O tráfico de drogas atingiu um novo patamar. As apreensões de cocaína estão batendo recordes no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, reflexo da maior oferta do pó em escala global e também do avanço da fiscalização nas aduanas – principalmente nas zonas portuárias. Os traficantes se aproveitam do grande volume de cargas movimentadas para esconder a cocaína e por isso o Porto de Santos e o Porto de Paranaguá, os maiores do país, fazem parte das principais rotas internacionais.
O cenário pode mudar nos próximos meses, após a prisão de dois mafiosos italianos no litoral de São Paulo na segunda-feira (8), suspeitos de comandar boa parte desse comércio ilegal. Mas, por enquanto, pacotes do pó já enviados aos portos continuam sendo localizados. A Receita Federal em Paranaguá já fez duas grandes operações do começo de julho até o dia 11, localizando um total de 823 quilos de cocaína.
No primeiro semestre deste ano, a Receita Federal do Brasil apreendeu 25,3 toneladas de cocaína em todo o território – mais da metade somente nos portos de Santos e Paranaguá. As interceptações têm mostrado tanto a ousadia das organizações criminosas como as ramificações e aliciamentos de funcionários das estruturas portuárias. Em 2019, fiscais das aduanas portuárias já encontraram pacotes de cocaína dentro de um trator, de uma máquina escavadeira, dentro de três unidades de transformadores de energia, em meio a sucos congelados e em compensados de madeira.
A estratégia mais utilizada, porém, é conhecida como rip-on/rip off, em que pacotes de cocaína são colocados dentro de qualquer contêiner que tenha espaço livre para serem retirados no porto de destino, sem conhecimento de exportadores ou importadores. Na Operação Barão Invisível, que culminou com a prisão dos italianos Nicola Assisi e seu filho, Erick, a Polícia Federal apreendeu lacres falsificados de contêineres e uma impressora 3D que era usada na falsificação. Para os investigadores, isso pode indicar relação do grupo, pertencente à máfia Ndrangheta, com as interceptações recordes de cocaína feitas em território brasileiro.
“Essa peça do quebra-cabeça pode se encaixar em diversas investigações de tráfico de cocaína que estão em andamento hoje pela Polícia Federal em diversas partes do Brasil. E como talvez um dos principais responsáveis por todo o esquema”, disse o superintendente da Polícia Federal no Paraná, Luciano Flores. Ele destacou os volumes encontrados nos maiores portos do Brasil. "A gente tem acompanhando que tanto no Porto de Paranaguá e no de Santos estavam havendo grandes apreensões de cocaína, recordes históricos para o Brasil e certamente isso envolve facções e organizações criminosas da América do Sul, inclusive, do Brasil com organizações criminosas na Europa", afirmou o delegado.
Grande parte da droga encontrada nas fiscalizações da Receita Federal teria como destino a Europa, em portos da Holanda, Bélgica, França e Espanha. Em 2018, as interceptações de cocaína no Porto de Santos totalizaram 23 toneladas e no de Paranaguá, 4,8 toneladas, valores recordes. Neste ano, até 5 de julho, já foram encontradas cerca de 10,5 toneladas de coca no porto paulista e 7,5 toneladas no porto paranaense – valor que já supera todo o volume recolhido no ano passado. A fiscalização atinge principalmente cargas movimentadas no Terminal de Contêineres de Paranaguá (TCP).
Segundo a Receita Federal, o resultado se deve a investimentos em tecnologia, análise e gerenciamento de risco, no treinamento de servidores, utilização de cães farejadores, escaneamento obrigatório de contêineres e ao trabalho conjunto com outros órgãos nacionais e internacionais. O delegado adjunto da Alfândega do Porto de Paranaguá, Luciano do Carmo Andreoli, explica que o scanner de alta potência começou a ser usado nas cargas locais em 2013, mas foi a dupla checagem que possibilitou mais apreensões – os contêineres passam pelo aparelho na chegada e na hora do embarque. O porto paranaense também usa drones para verificar movimentações atípicas no contrabordo dos navios, a parte que fica voltada para a baía.
Droga em carros
Nem sempre a fiscalização brasileira consegue flagrar a droga escondida. A autoridade aduaneira do Senegal localizou um total de 1 tonelada de cocaína em duas operações, em 26 e 30 de junho, em uma carga de veículos exportados via Paranaguá. No começo de abril, equipes do Porto de Gioia (Itália) localizaram 450 kg de cocaína em um contêiner que saiu de Paranaguá e que tinha como destino final o Porto Saíde (Egito).
“Com o aperto da fiscalização nos contêineres, a tendência do tráfico é buscar outros caminhos. Ciente disso, vamos tomar novas providências nas exportações dos automóveis”, declarou o delegado da Receita em Paranaguá Gerson Zanetti Faucz. Ele disse ainda que os traficantes também têm buscado portos menores para a movimentação. No Porto de Itajaí (SC), por exemplo, foi interceptada 1,3 tonelada de cocaína em 4 de julho; em Natal (RN), uma das rotas do pó no Nordeste, a mais recente apreensão foi em 13 de maio, com 1 tonelada.
Reação no porto
Em reação à droga localizada no Senegal, na noite de terça-feira (9), a Administração dos Portos do Paraná (Appa) promoveu uma megaoperação em conjunto com a Polícia Militar e a Polícia Federal para vistoriar cerca de 100 veículos que seriam embarcados com destino à África. A fiscalização ocorreu no pátio de estacionamento e no cais do TCP. A Appa também informou que, no combate ao tráfico de drogas, passou a realizar reuniões mensais e ações práticas integrando as forças policiais de segurança portuária. Além disso, emitiu uma ordem de serviço para que a guarda portuária intensifique a abordagem de veículos e pessoas na faixa portuária, com verificação do crachá de identificação e demais documentações além de revistas nos veículos e cabines dos caminhões.
“A intenção é que as operações conjuntas passem a acontecer com frequência, principalmente em relação às mercadorias com destinos a África e Europa, rotas identificadas como as mais utilizadas pelo tráfico internacional”, comunicou a Appa. Na madrugada de quinta-feira (11), a Receita Federal e a Polícia Federal localizaram cerca de 660 kg de cocaína que seriam embarcados para a Bélgica.
O Porto de Santos não respondeu ao pedido da reportagem sobre ações de segurança na zona portuária. O TCP não quis se pronunciar sobre o problema do tráfico de cocaína no local. A Renault, fabricante dos veículos com droga interceptada no Senegal, também foi procurada para comentar sobre a falta de segurança nas exportações, mas informou que não iria comentar, e que todas as investigações estão sendo conduzidas pela autoridade portuária.
EUA fazem maior apreensão da história
No mês passado, os Estados Unidos fizeram a maior apreensão de cocaína da história do país: 15 toneladas, o que poderia render US$ 1 bilhão no comércio com os usuários, conforme estimativas da polícia local. Os tijolos com o pó, colocados lado a lado, poderiam se estender por 3,2 quilômetros. A carga foi descoberta no dia 18 de junho, mas só três dias depois as autoridades conseguiram contabilizar toda a carga. Ao menos seis pessoas da tripulação foram detidas.
A droga encontrada nos EUA foi localizada em contêineres em um navio no Porto de Filadélfia. O navio saiu do Peru, o segundo maior produtor de coca – atrás da Colômbia e na frente da Bolívia. Os países andinos cultivaram cerca de 245 mil hectares de coca em 2017, alta de 15% em relação ao ano anterior, conforme o Relatório Mundial sobre Drogas de 2019, divulgado em 26 de junho pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
O Relatório Europeu sobre Drogas 2019, divulgado em 6 de junho, também alertou sobre o problema recente do pó. “Os mais recentes dados relativos à cocaína revelam que tanto o número de apreensões como as quantidades de cocaína apreendidas atingem níveis recorde. A cocaína entra na Europa por numerosas rotas e diferentes meios, mas destaca-se como principal desafio o crescimento do tráfico de grandes volumes, através de grandes portos, com recurso a contentores de transporte”, afirma o comunicado oficial sobre o estudo.
A Organização Mundial das Alfândegas (OMA), em seu Relatório de Comércio Ilícito, de 2017, já demonstrava a participação dos portos no volume de cocaína traficada, algo que não ocorre com a maconha, por exemplo. Foram registradas 370 apreensões do pó em cargas de navios, que totalizaram cerca de 150 toneladas, ou 77% de um total de 193 toneladas recolhidas em todos os modais (aviões, correios e veículos, principalmente). As interceptações de maconha em transportes marítimos, por sua vez, representaram apenas 16,6% do volume total recolhido.
Esse trabalho de fiscalização tem tido resultados, afirma o relatório da UNODC, já que a quantidade de cocaína apreendida na última década subiu 74%, ao passo que a manufatura da droga cresceu 50% no mesmo período. “Isso sugere que o esforço na aplicação da lei se tornou mais efetiva e que o fortalecimento da cooperação internacional pode estar ajudando a aumentar as taxas de interceptação”, diz o estudo.
Prisão de mafiosos reforça parceria
Na quarta-feira (10), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se reuniu com membros de uma delegação italiana para tratar da cooperação entre Brasil e Itália, uma iniciativa que já produziu fatos relevantes como a prisão dos mafiosos Nicola Assisi e seu filho, Erick Assisi. Na reunião na PGR foi discutido o trâmite do processo de extradição dos dois italianos, procurados pela Interpol por tráfico internacional e suspeitos de participarem da máfia Ndrangheta. O grupo controlaria até 40% do comércio de cocaína na Europa.
A Operação Barão Invisível, deflagrada pela Polícia Federal na segunda-feira (8) e que resultou na prisão em flagrante de Nicola e Assisi só foi possível graças ao trabalho conjunto com a polícia italiana, que repassou informações sobre a localização dos dois. Eles foram detidos em um prédio de luxo em Praia Grande (SP), ocupando três coberturas que contavam com um grande aparato próprio de segurança, uma passagem secreta como rota de fuga e paredes falsas, onde havia droga escondida, segundo a PF. Também foram presos com armas e dinheiro.
Segundo o portal G1 de Santos, a defesa de Nicola e Patrick Assisi tentou argumentar que o caso caberia à esfera estadual, dizendo que o flagrante de tráfico não configurou crime internacional. O juiz federal Roberto da Silva Oliveira entendeu que o caso deveria permanecer em esfera federal, então o advogado Bruno Galhardo pediu a liberdade provisória deles, por terem residência fixa, o que foi negado também. Na terça-feira (9), o juiz converteu a prisão em flagrante em preventiva. A defesa ainda planejava recorrer e nega o envolvimento dos dois com a máfia italiana.