Quantas vezes você já ouviu alguma crítica ao “jeitinho” brasileiro? Muitas vezes, a nossa capacidade de adaptação frente às circunstâncias é tratada de forma pejorativa – mas há exceções, e uma delas é o que ocorreu em meio à pior recessão da história do país.
Com a economia em frangalhos, o brasileiro precisou se virar. Para pagar as contas, para continuar consumindo, para sobreviver. Esse processo, que mistura resiliência e iniciativa, acabou gerando uma retomada da economia à prova de crise política.
No início de setembro, a divulgação do Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre confirmou a tendência de crescimento: foi um leve aumento, de 0,2% em relação ao trimestre anterior. Ainda é muito pouco, mas é um alento ter um segundo registro seguido de crescimento após anos no fundo do buraco.
Se nos primeiros três meses do ano foram a excelente safra agrícola e as exportações em alta que deram aquele empurrãozinho, nesse segundo trimestre o bom desempenho veio graças ao setor de serviços, na ótica da oferta, e ao consumo das famílias, pelo lado da demanda, que fizeram a economia crescer.
Enquanto o crescimento em investimentos não vem, a retomada da economia puxada por serviços e consumo indica que mais dinheiro voltou a circular nas ruas – e isso é possível porque há mais pessoas trabalhando. Essa “economia da rua” foi uma mistura de bicos, rede informal de apoio e empreendedorismo, que fizeram a diferença e trouxeram resultados com a queda do número de desempregados.
INFOGRÁFICO: Entenda como o brasileiro “se virou” para escapar da crise
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada no fim de agosto pelo IBGE, mostrou que a taxa de desocupação e a população desocupada caíram, na comparação entre o trimestre de maio a julho e o imediatamente anterior. São 721 mil pessoas que conseguiram arrumar algum tipo de trabalho.
E, nesse caso, foi o mercado informal, o do trabalho sem carteira assinada, que acabou absorvendo mais gente: pelo menos 468 mil pessoas conseguiram um “bico”. O restante decidiu empreender, o trabalho por conta própria, ou voltou a ser assalariado – os dois indicadores se mantiveram estáveis no período.
Para se virar, até bala de goma entrou na roda
“Meu nome é Marta e, como muitos de vocês, estou desempregada. Mas preciso pagar meu aluguel, minhas contas e colocar comida na mesa. Por isso, estou aqui vendendo balinhas de goma – tem de iogurte, de frutas e de menta. É só R$ 1”.
Marta é uma mulher que vende balas nos ônibus de Curitiba – foi a maneira que ela encontrou de se virar e conseguir algum dinheiro. É comum encontrá-la circulando em biarticulados, muitas vezes lotados, oferecendo os produtos.
Seu “negócio” é simples: mochila com pertences, caixa com as balas e uma pochete para guardar o dinheiro recebido. Se no auge da crise poucos se arriscavam a gastar R$ 1 que fosse fora do orçamento, agora já é mais comum ver os pedidos aumentando e os outros passageiros levando mais de um pacote de gomas.
Esse é um exemplo do que virou realidade para muitos brasileiros. O economista Raul Luis Assumpção Bastos, da Fundação de Economia e Estatística (FEE) do Rio Grande do Sul, lembra que o Brasil está saindo lentamente de um processo recessivo, com uma contração econômica muito acentuada entre 2015 e 2016.
“O que acontece num contexto como esse é que as pessoas buscam estratégias de sobrevivência, como o trabalho por conta própria e também a criação de empregos sem carteira. É muito difícil reconhecer nessa estratégia de sobrevivência uma alternativa mais promissora para as pessoas no mercado de trabalho”, pondera.
O número de trabalhadores sem carteira assinada subiu para 10,7 milhões, no trimestre móvel de maio a julho, de acordo com a Pnad. Isso representa um aumento de 0,9% em relação ao período anterior, mas é o mesmo patamar do último trimestre de 2013, antes mesmo de a crise chegar. Já o trabalho por conta-própria é a ocupação de pelo menos 22,6 milhões de brasileiros, num patamar que vem se mantendo estável ao longo da crise.
Para que as perspectivas de mercado de trabalho ficassem mais interessantes e promissoras, o desempenho macroeconômico, representado por taxas de crescimento, precisa ser mais expressivo. Essa retomada de atividade econômica que já está ocorrendo, ainda que pouco expressiva, já produz impacto para reduzir a taxa de desocupação.
“Mas como viemos de uma contração econômica muito acentuada e como a recuperação é muito lenta e com taxas modestas, é possível que essa recuperação se dê num contexto de formas de inserção mais precárias no mercado de trabalho”, pondera.
A luz no fim do túnel
Com o mercado de trabalho ensaiando uma retomada, ainda que em condições precárias, o dinheiro volta a circular. Até mesmo para tirar o nome dos serviços de proteção ao crédito. Dados de inadimplência do Banco Central mostram que a taxa de inadimplentes entre pessoas físicas caiu para 3,95% em julho deste ano – é o mesmo patamar médio de 2015 e é inferior aos anos anteriores ao da crise econômica, onde o consumo até saiu dos eixos, com muita gente gastando mais do que ganhava.
E o comércio também dá sinais de recuperação: o índice de volume de vendas no comércio varejista fechou junho com -0,1%, no acumulado do ano, de acordo com a Pesquisa Mensal de Comércio do IBGE. O resultado ainda é negativo, mas é o menor desde fevereiro de 2015, quando a situação se agravou.
Essa retomada do comércio também tem parte de seu sucesso explicada pelos pequenos negócios. Um levantamento do Sebrae aponta que cerca de 50,6 milhões de brasileiros possuem renda gerada por esse setor.
“Os pequenos negócios tiveram e estão tendo um papel fundamental na recuperação da economia brasileira. Em 2016, o Brasil atingiu a segunda maior taxa de empreendedorismo, de 36%. A primeira foi registrada em 2015, quando quatro de cada 10 brasileiros queriam empreender. Com o aumento do desemprego, e com a perda do poder aquisitivo, muitas pessoas começaram a procurar o empreendedorismo como complementação de renda ou como opção de renda”, avalia o analista de gestão estratégica do Sebrae, Marco Bedê.
Uma explicação do sucesso desse nicho é que as pequenas empresas acabam sendo mais resistentes à crise. “Apesar de muitas empresas fecharem as portas, o número de pequenos negócios no Brasil vem aumentando ano a ano. Isso porque os pequenos negócios atuam mais especificamente no mercado de vizinhança, e por isso, tendem a sentir menos os efeitos da crise”, argumenta.
Mas só isso é suficiente? Para, Bedê esse é um ponto de partida. “No momento, paramos de descer a ladeira – e a subida será lenta. Some-se a isso a dificuldade de termos um ambiente de negócios mais favorável, com menos incertezas, com regras claras e que estimulem o setor produtivo no lugar de incentivar o consumo”, avalia. O momento atual é um respiro, um indicativo de que é possível reinventar-se para sair do buraco. Mas deixar a crise para trás definitivamente vai exigir mais que só a capacidade de “se virar” do brasileiro.
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