Sancionada pelo presidente Michel Temer no apagar das luzes de 2017, a lei que mantém um regime especial de tributação para o setor de petróleo foi cercada de uma polêmica trilionária. Um técnico da Câmara dos Deputados estimou que a medida provisória (MP) 795, que deu origem à lei, resultaria na perda de R$ 1 trilhão em receitas para os cofres públicos. Os dados foram desmentidos pelo governo e por outros técnicos do Legislativo, mas o estrago estava feito: o debate girou em torno desse valor.
Esse número, divulgado em nota técnica da Consultoria Legislativa da Câmara em outubro, foi utilizado pela oposição ao governo para criar comoção pública e combater a reforma da Previdência, sob o argumento de que o governo estaria concedendo benesses para as petroleiras, mas prejudicando as regras de aposentadorias dos brasileiros.
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Tanto o Ministério da Fazenda como a Câmara partiram para a defesa da MP, pontuando erros grosseiros que haviam sido cometidos no estudo. Como base de comparação, R$ 1 trilhão corresponde a 85% de todas as receitas obtidas pelo governo federal em um ano. Também é comparável a toda a riqueza gerada em um ano em países do tamanho da Dinamarca, África do Sul ou Hong Kong.
Apesar de comprovado o erro, a MP de fato concede às petroleiras perdões de dívidas com a Receita, cria benefícios definitivos para a importação de materiais, e posterga reduções de impostos até 2040, que podem chegar a R$ 85 bilhões em algumas estimativas. Ela foi aprovada pelo Congresso no começo de dezembro e sancionada com três vetos. Temer não vetou a maior mudança feita pelos parlamentares: a que estendeu a validade da medida de quatro para 23 anos.
Veja abaixo a explicação dos principais pontos da MP e outros que passaram batido no debate sobre a medida:
A estimativa que falava em renúncias de R$ 1 trilhão estava errada?
Sim. No estudo inicial, feito por um técnico da Câmara, foram consideradas premissas erradas. A começar pelo valor do barril de petróleo que cabe ao governo em cada leilão de áreas do Pré-sal. Na projeção, o técnico excluiu duas vezes da conta o valor do barril que caberá ao governo na hora da divisão da produção, existente no regime de partilha, praticado no pré-sal.
Outro erro do cálculo foi considerar que o governo sempre irá obter 20% da produção da petroleira como excedente em óleo no regime de partilha. Pela regra vigente, o governo fixa um percentual mínimo que deverá receber como sua parte do óleo, mas esse piso é definido a cada edital de leilão. Além disso, o percentual final que será praticado depende da competição do leilão, pois a fatia da União em óleo é um dos pontos da oferta nos leilões. Como exemplo, o Ministério da Fazenda aponta que no leilão de Libra, o primeiro do pré-sal, a participação governamental foi de 41,65%, bem acima do estimado pelo técnico.
Há pelo menos mais um erro na conta de R$ 1 trilhão, que é o câmbio utilizado, ou a quantidade de barris que potencialmente podem ser extraídas no fundo do mar. O Ministério da Fazenda, ao refazer os cálculos, verificou que o estudo usou como premissa a estimativa de que o potencial do pré-sal é de 41,78 bilhões de barris, o que indica que o técnico deve ter utilizado uma taxa de câmbio sobrevalorizada em sua “conta de um trilhão”. Na verdade, estimativas do setor petroleiro brasileiro registram o volume potencial do pré-Sal brasileiro em 100 bilhões de barris, quase o dobro estimado pelo técnico da nota da Câmara.
Congresso aumentou o prazo dos benefícios em cinco vezes a previsão inicial?
Sim. A proposta original do governo era alongar os benefícios tributários do Repetro por mais quatro anos (até 2022). Mas, no Congresso, o relator da proposta na comissão mista, deputado Júlio Lopes (PP-RJ), aceitou emendas de parlamentares que aumentavam em cinco vezes o prazo, que foi estendido até 2040.
As emendas são de autoria dos deputados Jerônimo Goergen (PP-RS) e Otávio Leite (PSDB-RJ). Esse dispositivo da MP causou desentendimento entre os deputados e senadores. No plenário da Câmara, a MP foi aprovada conforme o relatório de Lopes, com benefícios por até 22 anos. Mas os senadores não aceitaram aprovar o texto com essa previsão e o texto teve de voltar para a Câmara, para ser aprovado nos últimos dias de atividade legislativa de 2017.
A MP perdoa multas do passado?
Sim. Esse é um dos mais polêmicos pontos da MP e que ficou obscurecido no debate. O texto aprovado pela Câmara pode perdoar R$ 38 bilhões em multas das petroleiras. O artigo 3º da MP 795 estabelece um regime de parcelamento de débitos tributários (Refis), para questões judicializadas pelas petroleiras. Pelo texto, multas e dívidas contraídas antes de 31 de dezembro de 2014 terão abatimentos nas multas e poderão ser pagas em até 12 vezes.
Essas multas e dívidas foram resultado de práticas de “planejamento tributário abusivo”. Segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), as empresas declaram que parte de suas receitas são enviadas ao exterior (para empresas offshore ligadas à prestadora de serviço no Brasil) com alíquota zero de imposto de renda, com o objetivo de irregularmente usufruir de benefícios fiscais que o regime especial de tributação das petroleiras concede às exportações e importações.
Ao permitir a renegociação das dívidas passadas, a MP pode estar beneficiando as petroleiras em até R$ 54 bilhões, considerando o estoque de dívida de R$ 38 bilhões, mais R$ 11,1 bilhões em multas devidas além de outros R$ 5 bilhões que são questionados na justiça.
Novo regime de importação de bens foi criado sem previsão de fim?
Sim. A MP criou uma nova regra para importação de bens, com a justificativa de evitar que as petroleiras praticassem manobras tributárias. Antes da MP 795, o Repetro aplicava-se apenas a bens que eram importados para admissão temporária no país, e algumas empresas se beneficiavam da medida incluindo no benefício itens que ficariam definitivamente no país, não apenas temporariamente. A regra anterior também estimulava as empresas a fazerem contratos de locação de equipamentos junto às suas filiais ou matrizes no exterior, para deduzir no IRPJ as despesas de locação.
Pela nova regra, todos os bens importados pelas empresas, dentro de uma lista de produtos definida pela Receita Federal, podem receber os benefícios do Repetro. A regra não tem prazo para acabar, bastando à Receita alterar a lista, o que independerá de aprovação do Congresso Nacional.
O governo vai deixar de arrecadar com a MP e vai tirar recursos de outras áreas?
Não é bem assim. A renúncia fiscal oficial com a MP apontada pelo governo federal é da ordem de R$ 32 bilhões, em 2018, 2019 e 2020. Esse é o valor oficial que deixará de ser arrecadado pelo governo com o benefício, ao se reduzir ou zerar os seguintes impostos: Imposto sobre Produto Industrializado (IPI), Contribuição para o PIS/PASEP, COFINS, Contribuição para o PIS/PASEP-Importação, COFINS-Importação e do Imposto de Importação (II).
Apesar disso, quase um terço desses valores já não tinham a previsão de entrarem como receitas de tributos nos próximos anos. Isso porque o Repetro (o regime aduaneiro especial de exportação e de importação de bens para a petróleo e gás natural) já existia desde 1999, desobrigando as empresas de arcarem com esses tributos. A MP 795 tem, entre outras funções, o objetivo de prorrogar esse benefício, que estava previsto para acabar em 2019.
O governo justifica que a edição da MP 795 vai garantir investimentos na área, como os leilões que ocorreram este ano. Segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a arrecadação total a partir da exploração dos seis blocos leiloados em outubro deste ano deve chegar a R$ 600 bilhões, nos 30 anos de contrato. Tais investimentos não seriam confirmados, por exemplo, se o Repetro não fosse postergado, justifica o governo federal.
A medida beneficia petroleiras internacionais?
Não é bem assim. A medida beneficia a todas as empresas petroleiras estabelecidas no Brasil, que passarão a ser enquadradas no novo regime tributário e aduaneiro. Porém, alguns dispositivos da MP concedem às empresas internacionais benefícios que já eram fruídos pela Petrobras, como regras sobre a contabilidade de despesas durante a fase de exploração e pesquisa dos poços.
Essa regra já é válida para outros setores para apuração da base de cálculo do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL): das receitas, são abatidas as despesas operacionais do exercício e a amortização/depreciação dos investimentos. No setor petroleiro, como há muita despesa com investimento durante os primeiros anos (enquanto está se prospectando a área em busca de óleo e gás), as empresas defendias regras especiais para a contabilidade dessas despesas, reduzindo a base tributável. Somente esse artigo da MP irá resultar na maior renúncia tributária, de R$ 19,8 bilhões até 2020.
A medida prevê recuperação de impostos que estão judicializados?
Sim. Ao estabelecer quando as petroleiras poderão lançar em seus balanços (e pagar IRPJ e CSLL), a MP também vai reduzir uma disputa judicial e pode trazer a arrecadação de R$ 17,9 bilhões, afirma o Ministério da Fazenda.