Apontada como grande trunfo na disputa para chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF), a alta produtividade do desembargador Kassio Nunes Marques, que chega a uma média de 600 decisões por dia, é explicada por uma série de soluções criativas na área judicial. Mas que também abrem margem a críticas.
Dentro do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1), Kassio Nunes Marques é um dos desembargadores mais produtivos. Isso ocorre graças à implementação de um grupo de trabalho que passou a atuar exclusivamente com demandas consideradas repetitivas. O grupo – que auxilia na análise e tomada de decisões judiciais – é formado por estagiários, prestadores de serviços e auxiliares do desembargador considerados mais experientes.
Além disso, em vários despachos, Kassio Nunes Marques utiliza-se de textos iguais para deliberar sobre casos distintos – embora de temática semelhante. A prática não é considerada ilegal, mas ajuda a inflar os índices de produtividade no tribunal.
Em entrevista ao anuário da Justiça Federal de 2019, o desembargador afirmou que nos quatro primeiros meses em que ocupou a vice-presidência do TRF-1 movimentou “mais de 37.000 processos e proferiu mais de 50.000 decisões e despachos”. Isso dá uma média de 600 processos por dia despachados pelo magistrado. O número foi amplamente divulgado quando Kassio Nunes Marques foi anunciado como o escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para a vaga no STF que seria aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello.
Nessa conta, porém, estão processos que não necessariamente dependem de decisão exclusiva de Kassio Nunes Marques. "A média é referente à vice-presidência no TRF-1. Um levantamento consolidado está sendo realizado. São referentes a despachos, processos e decisões", disse o desembargador por meio de nota à Gazeta do Povo, ao ser questionado sobre a sua produtividade.
Desde quando tomou posse como desembargador, em maio de 2011, Kassio Nunes Marques deferiu 19,4 mil decisões que se tornaram acórdãos (decisões individuais ou em turmas). Isso inclui casos em que ele foi relator, revisor, relator convidado ou apenas aquele em que ele foi instado a redigir o acordão que teve um outro colega como relator.
Também estão incluídas decisões monocráticas e colegiadas, com base na pesquisa de jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região. Em média, isso significa pouco mais de 170 decisões publicadas em acórdãos por mês. A importância do acórdão é que ele gera jurisprudência para equacionar casos semelhantes para juízes de primeira instância.
Kassio Nunes Marques está entre os 6 desembargadores mais produtivos do TRF-1
De 27 desembargadores do TRF-1, Kassio Nunes Marques está entre os seis mais produtivos do tribunal. Tanto em números brutos, quanto proporcionais.
Entre maio de 2011, quando Kassio Marques tomou posse, e até a última sexta-feira dia 9 de outubro, o magistrado havia concedido 20,5 mil decisões em segunda instância. Em números brutos, o desembargador mais produtivo do TRF, com base nesses critérios, é o atual vice-presidente da Corte, Francisco de Assis Betti.
Em números relativos, outros desembargadores têm desempenho melhor que Kassio Nunes Marques, entre os quais Gilda Sigmaringa Seixas, Jamil de Jesus Oliveira, Wilson Alves da Silva e César Jatahy – todos com uma média superior à 170 acórdãos por mês. Dentre estes, destaque para os dois últimos desembargadores. Wilson Alves da Silva tem, até o momento, 5,5 mil acórdãos publicados no TRF-1. Porém, ele tomou posse em fevereiro do ano passado. Já César Jatahy, desembargador egresso da Justiça Federal da Bahia que chegou ao TFR-1 apenas em agosto deste ano, já foi responsável por 1.149 decisões.
No caso específico de Jatahy, um dado pode ser utilizado ainda mais para medir a produtividade do magistrado: o número de decisões nas quais ele atuou como relator convidado. Nesse caso, ele proferiu 6,4 mil decisões quando foi obrigado a substituir um colega no tribunal regional antes de tomar posse em definitivo no cargo.
Força-tarefa de estagiários explica “fenômeno judiciário” Kassio Nunes Marques
Alguns "atalhos" adotados pelo desembargador Kassio Nunes Marques foram decisivos para que ele pudesse apresentar números tão substanciais quando ocupava a vice-presidência do TRF-1.
Uma das táticas foi implantar um pequeno grupo de trabalho, que passou a atuar exclusivamente com demandas consideradas repetitivas, formado por estagiários, prestadores de serviços e auxiliares do desembargador considerados mais experientes.
Esse grupo teria sido o responsável por produzir em torno de 22 mil decisões, conforme o próprio Marques afirmou em uma entrevista ao anuário da Justiça Federal de 2019. “Montei uma estrutura que envolve absolutamente todas as pessoas do gabinete, ninguém fica parado; até o motorista, quando não está conduzindo, colabora com os trabalhos. Há um pequeno grupo de trabalho, último a ser estruturado, que atua exclusivamente com demandas repetitivas, formado por estagiários e prestadores de serviço, auxiliados por três servidores experientes. Foi criado com muito esforço para tentar colocar o aproveitamento total de tudo o que a gente dispõe”, disse o desembargador em 2018.
O resultado disso está em várias decisões proferidas por Kassio Nunes Marques. A Gazeta do Povo analisou algumas e, por causa desse método de trabalho, o desembargador costumava utilizar um mesmo texto para casos semelhantes, mesmo tendo autores distintos.
Por exemplo: dois recursos especiais impetrados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) contra anulação de autos de infração ambientam impetrados pelo órgão. Os textos eram absolutamente iguais. As únicas alterações nos dois processos eram o número do processo e o nome do autor do processo. Detalhe: ambos os processos estão na lista dos pouco mais de 19 mil acórdãos proferidos por Marques.
Procedimento de Marques é habitual, mas pode ter falhas
Integrantes do Ministério Público Federal (MPF), juízes federais e advogados consultados em caráter reservado pela Gazeta do Povo afirmaram que o procedimento é tido como habitual, mas pode trazer consigo algumas falhas. Se por um lado, ele imputa de fato uma maior celeridade ao processo judicial; por outro, demonstra que o magistrado não analisou as especificidades de cada processo, o que pode ser alvo de fáceis questionamentos em cortes superiores.
“É como se o colega jogasse a responsabilidade para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou o Supremo”, disse um juiz federal em caráter reservado. Sobre isso, Kassio Nunes Marques explicou, por meio de nota, que "o mesmo texto é adotado para jurisprudência e recursos repetitivos, conforme disciplina o STJ e o STF".
Em matérias penais, esse tipo de artifício pode levar à situações como a do ministro Marco Aurélio Mello que determinou a libertação do traficante André do Rap, líder do PCC, simplesmente pela aplicação pura e simples de um artigo do Código de Processo Penal sem observar as especificidades do processo.
Em sua atuação como vice-presidente do TRF-1, Kassio Nunes Marques também defendeu a adoção de inteligência artificial para analisar casos semelhantes e, dessa forma, dar maior agilidade à Justiça brasileira. “Eles aplicam o padrão já que são todos iguais, passam uma caneta ótica, lançam e o processo está pronto para inclusão em pauta para julgamento. Mas isso só ocorre, friso, com demandas repetitivas”, disse em 2018 o desembargador.
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