A tragédia ocorrida na madrugada do dia 1º de maio em São Paulo, quando o edifício Wilton Paes de Almeida desabou após um incêndio, chocou o país não apenas pelo desaparecimento de quatro pessoas, mas pela informação de que as famílias que moravam ali pagavam ‘aluguel’ a um grupo que se apresenta como defensor dos sem teto. O prédio foi invadido pelo Movimento Luta por Moradia Digna, que cobrava taxas mensais entre R$ 250 e R$ 500, segundo as próprias famílias que ficaram desalojadas após o edifício no Largo Paissandu vir abaixo.
O episódio joga luz sobre a atuação de movimentos urbanos sem teto que atuam principalmente nas grandes capitais do país. Carta assinada por alguns desses movimentos e divulgada nesta quarta-feira ( 2) questiona o que classifica como tentativa de criminalização dos moradores do edifício e reforça a ideia de que “enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito”.
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“As famílias que vivem em ocupações são vítimas do descaso, da irresponsabilidade do Estado e da especulação imobiliária”, apresenta o texto. “Não é a primeira e não será a última tragédia, enquanto o investimento público para o enfrentamento do problema habitacional não for significativo e comprometido com o acesso à moradia como um direito”, informa.
A luta destes grupos para que se cumpra o que garante o artigo 6º da Constituição Federal – que dispõe sobre a moradia e a assistência aos desamparados como direito social – se dá na maioria dos casos por meio das ocupações, realizadas pelos movimentos populares, como a ocorrida no edifício que um dia foi sede da Polícia Federal em São Paulo.
Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgado no ano passado, em 2015 o déficit habitacional brasileiro atingiu 7,7 milhões de domicílios. Em São Paulo, primeira no ranking, a carência é de 1,6 milhão de residências, ou 21% do país. A pesquisa analisa o período de implantação do programa Minha Casa Minha Vida, criado em 2009 e que não foi suficiente para eliminar o problema da habitação no país, embora tenha construído 4,5 milhões de unidades desde a sua criação, sendo 3,2 milhões voltados à população de baixa renda.
Conheça os principais movimentos que atuam na luta por moradia
Criado em 1997, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) se define como um movimento territorial porque organiza trabalhadores urbanos a partir da periferia. E encontram na luta por moradia a principal razão para existir, mas atuam também, segundo informa o movimento, por educação, saúde, transporte coletivo e infraestrutura básica nos bairros onde atua. É ligado a outros movimentos, como o dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento Passe Livre (MPL), Periferia Ativa, Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB) e ao Movimento Popular por Moradia – Curitiba, entre outros.
Pré-candidato à presidência da República pelo PSOL, Guilherme Boulos é o coordenador do MTST. Filho de médicos, formado em Filosofia pela USP com especialização em Psicologia e mestrado em Psiquiatria, chegou a ser detido em janeiro do ano passado na ocupação Colonial, na zona leste de São Paulo, durante a reintegração de posse do terreno, onde viviam cerca de 700 famílias.
Para o MTST, as ocupações são “o grito de um povo que não suporta mais viver calado em seus buracos, que não suporta ter que escolher entre comer e pagar aluguel nem continuar sofrendo humilhações por viver de favor na casa de alguém”, conforme texto publicado no site do movimento. O bloqueio a rodovias e avenidas é outra maneira escolhida pelo movimento, que enxerga, nessa atividade, uma “forma de chamar atenção para as reivindicações dos trabalhadores”. Ao se denominar inimigo do capitalismo, afirma que outra função dos bloqueios é a de “gerar um imenso prejuízo aos capitalistas”, informa.
Em nota divulgada pelas redes sociais, o movimento deixou claro, entre outras coisas, que é composto por famílias vítimas do aluguel, do puxadinho ou da moradia precária, que não faz cobrança de taxa em suas ocupações, que foca suas ações em terrenos abandonados, sem função social e, em geral, nas periferias, e que sua ação nasce da luta por moradia digna, direito garantido na Constituição Federal de 1988.
Criado em julho de 1990 no 1º Encontro Nacional dos Movimentos de Moradia, conta com representações em pelo menos 14 estados. Encontra em entidades como o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Central de Movimentos Populares, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o MST apoiadores da causa.
Em março deste ano, o movimento se uniu a outras organizações na ocupação da sede do Ministério das Cidades, em Brasília. O objetivo da ação foi protestar contra o que os movimentos classificaram como falta de transparência da Portaria 162, de 28 de fevereiro deste ano, que apresentou os resultados da seleção de projetos habitacionais para contratação do programa Minha Casa Minha Vida.
No ano passado, o MNLM participou da ocupação da sede da Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro. Em 2006, 60 famílias ligadas ao movimento tomaram um prédio em Porto Alegre que teria sido alugado por uma facção criminosa, com objetivo de, a partir dele, assaltar agências bancárias próximas por meio de um túnel subterrâneo.
O LMD era o responsável pela ocupação no edifício Wilton Paes de Almeida. Segundo informações prestadas pelo coordenador do movimento, Ricardo Luciano, ao jornal O Estado de S.Paulo, os moradores contribuíam com R$ 80 para manutenção dos serviços de manutenção. Mas ainda de acordo com a publicação, integrantes do Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM) afirmaram que a taxa variava entre R$ 250 e R$ 500.
Ao portal BuzzFeed News, boa parte dos moradores informou que pagava R$ 210 aos coordenadores do movimento. E que, ainda que fosse um pagamento obrigatório, pelo menos uma moradora relatou que parou de pagar e permaneceu como moradora do prédio. A Folha de S.Paulo apurou que, além das taxas, moradores apresentaram carnês e recibos, e alguns integrantes da ocupação informaram que o movimento chegava a cobrar juros.
A Gazeta do Povo não conseguiu contato com a liderança do LDM. Diferentemente de outros semelhantes, o movimento não tem um site nem conta com perfis em redes sociais.
No dia 15 de outubro de 2017, a Frente de Luta por Moradia (FLM) publicou uma carta aberta em seu site, destinada a “excelências do Executivo, Legislativo e Judiciário” e a “homens e mulheres de bem”, em que informava que centenas de famílias sem tetos, incluindo homens, mulheres, jovens e idosos, organizados pelo movimento, realizaram em diversas comunidades em São Paulo “várias ocupações de terras e prédios”. Segundo o documento, as propriedades estavam “fora da lei” por não cumprirem “sua função social.
A carta, com o título “Sem tetos querem terras e prédios abandonados para construir, reformar e morar”, pedia que os imóveis fossem requisitados pelo poder público para que estivessem à disposição das famílias sem teto. “É uma marcha justa para o futuro de nossas famílias”, concluía o documento.
No ano passado, em parceria com a União dos Movimentos de Moradia, conseguiu, a partir da formação de uma chapa, eleger um representante para participar do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo.
A FLM tem como parceira a Central de Movimentos Populares, ligada ao PT e que congrega diversos movimentos. E junto com a Associação Sem Teto do Centro (ASTC), e Movimento de Moradia da Região do Centro (MMRC), integram a Ocupação Mauá, que está há mais de dez anos em um prédio no centro de São Paulo. Segundo o coordenador do movimento, Osmar Borges, a FLM conta com “15 ocupações e mais de 4 mil moradores cadastrados”.
Criada em 1989, a UNMP organiza movimentos populares de moradia a partir dos estados. Neles estão movimentos de sem-teto, cortiços, favelas, loteamentos, mutirões e ocupações. O movimento tomou corpo a partir do processo de coletas de assinaturas para o Primeiro Projeto de Lei de Iniciativa Popular, que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e o Conselho Gestor do fundo.
O movimento defende a autogestão, o direito à moradia e à cidade e a participação popular nas políticas públicas. Se define ainda radicalmente contra os despejos e informa, em seu site, que sua atuação se traduz em “reivindicações, lutas concretas e propostas dirigidas ao poder público nas três esferas de governo”, por meio de “negociações e ações propositivas, sem deixar de lado as ferramentas de luta e pressão do movimento popular”.
Organizações coletivas ou movimentos sociais?
Andrea Braga, professora do Núcleo de Direitos Humanos e do curso de Serviço Social da PUC-PR, defende que é importante separar o que são movimentos sociais do que classifica de organizações coletivas, que em muitos casos atuam com os mesmos objetivos.
A especialista lembra que movimentos como o MNLM, o UNMP e o Conam, por exemplo, por sua articulação na luta por moradia e seu diálogo com o governo, conseguiram, por exemplo, contribuir para a elaboração do programa Minha Casa Minha Vida. As organizações participam do Fórum Nacional de Reforma Urbana, que reúne também organizações não governamentais, instituições de pesquisa e associações de classe com objetivo de lutar por políticas que garantam moradia de qualidade, água e saneamento, transporte acessível e eficiente.
“O movimento social tem essa característica de definição de bandeiras e princípios, para criar mobilizações por determinadas pautas coletivas”, analisa Andrea. E contam com a possibilidade de interlocução com agentes do governo para apresentar suas reivindicações.
Já movimentos como o LDM, que liderou a ocupação no prédio que desabou no dia 1º, na visão da professora integram uma rede articulada de coletivos, “que compõem a defesa do que entendemos como direito a moradia, que está previsto constitucionalmente”, pondera. Para ela, ainda que de maneiras diferentes, tantos os movimentos sociais quanto as organizações coletivas acabam por defender a mesma ideia de dar a terrenos e prédios desocupados um tipo de função social – no caso das ocupações, a de moradia popular.
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