“Lame duck” – pato manco, na tradução literal – é uma expressão dos EUA designada para os políticos que ainda estão no mandato, mas já tiveram os sucessores escolhidos. O termo sugere que o político nessa condição não tem mais força e passa os dias restantes no cargo apenas cumprindo tabela, esperando a hora de entregar a faixa ao novo encarregado.
Michel Temer é, tecnicamente, um “lame duck”, já que está a poucos dias de passar o bastão presidencial a Jair Bolsonaro. Mas o governo do emedebista tomou, nos últimos dias, decisões que contrariam a máxima do gestor em contagem regressiva. Ações em campos variados como infraestrutura, segurança e esportes revelam um vigor inesperado – a essa altura – do governo Temer e despertaram preocupação na equipe do futuro presidente da República.
LEIA TAMBÉM: De repente, uma estatal: a 11 dias do fim do governo, Temer cria empresa pública
Alta voltagem
O setor da energia elétrica é um dos mais influenciados por esses atos finais do governo Temer. Na sexta-feira (28), o emedebista publicou um decreto em que determina o fim progressivo, no prazo de cinco anos, dos subsídios na conta de luz. São acréscimos no preço da eletricidade, pagos por todos os brasileiros, que deveriam servir para financiar projetos específicos como a iluminação rural, mas acabaram saindo de controle e custeiam, nos dias atuais, até mesmo projetos de saneamento.
A redução dos subsídios era uma das principais bandeiras do ministro das Minas e Energia, Moreira Franco. Ele promoveu outra medida de impacto também nesta sexta-feira: o leilão da Companhia Energética de Alagoas (CEAL), última subsidiária da Eletrobras colocada à venda no ano. O certame teve como vencedora a Equatorial Energia, que opera também no Maranhão e no Pará.
LEIA TAMBÉM: A ‘facada’ de Paulo Guedes no Sistema S pode criar empregos?
Ainda no campo da eletricidade, houve também no dia 28 a publicação de uma portaria que ampliou o mercado livre no consumo de energia, que é aquele em que os grandes consumidores podem optar por qualquer prestador de serviços da área. Pelo novo texto, quem consumir acima de 2.500 kW já pode estar enquadrado no mercado livre. O Ministério adiantou que a expectativa para 2020 é que a barreira seja reduzida para 2.000 kW.
Estrutura
O dia 28 viu também a edição, por parte de Temer, de uma medida provisória que cria novas regras para a contratação de empresas de saneamento básico. A norma determina que as prefeituras precisam fazer licitações em toda contratação do setor – pela regra anterior, a licitação poderia ser dispensada se uma empresa pública entrasse nas negociações.
A medida foi celebrada por empresas do setor, que veem uma ampliação do mercado – algo que se encaixa com as diretrizes do governo Bolsonaro, que promete ser defensor da livre iniciativa. Já as contestações à ideia vão na linha de que as empresas públicas poderiam oferecer serviços mais baratos para prefeituras pobres, algo desinteressante para as companhias particulares.
Ainda na área da infraestrutura, outra ação recente de Temer foi a sanção da Lei 13.786/2018, chamada de Lei do Distrato. A norma estabelece que consumidores que desistirem da compra de um imóvel negociado na planta terão que pagar multa de 50% do valor já dado.
A proposta foi considerada abusiva por entidades de defesa do consumidor, que apontaram que as punições costumeiramente aplicadas ficavam na casa de 10% a 20% de multa. Já os empresários da área alegam que a compensação mais elevada traz “segurança jurídica” e permite a realização de mais investimentos.
Segurança
Também no apagar das luzes de seu governo Michel Temer instituiu o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSP). O decreto com a norma foi firmado na quinta-feira (27).
O plano terá 10 anos de validade e enfocará diversos segmentos do combate à violência, como metas para a redução de homicídios, da violência doméstica e repressão ao crime organizado. A proposta também busca ampliar a atuação dos municípios na promoção da segurança, com a defesa social e a melhoria das condições do sistema prisional.
LEIA TAMBÉM: Temer deve assinar novo indulto natalino que exclui condenados por corrupção
É o quarto plano nacional para a segurança apresentado desde 2000. Os anteriores foram anunciados pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, em 2000, por Luiz Inácio Lula da Silva em 2007 e Dilma Rousseff em 2012. A violência foi um dos temas mais abordados pelo então candidato Jair Bolsonaro na corrida presidencial, por conta dos mais de 60 mil homicídios registrados no Brasil em 2017.
Outra decisão na área de segurança dos últimos dias – mais especificamente, da sexta-feira (28) – foi a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD). O órgão será vinculado à Presidência da República e atuará em temas como controle de privacidade, especialmente na área digital.
Gol contra
Uma das mais controversas medidas tomadas pela gestão Temer nos últimos dias foram os cortes no programa Bolsa Atleta, divulgados na sexta (28). A decisão do emedebista reduziu o orçamento do projeto de R$ 150 milhões para R$ 53,6 milhões e extinguiu bolsas a esportistas jovens e das categorias de base.
O Bolsa Atleta foi iniciado em 2004 e é uma das principais fontes de sustento dos esportistas iniciantes ou que praticam modalidades com menos patrocínios. Para o pagamento, os atletas são divididos em níveis, de acordo com critérios como idade e resultados obtidos ao longo da carreira.
Em 2016, o projeto contemplou 7.223 atletas. De acordo com a previsão orçamentária divulgada no dia 28, o total de beneficiários em 2019 será 3.058.
Ação e reação
Ainda na quinta-feira (27), mesmo antes das últimas medidas do pacote final de Michel Temer, a equipe de Jair Bolsonaro divulgou à imprensa um documento chamado “Agenda de Governo”, que, além de estabelecer prioridades para o início da nova gestão, indicou que será promovido um “pente fino” sobre os últimos atos do emedebista. A revisão deverá ser concluída nos primeiros 10 dias de governo e terá como foco os últimos 60 dias de trabalho de Temer e sua equipe.
O texto prevê a possível revisão de atos normativos legais ou infralegais e o esforço para a identificação de sobreposições e lacunas na estrutura governamental. O futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, declarou que o documento mostra que a equipe de transição “não trabalha com improviso” e apontou que a gestão Bolsonaro fará revisões periódicas do desempenho do governo. Há ainda o temor de que Temer deixe para a nova equipe “bombas fiscais”, como emendas no orçamento aprovadas por deputados federais e senadores.
LEIA TAMBÉM: Como ficam os enroscos de Temer na Justiça quando ele perder o foro privilegiado
Apesar das declarações dos últimos dias, o clima entre o atual e o futuro governo transcorreu em relativa paz durante o período pós-eleitoral. Em reunião no início de novembro, Bolsonaro disse que “muita coisa” feita pelo governo Temer seria mantida e o emedebista convidou o futuro presidente para acompanhá-lo na reunião do G-20, que ocorreu na Argentina. Bolsonaro declinou por motivos de saúde.
Outros exemplos
Os dois últimos presidentes que deixaram o mandato em 31 de dezembro, FHC (em 2002) e Lula (em 2010), também promoveram atos de impacto nos últimos dias de gestão.
Tanto o tucano quanto o petista emitiram sete medidas provisórias no período entre os dias 27 e 31 de dezembro. No caso de Lula, chamou a atenção o fato de que ele havia promulgado apenas uma MP no restante do mês.
Uma das MPs editadas por FHC trazia medidas de proteção à indústria de computadores, ao isentar do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) as máquinas que custavam até R$ 11 mil reais. O tucano também prorrogou a alíquota de 27,5% do Imposto de Renda da Pessoa Física até o final de 2003, ação que ampliou em R$ 950 milhões a arrecadação vinculada ao tributo.
Já Lula, no último dia de 2010, tomou uma decisão que causa efeitos até os dias atuais: a recusa à extradição de Cesare Battisti, militante político italiano acusado de homicídios em seu país. Com a medida do ex-presidente, o italiano conseguiu permanecer no Brasil e vivia aqui em liberdade até o dia 13, quando o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), ordenou sua prisão. Battisti está foragido desde então.