Exatos quatro anos separam dois casamentos que saltaram das colunas sociais para o noticiário político. Ambos sintetizam o momento tenso por que o Brasil passa já há tempos. E os dois levantam a discussão: qual o limite da hostilização e do escracho público de políticos e autoridades? A esfera pública? Ou também suas vidas privadas? E ainda: onde fica a tênue linha que separa o protesto legítimo da violência e agressão gratuitas? A resposta que se dá a essas perguntas enseja visões da política que podem ser diametralmente opostas. E que podem trazer consequências para a democracia.
Na sexta-feira passada, um simbólico 14 de julho, data magna da Revolução Francesa, o luxuoso casamento da deputada estadual do Paraná Maria Victoria (PP) – filha do ministro Ricardo Barros e da vice-governadora paranaense Cida Borghetti – foi alvo de horas de intenso protesto no centro histórico de Curitiba. Com direito a chuva de ovos sobre a noiva e os convidados, xingamentos, arremesso de holofote arrancado da iluminação cênica e intervenção policial para dispersar a manifestação. Não houve registro de feridos. Poderia ter ocorrido.
Também num 14 de julho, no Rio de Janeiro, um protesto semelhante ocorreu naquele que ficou conhecido como o “casamento da dona Baratinha” – as faustosas bodas de Beatriz Barata, neta do empresário de transportes Jacob Barata, o “rei do ônibus” carioca. Detalhe importante: a celebração ocorria em meio ao clima das jornadas de junho de 2013, que começaram justamente por causa do aumento do preço da passagem de ônibus. No caso desse casório, um manifestante saiu ferido, atingido na cabeça por um cinzeiro arremessado por um dos convidados.
O luxo dos dois casamentos com certeza inflamou os manifestantes. Mas se somou à insatisfação generalizada com os políticos e a quem está ligado a eles.
Uma insatisfação com políticos à esquerda e à direita. E que conduziu a uma crescente polarização e radicalização política. Esse fenômeno levou, sempre com questionamentos sobre os limites entre protesto e violência, a inúmeros casos de manifestações, hostilizações e escrachos (virtuais e reais) contra políticos e cidadãos que cerraram fila em cada um dos dois lados do fosso ideológico que divide o país.
A semente
Mas a semente da divisão do Brasil já vinha de antes do casamento de dona Baratinha. A disputa pela Presidência entre Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), em 2010, vista de hoje pode ter parecido “normal”. Mas foi marcada por ataques e insultos de ambos os lados, que muitas vezes impediram o debate racional e civilizado.
Em entrevista à Gazeta do Povo em novembro de 2010, o filósofo Roberto Romano, professor de Ética e Ciência Política da Unicamp, alertava que aquele era um mau sinal: a aceitação da tese de que o adversário político é um inimigo a ser aniquilado. Uma tese, segundo ele, irracionalista e fascista – com todos os riscos, inclusive de violência, que ela envolve.
Romano explicava que a origem intelectual dessa concepção da política como guerra de aniquilação é a obra do filósofo e jurista alemão Carl Schmitt (1888-1985) – que serviu de inspiração conceitual para o nazifascismo. Schmitt queria “destruir” o Estado democrático-liberal – assentado no ideal de que a política é a esfera da deliberação racional, na qual a negociação entre as razões conduz a um certo consenso social.
O professor da Unicamp via ainda com temor a retomada, entre intelectuais, do interesse por Schmitt. Gente que tenta jogar fora a “parte podre” de sua obra para ficar com a boa – algo inviável para Romano. E, segundo ele, paradoxalmente a obra do alemão estava sendo retomada não apenas pela direita, mas também pelos “órfãos de Marx e do stalinismo”. O objetivo desse encontro improvável entre esquerda e Schmitt: derrotar o Estado liberal.
Pensadores contemporâneos que se inspiram em Schmitt afirmam que o liberalismo, ao crer na razão universal que leva à solução racional dos problemas, oculta na sociedade o conflito e o antagonismo insolúveis. Busca criar um consenso que, na verdade, é uma hegemonia de um grupo ou classe sobre os demais. O que esses teóricos defendem é que a política deve reconhecer a impossibilidade de soluções racionais para dar espaço à emergência dos conflitos entre segmentos sociais antagônicos.
Mas o que Schmitt, afinal, tem a ver com o escracho e a hostilização de políticos numa democracia? O permanente risco de ceder à tentação de usá-los não apenas para expor as incoerências do “inimigo” político ao público, mas para aniquilá-lo moralmente. E, obviamente, a ameaça constante de que a ideia da aniquilação atravesse a fronteira do simbólico para o real – o que leva à violência.
O escracho como estratégia
O escracho público de políticos e autoridades, embora historicamente sempre tenha ocorrido, virou uma estratégia consagrada de ação política a partir dos anos 1990. Começou na Argentina para denunciar a impunidade de militares que cometeram crimes contra direitos humanos durante a ditadura no país. O esculacho tinha o objetivo de expô-los e constrangê-los, já que eles haviam sido anistiados e a justiça não havia sido feita. Detalhe importante a ser frisado: originalmente, o escracho tinha um forte quê de punição moral de torturadores e assassinos que estavam imunes de serem julgados por seus crimes.
Num artigo publicado em abril de 2012 no jornal O Estado de S.Paulo, o professor de linguagem Francisco Foot Hardman, da Unicamp, classificou o esculacho como “uma manifestação legítima e eficaz”, citando o exemplo do que ocorria na Argentina, Uruguai e Chile. O texto havia sido escrito no contexto de manifestações contrárias à comemoração, pelo Clube Militar do Rio de Janeiro, dos 48 anos do golpe de 1964, realizada no mês anterior.
Hardman concordava com manifestações – “cartazes, pichações, faixas, imagens desenhadas ou pintadas no asfalto da rua” – cujo alvo eram eventos privados. “Pouco importa, nesse caso, a privacidade do ‘lar, doce lar’, a solenidade do local de trabalho. É preciso botar a boca no trombone”, afirmava Hardman no artigo.
Ele, porém, estabelecia uma linha clara, um limite a não ser ultrapassado: “[O escracho] não deve pretender a violência física da invasão de domicílios ou ataques diretos aos homens sinistros [os torturadores da ditadura]. Evitar o confronto e a violência física (...) deve ser sempre um objetivo no sentido de ampliar seu entendimento e simpatia pela opinião pública. Os homens sinistros sempre foram mestres na arte da provocação: não é o caso de entrar no seu jogo, nem de lhes oferecer pretextos banais”.
Junho de 2013: a panela de pressão explode
O fato é que manifestações cujo objetivo é provocar o constrangimento e a punição moral de autoridades se tornaram cada vez mais comuns e passaram a ter como alvo não apenas pessoas colocadas fora do alcance das leis, beneficiadas por anistias.
No caso brasileiro, quando Hardman escreveu o artigo, a panela de pressão brasileira ainda não havia estourado. Isso viria a ocorrer pouco mais de um ano depois nas manifestações de rua de junho de 2013.
Numa entrevista pouco posterior às jornadas de junho, concedida em agosto de 2013 à revista on-line IHU (do Instituto Humanitas Unisinos), a mestre e doutora em comunicação Ivana Bentes afirmou que aquelas manifestações popularizaram o escracho como linguagem de protesto. Nesse caso, já sem relação com a denúncia de agentes da ditadura.
“Acho importante destacar que o escracho força os limites do público e do privado ao levar os protestos e constrangimentos para a casa, vizinhança, locais da vida privada de personagens públicos, inclusive de forma violenta”, disse Ivana na entrevista.
Ao contrário de Hardman, Ivana se alinhou à corrente que busca legitimar a violência nesse tipo de manifestação como uma contraposição à chamada “violência oficial” (genericamente, a injustiça social) – que não seria adequadamente discutida publicamente.
Nesse sentido, ela defendeu a ação dos black blocs de 2013: “a violência e o ataque a símbolos do capitalismo destroem e depredam signos (fachadas de agências bancárias, vitrines de lojas, caixas de banco, anúncios e placas publicitárias, outdoors etc.). Ou seja, trata-se menos de um ataque e ‘destruição do patrimônio’, como enfatiza a grande mídia, e mais de um ataque e guerrilha semiótica, contra os signos [do capitalismo]”, disse Ivana.
Meses depois, em fevereiro de 2014, uma manifestação violenta contra o aumento da tarifa de ônibus deixaria um morto no Rio de Janeiro: o repórter cinematográfico Santiago Andrade, da TV Band.
Do impeachment até hoje
Desde junho de 2013, o país viu muitas outras manifestações de rua: a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff, a favor e contra a Lava Jato. E muitos outros escrachos e hostilizações de políticos e pessoas públicas que se posicionaram de um lado ou de outro do fosso ideológico cavado no país.
À direita e à esquerda, a tática do escracho e da hostilização vem sendo usada com frequência, nas redes sociais e em manifestações de rua. À direita, o boneco do Pixuleco (Lula vestido de presidiário) virou o símbolo máximo da ironia antiesquerdista. À esquerda, “gaiatos” costumam exibir cartazes contra o “golpe” e pedindo “Fora, Temer” em entradas ao vivo de emissoras de televisão consideradas “golpistas” por eles. Até aí, algo que, se a pessoa não estiver imersa nas paixões despertadas pela polarização, ainda pode ser visto com bom humor. Ou, ao menos, tolerância.
Mas em outras ocasiões, a ação ficou na hostilização grosseira, no mínimo. E tangenciou a violência física contra pessoas vistas como oponentes políticos.
Em julho de 2016, a atriz Letícia Sabatella, notória simpatizante do PT, foi cercada e xingada por manifestantes que se concentravam para participar de um ato pró-impeachment em Curitiba. Ela só estava passando pelo local. O clima era muito tenso e a polícia teve de intervir.
Em junho passado, foi a vez de a jornalista Míriam Leitão relatar, em sua coluna no jornal O Globo, ter sido hostilizada e ameaçada por militantes petistas que estavam junto com ela num voo entre Brasília e o Rio. A presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann, pediu desculpas à jornalista e se solidarizou com Míriam: disse que ela própria havia sido vítima de situação semelhante.
Mas alguns relatos de passageiros do voo – que transportava muitos militantes do PT – colocaram o relato de Míriam em dúvida.Foi o suficiente para parte da blogosfera “progressista” acusar a jornalista de mentir para identificar a esquerda como propagadora do ódio no país – uma característica que, para eles, seria da direita (quem acompanha as redes sociais sabe muito bem que há gente dos dois lados que faz isso).
E o escracho volta à pauta
O episódio de Míriam Leitão, porém, reacendeu a discussão sobre os limites da hostilização e do escracho público. E motivou o professor Luis Felipe Miguel, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), a escrever um artigo sobre o assunto publicado pelo site Justificando – que se autodefine como “o maior portal jurídico com pensamento progressista do Brasil”. Embora claramente seja de esquerda, grande parte dos argumentos do texto, trocando o sinal, podem ser apropriados por pessoas da direita para defender suas posições.
No texto, Miguel considera que o escracho tem de ser uma ação política e não uma válvula de escape ou um ato de mera autopromoção de seus organizadores. Além disso, afirma que o ato tem de ter um “sentido de denúncia” para se diferenciar da agressão gratuita. “É importante que seu resultado seja um desmascaramento, não a produção de uma ‘vítima’”, diz o professor.
Nesse sentido, para ele, o caso da jornalista nem mesmo seria um escracho, pois foi ela quem divulgou o ocorrido. Mas, ainda assim, ele insinua no texto que ela merecia ser desmascarada por um escracho já que, em seu entendimento, é uma “arauta do golpe e do retrocesso nos direitos, a jornalista que burla seu público com uma representação desonesta da realidade”.
O professor da UnB afirma ainda se tratar de situação diferente das agressões de direitistas desferidas contra, por exemplo, Letícia Sabatella. Mas há sim semelhanças entre os dois casos. Também foi a atriz, tal qual a jornalista, quem divulgou a hostilização nas redes. Além disso, setores da direita veem na artista uma divulgadora, por meio de sua posição de celebridade, de uma narrativa mentirosa sobre a política nacional.
Luis Felipe Miguel também criticou a condenação a priori de “qualquer forma de mais ofensiva de ação política” e do “bom mocismo” de setores da esquerda (alguém poderia dizer: “da direita”) que consideram que escrachos na porta da casa como “uma linha divisória que não poderia jamais ser ultrapassada”.
E, nesse ponto, o articulista de esquerda flerta com o pensamento do ideólogo do regime da direita mais radical. Miguel afirma que o “fundamento dessas posturas é uma visão asséptica e cerebral da política”: uma visão de que a arena pública é o espaço do embate de “razões”, nas quais as melhores vencem. “É uma percepção (...) que não entende que, antes de razões, estão em jogo interesses. Que não entende o conflito como motor da política, muito menos que, nesse conflito, ter razão não significa vencer”. Em suma, trata-se de uma visão que se aproxima à concepção de política como guerra entre inconciliáveis. Trata-se de um aceno a Carl Schmitt.
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