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A iniciativa da Advocacia-Geral da União (AGU) de investigar a divulgação de e-mails internos de executivos da rede social X, e de cogitar até mesmo a suspensão ou dissolução da empresa no Brasil, representa uma ameaça grave à liberdade de expressão e, de forma concomitante, à liberdade de imprensa no país.
Para alguns especialistas consultados pela Gazeta do Povo, a medida seria excessiva, por comprometer o direito de milhões de pessoas de se comunicarem em razão de supostas irregularidades – ainda não comprovadas e configuradas – cometidas por um grupo bastante restrito de pessoas, no caso, os executivos da empresa no Brasil.
Na última quarta-feira (23), o advogado-geral da União, Jorge Messias, enviou ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) duas petições. Na primeira, pediu a abertura de uma nova investigação sobre a divulgação de informações sigilosas de inquéritos conduzidos por Moraes no “Twitter Files”, nome dado às reportagens que revelaram e-mails, em que advogados brasileiros do X reportavam a executivos da empresa, nos Estados Unidos, pressões do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para suspender perfis de usuários.
A imputação é de que eles podem ter cometido o crime de obstrução da Justiça, por suposto embaraço à investigação de organizações criminosas, com pena de 3 a 8 anos de prisão. A hipótese é de que a divulgação de atos sigilosos de Moraes atrapalhe suas investigações.
Numa segunda petição, sigilosa e revelada pela Gazeta do Povo, Messias pediu a Moras provas da investigação já aberta sobre Elon Musk e outras que venham a ser colhidas na nova investigação pedida pela AGU. O objetivo, aqui, é responsabilizar a empresa X Brasil Internet Ltda. como pessoa jurídica. O advogado-geral da União destaca que, além de aplicar multas à empresa que podem chegar a 20% de seu faturamento, o órgão poderia pedir à Justiça “consequências extremamente graves, como a suspensão ou interdição parcial de suas atividades e até mesmo dissolução compulsória da pessoa jurídica”. O trecho faz parte de uma manifestação da Procuradoria-Geral da União (PGU), órgão da AGU que faz a defesa judicial de órgãos federais.
Esse tipo de punição, à pessoa jurídica, é previsto na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que responsabiliza empresas por atos lesivos à administração pública. A rede social X, para a AGU, poderia ser enquadrada por “dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação”. Trata-se de conduta prevista no artigo 5º da lei.
Eventual dissolução da X no Brasil inviabilizaria o funcionamento da rede social no país. O Marco Civil da Internet, lei de 2014 que regulamenta as redes sociais, impõe obrigações a provedores de aplicações na guarda de dados pessoais de usuários brasileiros e proteção de seus direitos individuais. Por isso, exige-se que a rede tenha ao menos uma representação jurídica em território nacional, para cumprir ordens judiciais ou administrativas.
O próprio Alexandre de Moraes exige que plataformas de internet mantenham uma representação no país para responder às suas decisões judiciais. No ano passado, ele ameaçou suspender a operação do Telegram no Brasil, caso a plataforma não indicasse ao menos um advogado no país para fazer o aplicativo obedecer a suas determinações.
Para o advogado André Marsiglia, especialista no tema da liberdade de expressão, “dissolver uma plataforma em um país é ato desproporcional e, portanto, censório”. “Pois em razão de ilícito determinado se atinge um número indeterminado de pessoas. Não se pode mais negar que plataformas hoje em dia, embora sejam empresas privadas, possuem um impacto público relevante. São promotoras do debate público e da audiência de veículos de imprensa e muitas vezes canal de comunicação entre governantes e seus cidadãos”, argumenta.
A rede social tem aproximadamente 20 milhões de usuários no Brasil e, embora não seja a plataforma mais popular, tornou-se a principal na discussão de temas de interesse público, reunindo os maiores influenciadores, jornalistas, formadores de opinião, parlamentares, autoridades, instituições públicas, empresas. Todos podem não apenas se manifestar livremente – seguindo os termos de uso –, mas também pagar para promover postagens e anúncios.
Para Alexander Coelho, advogado especializado em Direito Digital e Proteção de Dados, sócio do Godke Advogados, vê como questão central da petição da AGU o equilíbrio entre a necessidade de investigar possíveis irregularidades que possam afetar a administração pública e a Justiça, e a proteção dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão.
“Este equilíbrio é crucial, especialmente considerando que as plataformas de redes sociais, como a empresa X mencionada, desempenham um papel significativo na formação da opinião pública e na manifestação do pensamento”, afirma. O impacto de eventual banimento na liberdade de expressão, diz ele, se daria porque se trata de um direito fundamental que “sustenta a democracia, permitindo que as pessoas comuniquem ideias, opiniões e críticas sem medo de censura ou represália pelo Estado”.
Coelho pondera que não se trata de um direito absoluto, pois pode ser limitado por lei para proteger outros direitos ou interesses legítimos, como a segurança nacional, a ordem pública e os direitos de outras pessoas. O pedido da AGU, assim, poderia ser entendido como “meio de preservar a ordem pública e a Justiça”. “Se comprovadas, as alegações de manipulação ou interferência em processos judiciais ou administrativos pela empresa X representariam uma ameaça séria à integridade dessas instituições”.
Por outro lado, a medida poderia criar um “precedente preocupante” para a liberdade de expressão. “Há o risco de tais ações serem percebidas como uma tentativa de controlar ou limitar o discurso na plataforma, especialmente se os critérios e justificativas para tais intervenções não forem transparentes ou consistentemente aplicados.”
Integrantes do Ministério Público consultados sob reserva pela reportagem consideram a medida excessiva. Dizem que a punição de suspensão ou dissolução, prevista na Lei Anticorrupção, geralmente é aplicada em casos nos quais existe uma relação contratual entre a administração pública e uma empresa que funciona apenas de fachada, mas cuja atividade principal são atos criminosos, não o que dispõe formalmente sua razão social.
Exemplo hipotético é uma firma contratada por uma estatal que não presta os serviços pelos quais recebe pagamentos, mas serve apenas como meio para desviar os recursos. Na Lava Jato, por exemplo, foram identificadas empresas de lobistas contratadas pela Petrobras para “consultorias”, mas que, na verdade, serviam apenas para receber o dinheiro de propinas que eram depois depositadas por doleiros no exterior em favor de executivos e políticos.
A própria Lei Anticorrupção diz que a dissolução só pode ser determinada pela Justiça quando se comprovar que a empresa foi “utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos” ou foi “constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados”.
O advogado e ex-advogado-geral da União Fabio Medina Osório diz que a dissolução da pessoa jurídica “é a sanção extrema, a mais grave de todas”. Ordinariamente reservada para hipóteses em que a pessoa jurídica serve de fachada para a criminalidade. Qualquer sanção deve obedecer aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade”, afirma.
Ele diz não conhecer os detalhes da investigação, mas reconhece que eventual descumprimento de ordem judicial – como o dever de manter sigilo sobre diligências de uma investigação – pode configurar obstrução à Justiça. “Mas também pode haver excludentes de culpabilidade, tipicidade ou ilicitude”, pondera.
Outro risco, já apontado por diversos jornalistas, é a investigação criminal sobre os executivos acabar chegando também aos autores das reportagens, como o americano Michael Shellenberger. Tradicionalmente, o entendimento na Justiça é que um repórter que recebe informações sigilosas de um órgão público não comete ilícito de divulgá-la – eventual responsabilização caberia ao funcionário público que tem o dever de manter sigilo do material.
Advogados com experiência na área, no entanto, relatam que, não raramente, jornalistas que recebem materiais sigilosos acabam sendo chamados a depor, como investigados, testemunhas e de forma ambígua, de modo a revelarem as fontes da informação – algo que a Constituição veda, com base no direito ao sigilo da fonte, necessário ao exercício da profissão, para garantir, em muitos casos, o acesso da sociedade a informações sensíveis e de interesse público.
No caso do Twitter Files, no entanto, o suposto vazamento, na hipótese aventada pela AGU, partiu de funcionários de uma empresa privada e não envolveu documentos sigilosos do STF e do TSE, mas tão somente trechos de e-mails corporativos em que faziam menção a algumas decisões de Alexandre de Moraes. Trata-se de outra discussão que poderá ser suscitada pelos advogados da X no Brasil, seja para defender seus funcionários ou a própria pessoa jurídica.
Outra questão a ser esclarecida é se as informações divulgadas efetivamente prejudicaram as investigações. O problema é que tal avaliação seria feita por Moraes, que nesse caso, mais uma vez, atuaria como vítima (pelo fato ter sido afetado na condição de relator dos inquéritos das fake news e das milícias digitais, dentre outros) e julgador (na condução do novo inquérito sobre os vazamentos, pedido pela AGU).
Desde a quarta-feira (23), a reportagem tenta contato com o escritório que faz a defesa da plataforma no Brasil, mas não obteve retorno.