Depois de impor uma derrota significativa para a Lava Jato na semana passada, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) vão analisar mais um caso que pode influenciar a operação nesta quinta-feira (21). Desta vez, julgam se a Receita Federal pode compartilhar dados bancários e fiscais de contribuintes com o Ministério Público para auxiliar em investigações criminais.
O caso, de relatoria do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, chegou ao Supremo através de um recurso do MP contra uma decisão do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF-3). O tribunal anulou um processo-crime porque as provas estavam baseadas exclusivamente em informações obtidas pela Receita Federal e compartilhadas com o Ministério Público.
Por lei, o Fisco não precisa de autorização judicial para obter dados bancários e fiscais de contribuintes quando investiga suspeitas. O mesmo não ocorre, porém, com o Ministério Público. Se um procurador ou promotor de Justiça precisar desse tipo de dado, precisa de autorização judicial para quebrar o sigilo dos investigados. Outro ingrediente deixa o caso ainda mais complexo. A Receita Federal é obrigada a notificar o Ministério Público se encontrar indícios de crimes em suas análises.
Esse é um dos argumentos do Ministério Público Federal (MPF) no julgamento. “Se o Fisco está legalmente obrigado a comunicar ao Ministério Público indícios da prática de crimes, como sustentar que para o uso de tais dados seria necessária ordem judicial?", questiona. Para o MPF, exigir que dados bancários e fiscais, nesses casos, sejam obtidos apenas com autorização judicial, “seria instituirmos mais uma instância burocrática para o Estado brasileiro".
O caso chega ao plenário curiosamente semanas após uma confusão envolvendo a Receita Federal e um ministro da Corte. Dados de uma apuração da Receita Federal envolvendo o ministro Gilmar Mendes e outras 130 pessoas vazaram e causaram mal estar em Brasília. A Receita Federal se apressou em dizer que não encontrou irregularidades na análise de Gilmar, e o ministro da Justiça, Sergio Moro, determinou que a Polícia Federal investigue o vazamento da apuração.
Juristas defendem que compartilhamento seja negado
Os ministros afirmam que o julgamento desta quinta-feira (21) terá repercussão geral, ou seja, vai valer para todos os casos envolvendo o compartilhamento de dados entre Receita Federal e Ministério Público, em todo o país – inclusive para os casos da Lava Jato. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) atua no processo como “amicus curiae”, quando uma entidade com experiência no assunto é convidada a dar sua opinião sobre o tema.
Coordenadora-adjunta do Departamento de Amicus Curiae do IBCCrim, Débora Nachmanowicz argumenta que a Constituição garante o direito à privacidade e, por isso, o compartilhamento não deve ser autorizado. “O artigo 5.ª [da Constituição] prevê o sigilo financeiro como uma garantia. Dessa forma, essa quebra [de sigilo] só pode acontecer se for observada a regra de reserva de jurisdição, ou seja, se tiver autorização judicial”, explica. “O que o Ministério Público está querendo é colocar roupagem de legalidade em uma ação que é ilegal, que seria essa transferência de sigilo”, completa.
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Para o especialista em Direito Penal e Processual Penal, João Rafael Oliveira, permitir que os dados sejam compartilhados entre Receita e MP sem autorização judicial é uma flexibilização muito grande de direitos fundamentais.
“Toda vez que o Ministério Público precisar de informações sobre dados fiscais e bancários para avançar na sua investigação, ao invés de pedir para um juiz autorizar, simplesmente vai mandar ofício para a Receita Federal e haverá ali um compartilhamento de dados. É um avanço muito maior no que diz respeito à flexibilização de direitos fundamentais”, argumenta.
Para Oliveira, investigações da Receita Federal, que têm um caráter tributário, são muito diferentes de investigações penais realizadas pelo Ministério Público, que têm consequências mais graves – inclusive a perda da liberdade, outro direito fundamental.
“A investigação só tem autorização para ir para esses dados quando demonstrar que esses dados são imprescindíveis para a apuração de um crime. Não pode sair devassando a vida dos cidadão”, argumenta Oliveira.
“A investigação criminal traz junto dela a principal das garantias, que é o contraditório e a ampla defesa”, concorda Nachmanowicz. “A quebra de sigilo bancário, dessa maneira, é uma violação indevida da intimidade pelo próprio Estado, que já tem o monopólio de toda repressão. O que a gente entende é que é preciso balizar essa discussão, parar com essa ânsia punitiva para ter algum tipo de controle sobre os poderes do Ministério Público”, completa a advogada.
Burocracia?
À primeira vista, parece estranho que a Receita Federal seja obrigada a informar o Ministério Público se encontrar indícios de crime, mas não possa compartilhar provas que levaram o Fisco à essa suspeita. O próprio MPF argumenta isso ao recorrer ao STF, ao dizer que exigir autorização judicial para quebrar o sigilo bancário e fiscal de investigados seria instituir “mais uma instância burocrática para o Estado brasileiro”.
“De fato é contraproducente, é uma burocracia estranha, mas é justamente para isso que existe o processo penal e as garantias constitucionais, para limitar o poder do Estado”, argumenta Oliveira. “Por mais prático que isso possa ser [compartilhar os dados entre os órgãos], pode se tornar uma carta em branco”, alerta.
“A gente não pode fazer raciocínio utilitarista”, continua o advogado. “A violação do direito à privacidade que venha a acontecer pelo bel prazer do Ministério Público porque estava, naquele momento, querendo encontrar alguma coisa sem passar pelo crivo judicial é muito mais gravoso do que qualquer encontro de um crime”, ressalta.
O que a Lava Jato tem a ver com isso?
Até esta quarta-feira (20), nenhum procurador da Lava Jato em Curitiba havia feito nenhum comentário sobre o julgamento no STF a respeito do compartilhamento de dados. A assessoria de imprensa do MPF informou que o órgão não vai se manifestar sobre o assunto.
O silêncio ocorre depois de uma derrota significativa imposta pelos ministros do STF à força-tarefa, ao decidirem que crimes comuns cometidos junto com crimes eleitorais devem ser investigados em conjunto, pela Justiça Eleitoral, e não pela Justiça Federal.
O julgamento desta quinta-feira (21) também é importante para o futuro da operação. Desde 2014, o Ministério Público Federal atua em conjunto com a Polícia Federal e com a Receita Federal nas investigações do caso.
A Receita Federal mantém uma página da internet no ar com informações sobre a atuação na operação. O órgão informa que “participou na investigação da operação Lava Jato, em conjunto com órgãos externos como o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, desde antes de sua deflagração ostensiva, por meio de cruzamentos e análise de dados internos realizados pela projeção de pesquisa e investigação”.
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A Receita Federal é responsável por investigar crimes fiscais cometidos pelos investigados da Lava Jato. Os auditores auxiliam no trabalho de investigação de empresas de fachada, por exemplo. Desde 2014, a Receita Federal afirma ter instaurado 2.971 procedimentos fiscais relacionados à operação.
“Também foram formalizadas e encaminhadas à Força Tarefa do Ministério Público Federal em Curitiba 327 Representações Fiscais para Fins Penais, nos casos em que a autoridade fiscal responsável pela fiscalização identificou fato que, em tese, configurou crime contra a ordem tributária ou de lavagem de dinheiro”, informa o site da Receita Federal.
Participação da Receita Federal na Lava Jato
Entre os casos que tiveram auxílio da Receita Federal está a investigação envolvendo os marqueteiros João Santana e Mônica Moura - hoje delatores do esquema. A Receita Federal encontrou divergências nas declarações de imposto de renda do casal e identificou um aumento de R$ 1 milhão para R$ 59 milhões no patrimônio dos dois em dez anos.
A Receita Federal também foi responsável por encontrar o recebimento de R$ 1,4 milhão da empresa JD Consultoria por uma empresa de um dos operadores do esquema de corrupção da Petrobras. A JD Consultoria pertence ao ex-ministro José Dirceu - condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
A depender do resultado do julgamento no STF, parte das provas obtidas pelo Ministério Público na Lava Jato pode ser anulada, segundo Oliveira. “Se o STF entender que não pode compartilhar [dados bancários e fiscais], ou que pode compartilhar só em alguns casos, todas as hipóteses em que houve compartilhamento sem autorização do Poder Judiciário, essas provas serão nulas e também serão nulas as demais provas delas decorrentes”, diz.
Lava Jato não pode interferir no debate, dizem advogados
Mesmo assim, os advogados ouvidos pela reportagem defendem que a Lava Jato não deve ser usada como argumento para permitir o compartilhamento desse tipo de dado. “A opinião da sociedade não pode balizar as decisões do STF. O STF está lá para defender e seguir a Constituição”, defende Nachmanowicz.
“Esse é um tema que não diz respeito tão e somente à Lava Jato, diz respeito a todas as investigações criminais no país. Essa decisão vai representar uma validade para todos”, ressalta Oliveira. “Quando você dá plenos poderes aos órgãos persecutórios do Estado, você tem a necessidade de limitá-los. Há uma grande possibilidade daquele poder ser exercido de forma arbitrária. É uma tendência do poder ser arbitrário, por isso precisa ser limitado. Daqui a pouco está sendo utilizado para perseguições políticas, é isso que a gente não pode permitir em um Estado Democrático de Direito”, completa.
STJ já permitiu compartilhamento
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já tratou do assunto no ano passado. Na ocasião, uma decisão da 5.ª Turma permitiu o compartilhamento de dados obtidos pela Receita Federal em uma investigação com o Ministério Público. Naquele caso, segundo Oliveira, havia uma diferença importante: a investigação era sobre crimes tributários.
“Como a Receita Federal tem o dever de encaminhar o processo administrativo que tramita por ela ao Ministério Público quando verifica ocorrência de crime, naquele caso enviou tudo, inclusive dados bancários”, explica o advogado.