O protesto de procuradores na segunda-feira (9) contra a decisão do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de indicar um nome fora da lista tríplice da categoria para a Procuradoria-Geral da República (PGR) marca uma escalada na hostilidade entre algumas categorias federais e o Planalto. No fim de agosto, em audiências públicas no Senado e na Câmara dos Deputados, integrantes de áreas técnicas do poder público reclamaram do que consideram ingerência política no funcionamento de órgãos. Em 26 de agosto, um grupo de 13 associações e sindicatos divulgou uma nota pública afirmando que há uma “postura de agressiva do governo federal em relação às próprias instituições federais de pesquisa e produção de conhecimento”.
O discurso de várias categorias vai além de interesses específicos, como o fim da estabilidade no funcionalismo. Para carreiras ligadas às áreas econômicas, tecnológicas e educacionais, “há uma política deliberada de desconstrução da capacidade do Estado brasileiro de produzir dados com independência, rigor e transparência”. Apontam riscos nas próximas edições das avaliações educacionais e do Censo 2020, que sofreu cortes orçamentários. Reclamam das críticas de Bolsonaro e seu entorno ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) na divulgação de dados sobre desmatamento e incêndios florestais, dentre outras coisas.
Em outras frentes, algumas corporações se posicionaram contra mudanças que consideram prejudiciais no combate à corrupção. A indicação para a PGR está nesse caso – o cargo é estratégico, pois só o procurador-geral pode investigar e propor ações penais contra autoridades com foro privilegiado (deputados federais, senadores e ministros) e contra o chefe do Executivo (após autorização da Câmara dos Deputados). Bolsonaro já deu declarações indicando que queria alguém afinado com o governo. “Eu quero uma pessoa que esteja alinhada e afinada com o futuro do Brasil. Que não seja xiita na questão ambiental, na questão de minorias, na questão indígena, dentre outros. Queremos um PGR que esteja preocupado em destravar a economia”, disse o presidente em 14 de agosto. Em 3 de setembro, comparou o cargo na PGR com a “dama” no jogo de xadrez, no qual Bolsonaro seria o rei.
Ainda no campo de luta contra a corrupção, as investidas de Bolsonaro no comando da Polícia Federal, da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) também viraram motivo de preocupação.
Por outro lado, é possível encontrar vozes de entidades ou lideranças apoiando as decisões de Bolsonaro. O próprio presidente já se defendeu. “Olha, fui eleito presidente para interferir mesmo se é isso que eles querem. Se é para ser um banana, um poste dentro da Presidência, estou fora”, disse, ao discursar para uma plateia de empresários em 21 de agosto.
Veja a seguir a situação detalhada de alguns órgãos com risco de ingerência política ou técnica:
Procuradoria-Geral da República (PGR)
Ao indicar o nome de Augusto Aras para a PGR, Bolsonaro desdenhou de uma tradição de 16 anos – desde 2003, os presidentes da República respeitavam a lista tríplice da votação interna promovida pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
Após a indicação de Bolsonaro, a ANPR divulgou nota pública em que diz que “desrespeito à lista tríplice é o maior retrocesso democrático e institucional do MPF em 20 anos”. A ANPR reconhece que a prerrogativa para indicar o procurador é do presidente da República, mas argumenta que a Constituição prevê a independência do Ministério Público, e por isso a escolha interna é o caminho adequado.
“O método de escolha pela lista tríplice é um instrumento muito importante em prol da autonomia que a Constituição reconhece ao Ministério Público. Infelizmente, hoje, a tradição foi quebrada”, afirmou em 5 de setembro o procurador Mario Bonsaglia, que foi o mais votado na eleição da ANPR (478 votos). No dia 9, o terceiro colocado, Blal Dalloul (422), afirmou que “as manifestações mostram a Augusto Aras que não impõe liderança e confiança quem desdenha da própria casa”.
O procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, já tinha se manifestado em defesa da lista tríplice em diversas ocasiões. Após a escolha de Aras, ele reiterou seu posicionamento. “A força-tarefa Lava Jato no PR sempre defendeu a lista tríplice, por favorecer a escolha de um PGR testado e aprovado em sua história e seus planos, assim como a independência do Ministério Público. Nós nos unimos à ANPR no debate pelo melhor para o país e a causa anticorrupção”, afirmou em postagem no Twitter.
Contraponto
Dez procuradores disputaram a eleição interna da ANPR. Augusto Aras fez uma campanha “por fora”. Em entrevista à Folha de S. Paulo, em abril, ele criticou a lista tríplice, dizendo que ela “promove o corporativismo” e atrai os “os vícios naturais da política partidária (...) do toma lá, dá cá”.
O Ministério Público Militar e o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG) emitiram nota em apoio a Augusto Aras, assim como a Associação dos Servidores do Ministério Público Federal (ASMPF). Essa entidade também promoveu uma votação interna para indicar o nome do novo procurador-geral. Foram indicados 62 nomes, dos quais o mais votado foi Blal Dalloul, com 52% dos votos – não foi especificado a quantidade de votos. Aras apareceu em segundo, com 19%.
Receita Federal
Ao que tudo indica, a exoneração do secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra, na quarta-feira (11) foi motivada pela divulgação antecipada de estudos sobre uma nova CPMF no Brasil. Entretanto, ele também vinha tentava contornar uma situação política no comando do órgão no Rio de Janeiro. O superintendente Mário Dehon estaria ameaçado de exoneração por não ter acatado uma indicação política em substituição aos delegados José Alex Nobrega de Oliveira (que atua no Porto de Itaguaí), e Fábio Cardoso do Amaral (Barra da Tijuca). A Receita Federal no Rio investiga ilícitos na zona portuária cometidos pela milícia local.
Após a investida contra a chefia do Rio, seis auditores fiscais ameaçaram entregar os cargos caso ocorressem indicações políticas no órgão. "Independentemente de quem tenha feito ou qual seja o pedido, tentativas como essa de interferência política no órgão são absolutamente intoleráveis, típicas de quem não sabe discernir a relevância de um órgão de Estado como a Receita Federal", afirmou o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco), em nota divulgada em 16 de agosto. Dias depois, o secretário-adjunto José Paulo Ramos Fachada, número dois da Receita no Brasil, deixou o posto, sendo substituído por José de Assis Ferraz Neto, que fica interinamente no lugar de Cintra.
Outro conflito com o órgão ficou aparente em 15 de agosto, quando Jair Bolsonaro afirmou que a Receita Federal fez uma “devassa” na vida financeira de seus familiares. Na época, reportagem do Estado de S. Paulo apurou que um dos irmãos do presidente recebeu uma cobrança no valor de R$ 1,6 mil relativo ao eSocial de empregada doméstica, que foi regularizado.
O Ministério da Economia começou a estudar a possibilidade de transformar a Receita em uma autarquia. Paulo Guedes já afirmou que isso poderia “oxigenar” o órgão, mas auditores temem que uma mudança dessas abra a possibilidade de indicações de fora.
Reclamações de outras esferas
A Receita Federal foi alvo de reclamações em outras esferas do poder. Em 1º de agosto, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes decidiu suspender investigação da Receita Federal contra 133 contribuintes a cargo da Equipe Especial de Fraudes (EEF), especializada na investigação de autoridades, entre elas, ministros da Corte. A decisão foi assinada dentro do inquérito do STF que apura divulgação de notícias falsas contra integrantes do STF.
Coaf
As críticas de Bolsonaro ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) começaram no fim de 2018, após vir à tona que o órgão identificou movimentações atípicas de Flávio Bolsonaro, senador e filho do presidente, e de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio. Atendendo ao planejamento do ministro da Justiça e Segurança, Sergio Moro, o Coaf foi inicialmente para a alçada do ex-juiz da Lava Jato, mas a mudança foi barrada pelo Congresso em maio. Em 20 de agosto, uma medida provisória (MP) transformou o Coaf em Unidade de Inteligência Financeira (UIF), vinculada ao Banco Central. Sindicatos de funcionários do Banco Central e de Delegados da Polícia Federal em São Paulo criticaram a medida, por considerar que há brecha para indicações políticas e participação de agentes privados em investigações com dados sigilosos.
"Blindagem ainda maior"
O presidente do Banco Central, Roberto Campos, disse que a incorporação da UIF permitirá “blindagem ainda maior” do novo órgão contra eventuais pressões políticas ou econômicas. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que a MP é correta, que não dá margem para indicações políticas e que vai defendê-la em votação no plenário.
Polícia Federal
Em 15 de agosto, Jair Bolsonaro anunciou que ia substituir o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi, que comandava investigações sobre a relação de milícias com políticos. A corporação está subordinada ao ministro da Justiça, Sergio Moro, que antes de assumir tinha ganho “cheque em branco” do presidente. Além disso, Saadi aparecia com destaque no Índice de Produtividade Operacional (IPO). A PF, porém, se manifestou dizendo que já era prevista uma substituição no Rio. Mas o Planalto pressiona também por mudanças no comando da PF – segundo Bolsonaro, seria importante dar uma “arejada”. O ocupante do cargo é Maurício Valeixo, indicado por Moro, com quem trabalhou na Lava Jato. Sob pressão, ele tirou dez dias de férias, mas até o fechamento desta edição continuavam especulações sobre sua substituição. A Associação dos Delegados da Polícia Federal (ADPF) se manifestou contra as interferências políticas no comando da PF.
Apoio de sindicato ao presidente
A Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), que defende uma carreira única na corporação e em muitas questões se coloca contra as pautas da ADPF, enviou um ofício ao senador Flavio Bolsonaro, solicitando que este divulgasse o apoio do sindicato ao presidente da República.
Inep
O Ministério da Educação (MEC) é uma das pastas com dificuldade para engrenar projetos em 2019. A troca de ministro – Abraham Weintraub substituiu Ricardo Vélez Rodrigues, demitido em 8 de abril, após se envolver em brigas ideológicas ao mesmo tempo em que falhou em apresentar projetos para a área – ocasionou uma dança de cadeiras em diretorias e órgãos que impactam nas políticas educacionais. Três diretorias do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), vinculado ao MEC, estão sem comando. O Inep já passou por três direções diferentes no ano. A da Avaliação da Educação Básica (Daeb), que tem entre suas atribuições o Enem, está desde 21 de maio sem diretor. Em entrevista à Folha de S. Paulo, servidores demonstraram preocupação com o cronograma das provas deste ano. O contrato com a empresa que vai aplicar o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que compõe o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) foi assinado somente em 22 de agosto. As provas devem ocorrer em setembro e outubro.
Ações dentro do cronograma
Em resposta à Folha de S. Paulo, o Inep afirmou que todas as ações e programas estão dentro dos cronogramas e que o corpo técnico do instituto "trabalha para que não ocorra prejuízo aos estudantes ou qualquer comprometimento nos exames". Disse ainda que a Daeb “segue o curso com normalidade, sob condução de um diretor substituto nomeado e da equipe técnica de servidores qualificados com experiência de anos nas avaliações do Inep”.
IBGE
O ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou já em fevereiro que o Censo 2020 do Brasil precisava ser simplificado. Mas ao afirmar que “se perguntar demais você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber”, Guedes despertou a ira de servidores e estatísticos. Em audiência na Câmara em 27 de agosto, Dione Conceição de Oliveira, presidente do sindicato dos funcionários do IBGE, afirmou que a proposta reduzida oferecida pelo corpo técnico, “com fundamentação”, não foi considerada pela nova diretoria, a qual fez redução de 25% no escopo do Censo – o corte orçamentário chega a 87%. Cinco dirigentes pediram exoneração em protesto. Segundo Dione, os cortes nas perguntas sobre habitação, por exemplo, vão impedir o cálculo do déficit habitacional nos municípios. Ela alertou ainda para a retirada de questionários sobre fluxos migratórios, que vão impactar na estimativa da população e, consequentemente, na divisão de recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). “Vamos ter uma insegurança jurídica muito grande quanto a isso”. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPjTCU) fez uma representação questionando os cortes.
Reformulação do Censo 2020
Alguns economistas e demógrafos defendem reformulação do Censo 2020, com aproveitamento de questionários de outros órgãos. Sete ex-presidentes do IBGE divulgaram carta no fim de julho mostrando-se preocupados com os cortes orçamentários no levantamento, mas disseram que a redução de perguntas não implica em perdas “irreparáveis”. O diretor de Pesquisas do IBGE, Eduardo Rios-Neto, afirmou em sabatina na Câmara dos Deputados em 4 de julho que iria “mitigar eventuais transtornos” como a retirada de perguntas habitacionais.
Órgãos ambientais
Em meio a uma crise ambiental de repercussão mundial –, que levou o governo federal a decretar a Garantia de Lei e Ordem, operação especial com apoio do Exército –, vários atos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) foram esquadrinhados e estão na mira do Ministério Público Federal (MPF). Ainda em dezembro de 2018, Ricardo Salles, após convite para ser ministro do Meio Ambiente, afirmou que havia uma “proliferação” de multas. Depois, questionou a gestão do Fundo Amazônia, composto por doações milionárias de países ricos, e criticou as medições feitas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) relativas a desmatamento e incêndios – a polêmica levou à exoneração do diretor Ricardo Galvão, renomado cientista. Por essas e outras, a 4ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) do MPF fez 13 recomendações ao MMA. Entre elas estão: retirar e apreender gado criado em áreas de desmatamento ilegal; fiscalizar empresas frigoríferas sem compromisso com o controle da origem de matéria-prima; comprovar cientificamente que as informações produzidas pelo Inpe não seriam suficientes; abster-se de contratar empresa para substituir o Inpe, sob pena de violação aos princípios da economicidade e da razoabilidade; abster-se de praticar atos públicos com conotação de desincentivo ao descumprimento da lei ou deslegitimação de atos dos servidores; abster-se de dar declarações públicas que, sem comprovação, causem deslegitimação do trabalho de servidores; apresentar, de maneira individualizada, informações que comprovem a utilização de critérios técnicos na nomeação de cargos e funções públicas. A recomendação nº 04/2019 da CCR foi assinada em 4 de setembro e dá prazo de 30 dias para os encaminhamentos.
"Tendência de diminuição de queimada"
Em entrevista à Gazeta do Povo em 4 de agosto, o professor Alexandre Galvão Patriota, do Departamento de Estatística do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP), afirmou que os questionamentos do governo aos dados sobre o desmatamento da Amazônia “fazem sentido”. Entretanto, em entrevista à Folha de S. Paulo publicada na quarta-feira (11), Ricardo Salles citou dados de focos de incêndios do Inpe e outras instituições públicas para afirmar que já há uma “tendência de diminuição de queimada”. Ele afirmou que o ponto mais importante é que o governo falhou em mostrar suas ações. “A comunicação das ações, daquilo que estava sendo feito e tudo mais. A comunicação podia ser melhor e, agora, vai ter de ser melhor”.
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