se resolveria com reformas, como a da Previdência. Mudanças tributárias fazem parte dessa equação.
O governo federal já jogou a toalha e refez as contas para este ano. Seu déficit primário, antes do pagamento de juros da dívida, vai passar muito dos R$ 139 bilhões planejados no orçamento. Ele tentou conseguir receitas extras, como a repatriação de divisas (que trouxe menos que o esperado) e um novo Refis (que está sendo desmontado pelo Congresso e pode não render nada).
A projeção de especialistas é que esse déficit primário deve continuar por mais três ou quatro anos, pelo menos. Só depois voltaremos a ter superávit primário. Uma estimativa do Itaú aponta que a dívida pública total terá crescido de 51% do PIB em 2013 para 78,7% do PIB em 2020. É muito provável que ela chegue em 90% do PIB por volta de 2025, antes de voltar a cair.
Se a dívida cresce muito rápido de um lado, há pouco espaço para cortar gastos. O governo vem contingenciando ano a ano parte significativa do que se chama de gasto discricionário, ou seja, o que não é obrigatório. Essa parcela é de 9% do orçamento, segundo a Instituição Fiscal Independente do Senado, e engloba os investimentos e o custeio da máquina pública. O corte mais fácil é sempre no investimento, o que é ruim para a produtividade da economia no longo prazo.
Há outro tipo de gasto que o governo deveria cortar: o fiscal. São benefícios como as desonerações, o Simples Nacional, e os juros subsidiados em empréstimos. O governo tem mandado para o Congresso algumas alterações, mas tem encontrado dificuldades. A reoneração da folha já ficou para o ano que vem. E há grande oposição a mudanças nos juros cobrados pelo BNDES.
Alta de impostos, portanto, não é tudo o que o governo tem tentado fazer.
O Imposto de Renda é injusto
O IR é um imposto construído sobre a premissa da progressividade. Paga mais quem tem renda maior para compensar uma parte da desigualdade da economia. Por isso as alíquotas aumentam de acordo com a renda. Um estudo feito pelos economistas Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Ipea, mostra que a alíquota de IR realmente cresce de acordo com os rendimentos, mas só até a parcela de 1% da população com a renda mais alta. A partir daí, ela cai. Entre os 0,05% mais ricos, ela é de 7%, contra 12% do grupo anterior ao 1% mais rico da população.
Essa queda entre os mais ricos é explicada pela isenção de IR sobre lucros e dividendos, pagos pelas empresas a seus acionistas. É preciso lembrar que esse grupo inclui, além de proprietários e investidores de grandes empresas, profissionais liberais e os profissionais contratados como PJ.
A distorção do IR não é causada pelas alíquotas da tabela (de zero a 27,5%), nem pela falta de correção pela inflação (que aumenta o número de pessoas que pagam imposto), mas pela isenção de rendimentos do capital.
Há espaço para cobrar mais
Se o IR é injusto, poderia ser corrigido por uma redução no pagamento para todos os 99% de baixo da tabela ou pela correção sobre o 1% de cima. Especialistas defendem essa segunda opção e o pacote para o IR “vazado” na semana passada tinha exatamente esse espírito.
Começando pela tributação dos lucros, 32 dos 34 países da OCDE cobram impostos sobre o lucro em duas etapas. Na primeira, a empresa paga. Na segunda, o acionista. No Brasil, é só a empresa que paga. Segundo o estudo de Orair e Gobetti, os países da OCDE tributam os lucros 25% e os dividendos em 24%, em média. No caso brasileiro, o máximo cobrado é de 34% só sobre os lucros. Eles estimam que seja possível reduzir a tributação sobre as empresas e gerar receita extra para os governos com a cobrança em duas etapas.
A alíquota de até 35% para a alta renda poderia ser um complemento à primeira medida. Em sua tese de doutorado, o economista Fábio de Castro observa que só elevar a alíquota de IR pioraria a situação por atingir apenas assalariados que não contam com o planejamento tributário através de PJs. Mas pode ser uma medida aplicável no contexto da tributação dos dividendos. Ao longo do tempo, com o aumento da renda per capita e a inclusão de mais pessoas na base de incidência de IR, essa poderia ser uma boa solução para melhorar a receita com o imposto mantendo sua progressividade e justiça distributiva, segundo o autor.
Uma comparação disponibilizada pela Receita Federal corrobora o argumento. Os impostos sobre renda, lucro e ganho de capital no Brasil é de 5,85% do PIB. É mais baixo do que em qualquer país da OCDE. Ao mesmo tempo, a tributação sobre bens e serviços é de 16,28% do PIB, a segunda na comparação – fica atrás só da Hungria. Aumentar a cobrança de IR pode ser uma das portas para o Brasil tributar menos os produtos.
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