Joesley Batista estava a alguns meses de nascer quando o presidente Richard Nixon recebeu no Salão Oval seu chefe de gabinete, H. R. Haldeman. Era junho de 1972 e o equipamento de gravação da Casa Branca registrou a conversa, como era praxe para o obstinado republicano, que tentava (e conseguiu) a reeleição naquele ano.
Haldeman sugeria pressionar o diretor do FBI (a Polícia Federal norte-americana) a frear uma investigação de espionagem que avançava e poderia atingir em cheio o presidente dos Estados Unidos.
“That’s right” (“Está certo”), concordava Nixon, no áudio mais tarde chamado de “cano fumegante”. Uma curiosa semelhança. “Tem que manter isso aí”, dizia o presidente Michel Temer (PMDB) ao dono da JBS, um agora crescido e poderoso Batista, em uma suposta tentativa, à la Nixon, de obstruir a Justiça. Tudo devidamente gravado. Nosso versão “chumbo grosso” do “cano fumegante”.
Não é difícil traçar um paralelo entre os presidentes Richard Nixon, que tentou se segurar no poder após o escândalo de Watergate, e Michel Temer, que se agarra com unhas, dentes e mesóclises ao cargo mais importante do Brasil.
Atolado em um mar de acusações, o brasileiro se vale de estratégias comparáveis às do norte-americano. Espera apenas um pouco mais de sorte no desfecho. “Temer não tem pudor de usar o poder para se defender. E ele é um político habilidoso neste cálculo”, diz o jornalista e historiador Pedro Doria, do Canal Meio, um dos primeiros a levantar a correlação. Pudor que Nixon também parecia não ter.
Temer não tem pudor de usar o poder para se defender. E ele é um político habilidoso neste cálculo
Embora a gravação do presidente norte-americano tenha sido feita em 1972, só se tornou pública dois anos depois, após uma série de manobras para escondê-la. Havia suspeitas de que Nixon tinha conhecimento e participação em um esquema de espionagem do Partido Democrata, o rival histórico dos republicanos. Na época, sabotadores foram presos tentando instalar escutas no comitê dos rivais, no complexo Watergate – eles foram apelidados de “encanadores de Nixon”.
Para se desvencilhar do caso, Nixon obrigou assessores a se demitirem assumindo a responsabilidade. Não convenceu e as investigações prosseguiram. Quando outro assessor revelou existir gravações de todas as conversas do Salão Oval, o presidente tentou esconder os áudios comprometedores, trocar sua procuradoria e até sugeriu que um senador democrata com problemas de audição fizesse a transcrição do material. Nada disso, obviamente, funcionou. Os indícios levaram o presidente a perder o Congresso. Dois anos mais tarde, o republicano renunciou ao cargo mais importante dos Estados Unidos, acolhido pela certeza de anistia concedida pelo seu substituto, Gerald Ford. Nixon morreu em 1994.
Escola Nixon
Temer lançou mão de estratégias não muito diferentes para se sustentar no cargo até aqui, sobretudo após a delação de Joesley Batista e seu irmão, Wesley. De acordo com denúncia da Procuradoria-Geral da União, enviada nesta semana ao relator do inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, o presidente praticou corrupção passiva ao endossar o pagamento de propina ao ex-deputado Eduardo Cunha com o objetivo de evitar sua possível delação. Joesley, operador do pagamento, gravou conversa com Temer. “Tô de bem com o Eduardo”, diz Batista, que afirmou falar sobre a propina para Cunha. “Tem que manter isso aí, viu?”, responde Temer. O procurador-geral, Rodrigo Janot, promete novas denúncias, entre elas a de obstrução de justiça.
Está longe de ser o único momento em que o presidente usou de seu poder para frear as investigações. Na concepção de Pedro Doria, reduzir o repasse de recursos à Polícia Federal seria outro deles. Em maio, Brasília determinou a redução de um terço das verbas da PF, medida que afeta diretamente a operação Lava Jato. Foi o primeiro corte expressivo no efetivo de investigadores, nos três anos do escândalo Petrobras.
Há mais. No fim de maio, Temer demitiu o então Ministro da Justiça Osmar Serraglio para colocar em seu lugar Torquato Jardim, um advogado com boa influência no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde mais tarde a chapa eleita à presidência da República em 2014, e na qual Temer era vice, foi absolvida da acusação de abuso de poder político e econômico. Com um adendo. Em abril, quando a composição do TSE ameaçava Temer, o plenário da Câmara exigiu os depoimentos dos marqueteiros da campanha. “E, aí, o tribunal decidiu que aqueles depoimentos não deviam ser usados”, destaca Doria. Uma aparente perda de tempo, mas que deu prazo para que o presidente indicasse dois novos ministros que votariam no caso. 4 a 3 para Temer.
O peemedebista parece ter escrito um novo capítulo desta história ainda no último dia 28, ao escolher Raquel Dodge como a nova Procuradora-Geral da União, função que assume em setembro, substituindo Rodrigo Janot, desafeto do presidente.
A indicação de Temer contrapõe a escolha do Ministério Público Federal, que queria Nicolao Dino, aliado de Janot, no cargo. Desde 2003, havia se tornado tradição o presidente apoiar a escolha do MPF. Raquel, cabe dizer, tem posições contrárias a Janot e é, por ele, criticada por sugerir medidas que poderiam conter a Lava Jato.
Brasil x Estados Unidos
Apesar das semelhanças entre os casos Nixon e Temer, os contextos em que se inserem são bem diferentes. Doria destaca que as instituições norte-americanas do começo da década de 1970 já estavam bem mais consolidadas do que as do Brasil dos anos 2010. Os EUA já haviam superado o que ele denomina “fisiologia política” – e inclui a negociata de deputados. Era muito mais previsível que o Congresso daquele país aceitasse, como o fez, o pedido de impedimento que culminou na renúncia do republicano.
Márcio Magnocarlo, doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), aponta que o “fator Câmara” pesa para tornar o destino de Temer incerto. “No discurso [de renúncia] de Nixon, ele diz claramente que se considerava inocente, mas que renunciava por não ter mais o apoio no congresso. Ele diz deixar o cargo pela governabilidade do país. No caso do Brasil, isso ainda está em aberto. O cenário não está muito claro. O PSDB está em cima do muro. Mesmo a base aliada está em cima do muro. Se Temer manter o apoio político, ou parte dele, talvez isso [as denúncias] não levem a nada”, diz.
No discurso [de renúncia] de Nixon, ele diz claramente que se considerava inocente, mas que renunciava por não ter mais o apoio no congresso. Ele diz deixar o cargo pela governabilidade do país. No caso do Brasil, isso ainda está em aberto. O cenário não está muito claro. O PSDB está em cima do muro. Mesmo a base aliada está em cima do muro. Se Temer manter o apoio político, ou parte dele, talvez isso [as denúncias] não levem a nada.
“Não é só um jogo de xadrez, com dois lados. É mais complexo. Tem muitos outros jogadores”, diz Doria. E, pela maneira como estes jogadores agem, “não tem muito como prever para onde vão”. Na sua leitura, O PSDB pode manter o apoio ao PMDB com medo de que a queda de Temer leve a ascensão de Rodrigo Maia (DEM). O presidente da Câmara assume interinamente no caso de afastamento e uma eventual recuperação econômica pode torná-lo nome forte para eleição de 2018. Mas tudo é volátil. “Uma pesquisa que caia na mão pode mudar o cálculo”, destaca.
E não apenas: a forma como o Supremo Tribunal Federal julgar as denúncias é decisivo para a manutenção do cargo do peemedebista. Em um cenário de curto prazo, talvez seu maior risco seja uma possível delação de Rodrigo Rocha Loures (PMDB), ex-deputado e seu assessor especial, preso por ter sido flagrado com uma mala com R$ 500 mil, entregue por um executivo da JBS. “Ele sabe de muita coisa e pode complicar o presidente”, aponta Doria.
É um de muitos passos possíveis em um cenário ainda nebuloso para a política nacional. Ao fim, restará a Temer ou aos denunciantes o triste pesar de, parafraseando uma das poesias do presidente, ter “tomado muito rumos sem chegar a lugar nenhum”.
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