Em 21 de fevereiro, durante uma audiência no Senado, a ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves, disse que havia identificado casos de corrupção na Fundação Nacional do Índio (Funai) e que, por conta disso, determinara uma auditoria nos contratos da instituição:
“Senadores e deputados, me surpreendo com cada caixinha que eu abro naquela Funai”, afirmou, em referência a um suposto status de “corrupção generalizada” que marcaria a fundação.
A fala de Damares no Senado endossou uma suspeita que a ministra apresentou em janeiro, quando indicou ter conhecimento de corrupção na instituição e falou, pela primeira vez, da ideia de instalar um “pente fino”. De lá até os dias atuais, a Funai confirma que “os contratos estão sendo auditados”, e que “os resultados serão divulgados após a conclusão dos trabalhos”.
A apresentação lacônica do que tem sido feito para coibir a corrupção na entidade tem no tamanho da Funai uma de suas explicações. A entidade é a responsável pela política indigenista brasileira - o que dá a ela a incumbência de operar sobre 13% do território nacional. Para atender as demandas, a Funai historicamente recorreu a parcerias com organizações não-governamentais (ONGs), nacionais e estrangeiras. Esse tipo de relacionamento também entrou no radar de Damares. “Chega do ativismo das ONGs e das indicações políticas na Fundação”, escreveu a ministra em janeiro.
Dados obtidos pela Gazeta do Povo via Lei de Acesso à Informação indicam que, atualmente, a Funai tem 81 processos abertos para a apuração de possíveis casos de corrupção, irregularidades e fraudes em licitações e contratos. Em 2018, 14 processos tiveram seus trabalhos concluídos, sem que nenhuma demissão fosse executada. Até o momento, o quadro se repete também em 2019.
Investigações na Funai por improbidade administrativa e corrupção
Quando levantou a possibilidade de fazer um “pente fino” na Funai, em janeiro, a ministra Damares criticou o descompasso que existe entre as instalações da sede da fundação, em Brasília, e os escritórios regionais. “Acha justo, aqui na sede, um prédio lindo, chique, e lá na ponta não ter um ventilador para o servidor? Eu vi sede da Funai em casinha, caindo”, disse.
A base da fundação em Brasília realmente representa parte dos problemas vividos no órgão. O atual presidente da fundação, general Franklimberg Ribeiro de Freitas, e seu antecessor, Wallace Moreira Bastos, estão sendo investigados por improbidade administrativa na Funai, após denúncia do Ministério Público Federal (MPF), em fevereiro. Eles teriam responsabilidade pelo não cumprimento de um termo de ajustamento de conduta referente a um processo de demarcação de terras no Mato Grosso do Sul, ocorrido em 2008.
Franklimberg está no comando da Funai desde 14 de janeiro. A atual é sua segunda passagem pela presidência da fundação - ele ocupou a função anteriormente entre janeiro de 2017 e abril de 2018, no governo de Michel Temer. Ele foi desligado do cargo no ano passado após pressões de líderes ruralistas.
RELEMBRE: Damares diz que há corrupção na Funai e que vai rever atuação de ONGs
O coordenador-geral de Tecnologia da Fundação, Bruno Rebello, também atuou na Funai entre 2017 e 2018, e voltou ao posto no último dia 7 de março. Mas diferentemente de Franklimberg, que saiu da função por divergências administrativas, Rebello havia saído da Funai por conta de acusações de corrupção. Ele teria operado para que a Funai contratasse uma empresa de informática com quem tinha vínculos. As informações são de reportagem do portal Metrópoles.
Outro episódio controverso que envolve a Funai e sugere mau uso do dinheiro público dentro da fundação foi a compra de móveis de alto padrão para a sede em Brasília. Foram adquiridas quatro mesas por R$ 19,7 mil cada e quatro poltronas por R$ 3,1 mil cada.A negociação feita em novembro do ano passado foi descoberta através do “pente fino” idealizado pela ministra Damares.
A ministra tem utilizado exemplos deste perfil para passar a ideia de que a Funai tem recursos para executar o que dela se espera, mas que não consegue produzir mais resultados por conta dos episódios de corrupção.
Corrupção na Funai: faltam nomes aos bois
Lideranças indígenas e a Associação Nacional dos Servidores da Funai (Ansef) criticaram as observações da ministra. A análise deles é a de que Damares falhou ao mencionar, de forma genérica, a existência de “caixas pretas” dentro da fundação, sem especificar - e punir - os responsáveis pelos desvios.
“Se existe corrupção, tem que se apontar quem são os corruptos, as pessoas responsáveis. E não sacrificar o órgão em detrimento de responsabilidades de indivíduos”, afirmou a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), a única representante dos povos indígenas na formação atual do Congresso Nacional.
O militante indígena Junior Xukuru, que em 2018 foi candidato a deputado federal pelo PSOL-DF, faz análise similar: “Se um rato está roubando a sua geladeira, você não vai jogar a geladeira fora; vai colocar uma ratoeira. O que a Damares junto com o Bolsonaro, está fazendo? Jogando fora a Funai. Porque os ratos vão continuar dentro da Funai, do Incra, da Casa Civil”.
E em nota enviada à Gazeta do Povo, a Ansef disse considerar as declarações de Damares sobre corrupção na Funai “muito tristes”. “Decisões estão sendo tomadas sem que, aparentemente, os gestores busquem conhecer a instituição, suas atribuições e complexidades, partindo de uma visão parcial do órgão indigenista”, relata a nota.
O texto contesta ainda a ideia de “pente fino”: “Quanto aos ‘pentes finos’ há sempre o perigo de quem os emprega, e com quais critérios e intenções. O rito legal do processo de investigação, que se fundamenta, sobretudo, na garantia da ampla defesa, não se coaduna com a ideia de sumarismo que a figura do “pente fino” pode ensejar”.
Do Ministério da Justiça para a pasta de Direitos Humanos
Além de episódios de corrupção, uma controvérsia que tem marcado a Funai nos primeiros meses da gestão de Jair Bolsonaro é o posicionamento da fundação dentro da estrutura do governo federal. A Funai, historicamente, esteve vinculada ao Ministério da Justiça, mas Bolsonaro optou por inseri-la na pasta de Direitos Humanos.
A medida foi contestada por lideranças indígenas desde sua efetivação, em 2 de janeiro, e recentemente foi alvo de uma nota técnica do MPF, que pediu o retorno da Funai à Justiça. O MPF alega que o Ministério da Justiça seria um “campo neutro” para a gestão de conflitos que envolvem a população indígena.
Veja também: Por que Bolsonaro desistiu de ‘comemorar’ e agora só vai ‘rememorar’ o golpe de 1964
A utilização da expressão “campo neutro” remete a outra circunstância que envolve indígenas neste início de ano, e que também foi abordada pelo MPF na mesma nota técnica. Trata-se da decisão de determinar que as demarcações de terras sejam gerenciadas pelo Ministério da Agricultura, em vez da Justiça. A crítica a essa decisão se pauta na hipótese de que a Agricultura tenderia a privilegiar demandas dos empresários do agronegócio, assim negligenciando as pautas dos indígenas.
“Colocar demarcação indígena num ministério que defende agronegócio, que é um dos principais setores que disputam terras com a comunidade indígena, mostra que visivelmente governo já está tomando partido de quem vai apoiar”, afirmou Joênia Wapichana.
CPI da Funai
A ofensiva atual sobre possíveis irregularidades na Funai não é a primeira já registrada. Entre 2015 e 2017, a Câmara dos Deputados moveu uma CPI voltada à instituição. A comissão teve como foco supostas fraudes em demarcações de terra produzidas pela fundação e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A relatoria da CPI ficou com o então deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), ligado à bancada ruralista. Em seu texto final, o tucano pediu o indiciamento de 67 pessoas, entre antropólogos, indígenas, servidores da Funai e membros do Ministério Público. Leitão chegou a esboçar uma versão inicial do relatório em que pedia a extinção da Funai, mas acabou, na definitiva, optando por indicar uma “reformulação” na fundação.
A peça foi contestada por parlamentares de esquerda e pelo MPF, que disse que a CPI teria extrapolado suas funções e atuado de maneira parcial.