O governo anunciou que pretende levar adiante um pacote de privatizações e concessões bilionário até o fim do ano que vem. A ideia é vender a participação em empresas e conceder projetos de infraestrutura, como estradas e terminais portuários. As maiores novidades no anúncio são a venda de empresas estatais, como parte das ações do governo na Eletrobras, a Casa da Moeda e as participações da Infraero em aeroportos já concedidos.
A venda de empresas públicas deve ser o ponto mais polêmico do pacote, já que as concessões de infraestrutura não implicam em se transferir uma empresa hoje estatal para a iniciativa privada. Para quem é contra a privatização, os argumentos mais fortes estão ligados à sensação de “entreguismo” de bens públicos para empresas privadas. Do outro lado do balcão, o argumento é o de que a privatização vai aumentar o investimento e a produtividade desses ativos.
Embora seja possível encontrar na história das privatizações eventos em que o pretendido aumento de investimentos não ocorreu, na maioria dos casos é isso o que acontece. Empresas como Embraer e Vale entraram na lista das mais admiradas do mundo depois que passaram a ser geridas de maneira mais profissional e tiveram acesso ao mercado de capitais global.
Acredito que quatro argumentos serão os mais usados no discurso contra as privatizações, três deles falsos e um verdadeiro.
As três mentiras
Em tese, privatizar é mesmo vender o que é do povo. Mas é assim na prática? Na origem, a maioria dos empreendimentos estatais é a solução encontrada por tecnocratas e políticos para atenderem duas necessidades pessoais: realizar o sonho de fazer algo grande e vencer as eleições seguintes. E tudo bancado com dinheiro público. E nesse processo, não importa se o empreendimento vai dar lucro ou prejuízo. Até porque a lógica de gestão é diferente de um empreendimento privado. Esses agentes sabem que o custo é socializado e o benefício é concentrado. Depois de prontos, esses projetos ganham um terceiro time de defensores, os funcionários e “aspones”.
Uma conta apresentada há alguns dias pela Gazeta do Povo mostra bem como isso funciona. No ano passado, o governo gastou R$ 19 bilhões para sustentar suas estatais. Foram R$ 92 por brasileiro. Dinheiro usado, por exemplo, para sustentar a ideia de reativar a Telebras – empresa que perdeu função com a privatização da telefonia e que foi ressuscitada no governo Lula. Ou para pagar pela manutenção dos equipamentos que serão um dia usados na usina de Angra 3, projeto que algum tecnocrata nos anos 80 fez com a desculpa de que seria o caminho para o Brasil dominar a tecnologia nuclear.
O que acaba sendo do povo mesmo, no fim, é o prejuízo do negócio. Tecnocratas, políticos e funcionários, por sua vez, concentram os ganhos. A Eletrobras, que entrou na lista da privatização, é um exemplo ótimo de como isso funciona. A empresa virou um mastodonte por ter sido a escolhida ao longo do tempo para realizar projetos megalomaníacos. Além do sonho nuclear, ela sustentou a incursão do país na construção de megahidrelétricas como Belo Monte.
O projeto de Belo Monte foi bolado nos anos 80. A usina teria um grande lago mas, mesmo assim, não poderia produzir energia durante todo o ano, por causa da sazonalidade do Rio Xingu. A ideia dos engenheiros então era fazer uma segunda usina rio acima, com a maior área alagada do mundo. O poder tecnocrata só foi cortado pela revolta indígena provocada pela ideia. Vinte anos depois, o governo Lula voltou a sonhar com a hidrelétrica. Tirou a segunda usina e topou um lago menor para reduzir a pressão ambientalista.
Temos hoje um projeto de R$ 30 bilhões que, grosso modo, produz energia só metade do tempo. Por que o projeto convenceu o mundo político? A Lava Jato está atrás da resposta, tentando entender como foram pagas as propinas na construção de Belo Monte, projeto que custou quase o dobro do estimado inicialmente.
Não bastasse ter de bancar esse tipo de sonho, a Eletrobras foi usada para baixar à força o preço da energia em 2012, por ordem da presidente Dilma Rousseff. Segundo uma conta do 3G Capital, que é acionista da companhia, a empresa perdeu R$ 186 bilhões em 15 anos. E mesmo assim mantinha uma estrutura ineficiente, por pressão do funcionalismo. A gestão atual quer demitir 4,5 mil funcionários. A presença de pessoas indemitíveis e aspones é tão paralisante que o presidente da estatal, Wilson Ferreira Júnior, desabafou um dia dizendo que 40% dos chefes da empresa são “vagabundos”.
Não me sinto dono das estatais. Você se sente?
Na parceria tecnocratas-políticos, surgiu o argumento de que era necessário garantir a soberania nacional e o domínio de tecnologias. É meio como dizer que precisamos de uma estatal para tudo. Por que não montamos uma empresa pública para fazer uma ferramenta de busca na internet, já que a tecnologia dominada pelo Google é essencial para o funcionamento da internet no Brasil? É absurdo e mesmo assim cola.
A origem do discurso da soberania é o planejamento centralizado como ideal de desenvolvimento, abraçado com carinho duranta e Segunda Guerra Mundial em escala global. Aquele era o período em que o mundo ficava de olho nas realizações da União Soviética. Na América Latina, o planejamento central ganhou embasamento intelectual na “teoria da dependência” e nos estudos da Cepal liderados pelo argentino Raúl Prebish. Na sopa da soberania brasileira também entraram os militares, que formaram parte importante da elite técnica nacional no último século. Militares e socialistas falam a mesma língua.
A ideia de soberania na prática cria mercados fechados, empresas protegidas da competição, mas com grande orgulho técnico. Só que essa não é a fórmula de sucesso no capitalismo. Como bem mostra a Embraer, as empresas precisam ser expostas à competição e ter acesso a capital financeiro, intelectual e tecnológico em escala global. Mesmo uma companhia de ponta não consegue fazer tudo em seu quintal. A ideia de soberania esconde o preço mais caro que pagamos por produtos e serviços piores.
O que faz mais diferença no desenvolvimento é uma combinação de boas regras do jogo, educação de qualidade e, sim, participação do Estado como uma de muitas peças em um quebra-cabeça em que o resultado é o acúmulo de capacidades produtivas em empresas muito produtivas. Uma ou outra estatal pode sobreviver em um ambiente assim, mas não por uma questão de soberania, mas porque prestam serviços de qualidade.
Há um tipo de argumento que se sustenta na impossibilidade de se comprovar a tese oposta. Se eu digo: “o Brasil não teria energia para crescer se Itaipu não tivesse sido construída”, não existe como avaliar a completa validade da sentença porque ninguém sabe o que teria acontecido. A frase é falsa, mas facilmente é aceita como verdadeira por não poder ser verificada. Isso vale para muitas das obras e empresas levantadas pelo Estado.
Realmente faltaria energia sem Itaipu, ou poderíamos ter encontrado uma alternativa? Belo Monte era a única opção para termos energia barata, ou daríamos um jeito sem ela? Se o Estado não tivesse fundado a Infraero para construir aeroportos, estaríamos isolados do mundo? Ou alguém teria aproveitado a oportunidade de construir esses aeroportos?
Acredito que ninguém perde boas oportunidades. Belo Monte provavelmente não era uma boa oportunidade e o governo teve de montar dois consórcios (sério, isso só no Brasil) para “competirem” em um leilão e dar a impressão de que era um projeto imperdível. Algo parecido ronda o debate atual sobre a taxa de juros de longo prazo, usada pelo BNDES para subsidiar seus empréstimos. O argumento é o de que se o Estado não emprestar dinheiro barato, ninguém vai investir.
Essa ideia de que não há alternativa é falsa. Para a grande maioria das situações há saídas que não envolvem uma intervenção direta do governo. Até para os serviços essenciais de saúde e educação. O Chile, por exemplo, tem um bem-sucedido modelo de educação que usa vouchers pagos pelo governo para que as pessoas escolham as escolas privadas de sua preferência.
O papel do Estado é melhor desempenhado quando ele realmente entra em algum lugar onde ninguém mais entraria, com o resultado de melhorar a qualidade de vida das pessoas. Muito mais coisa seria feita sem o Estado do que nos dizem a tríade tecnocratas-políticos-funcionários públicos.
E uma verdade
O anúncio das privatizações feito por Temer é o terceiro em menos de quatro anos. Desde o fim do primeiro governo Dilma Rousseff a deterioração das contas públicas fez as sucessivas equipes econômicas se coçarem para acelerar concessões e privatizações (ou “democratização” de empresas, no linguajar do Ministério de Minas e Energia). É o déficit que conduz o processo e podemos antecipar que ele não será resolvido pela venda de ativos.
As estimativas sobre quanto o governo pode arrecadar com a rodada atual do “feirão estatal” rondam em R$ 40 bilhões – cálculo feito em um momento de economia andando de lado e que até pode ser revisto se houver mais confiança no mercado no ano que vem. Mesmo que com muita sorte a cifra chegue ao dobro, R$ 80 bilhões, os leilões só seriam suficientes para cobrir metade do déficit primário (calculado antes do pagamento dos juros) em um ano.
Faz três anos que os governos de todas as esferas correm atrás de qualquer tostão para fechar as contas. O governo federal revisou para cima sua projeção de déficit para este ano e 2018. Nos dois anos, a cifra deve ficar em R$ 159 bilhões. Para muitos analistas, o risco hoje é de esse número ser ainda maior, já que não há garantia de que a arrecadação vai crescer como estima o governo.
Vender a Eletrobras, a Petrobras ou o Palácio do Planalto não resolve o ciclo de deterioração do orçamento porque o governo tem antes de olhar como gasta e como arrecada. De um lado, os gastos com aposentadorias e funcionalismo crescem mais do que a inflação há vários anos. De outro, a arrecadação caiu por causa da recessão e de uma mudança na estrutura produtiva do país. Só reformas difíceis, como a da Previdência, e mudanças polêmicas na gestão do funcionalismo (como as apresentadas pela equipe econômica e que depende do Congresso) seriam capazes de mudar o rumo do déficit.