Milhares de indígenas que promoveram uma semana de protestos, encontros políticos e propaganda em Brasília encerram suas ações nesta sexta-feira (25) com frustrações. Uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que tentou conciliar o embate entre defensores e críticos da lei do marco temporal para demarcação de terras, irritou lideranças indígenas que tratam o tema como “inconciliável”. Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não usou o evento para demarcar mais terras e cumprir uma promessa estabelecida em 2023.
Por meio da última decisão de Gilmar Mendes, todas as ações judiciais relacionadas à lei do marco temporal, Lei 14.701, promulgada no final de 2023, estão suspensas. Como o Congresso votou a favor do marco temporal e o STF havia decidido contra, na prática, com a nova decisão de Mendes, ninguém sabe o que está valendo de fato e o setor embarca em um novo período de insegurança jurídica.
Integrantes da bancada do agro consideraram a decisão de Mendes como uma sinalização positiva para a solução dos impasses. Mas o clima ainda é de expectativa e desconfiança em relação ao Executivo e ao Judiciário.
Apesar de não terem visto o marco temporal derrubado definitivamente e terem tido apenas duas novas reservas demarcadas, lideranças indígenas comemoram algumas conquistas. Foram celebrados o sucesso na organização de um acampamento de grandes proporções e também a realização de uma série de protestos nas ruas de Brasília, que tiveram até o lançamento de um álbum do DJ brasileiro Alok, que tem fama internacional, com a temática indígena. No início da semana a organização disse que 20 mil indígenas participaram das ações. Já nesta sexta-feira (26), a contagem oficial era de 8 mil.
Gilmar Mendes quer receber propostas de conciliação sobre marco temporal
Mendes determinou que os grupos autores das ações contra e a favor do marco temporal, entre eles partidos políticos e Organizações Não Governamentais (ONGs), apresentem propostas para a solução do “litígio constitucional”, que ocorre quando há conflito de interesses.
O presidente Lula, bem como os presidentes da Câmara e do Senado, também deverão se pronunciar em um prazo de 30 dias estabelecido pelo ministro do STF. Além deles, a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) também devem buscar o consenso sobre o tema.
Atualmente há um conflito entre o que foi decidido pelo Congresso na chamada Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023) e o que foi debatido pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que se opôs ao Congresso derrubando a tese do marco temporal. Após a conciliação proposta por Mendes, deve ser fixado um entendimento sobre a validade ou não do marco temporal previsto na lei.
A tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, aprovada na lei, entende como requisito para demarcação a necessidade de haver ocupação ou disputa da área em questão na data de promulgação da Constituição Federal (5/10/1988).
Na prática, o marco temporal traz segurança jurídica e atrai investimentos para o setor agropecuário. Isso porque produtores ficam livres da ameaça constante de peder suas terras a qualquer momento se um laudo antropológico determinar que suas propriedades eram habitadas por indígenas em algum momento no passado.
Ao explicar a decisão, o ministro Mendes afirmou que a medida visa evitar o surgimento de decisões judiciais conflitantes que possam causar graves prejuízos às partes envolvidas (comunidades indígenas, entes federativos ou particulares).
A decisão, no entanto, respinga no governo Lula e coloca o petista em situação ainda mais complicada em meio à queda na popularidade em menos de um ano e meio de seu terceiro mandato. Os indígenas criticam o fato de Lula não estar cumprindo com as promessas de demarcações e de não ter seu discurso completamente alinhado ao das ONGs indígenas e indigenistas, que repudiam o marco temporal.
Lula havia prometido demarcar 14 novas terras indígenas em seus 100 primeiros dias de governo. Até agora, conseguiu demarcar 10. Segundo lideranças indígenas, outras 25 futuras reservas estão com processos parados por atrasos na burocracia administrativa.
Acampamento tem cocar a R$ 800, pintura corporal e debates políticos acalorados
O Acampamento Terra Livre ocupa uma vasta área no Eixo Monumental, bem no centro de Brasília, entre a Torre de TV e o Centro de Convenções Ulysses Guimarães. A entrada se assemelha a uma feira, onde comerciantes oferecem cocares de penas por preços entre R$ 800 e R$ 1.000 (de acordo com a cara do cliente), adereços de penas e miçangas (de R$ 30 a R$ 200), roupas de marcas esportivas famosas, salgadinhos, macarrão, churrasquinho e capas de celular Iphone.
Os clientes são brasilienses, muitos estrangeiros e os próprios indígenas - estes mais interessados nas roupas e nas barraquinhas de comida. Há ainda grande troca cultural, pois há tribos de praticamente todas as regiões do país. Esta é a 20ª vez que o acampamento é organizado.
Quando se avança mais adentro é possível ver centenas, possivelmente milhares de pequenas tendas (industrializadas e padronizadas, as mesmas usadas por campistas e montanhistas). Indígenas circulam de cocar e com as peles pintadas com Ucucum e Jenipapo. Qualquer interessado pode ser pintado por R$ 20. Para tirar fotos com os indígenas também é preciso pagar.
No centro do acampamento há tendas bem estruturadas com arquibancada e palco onde acontecem debates e plenárias que ficam lotadas para debates políticos. A maioria dos indígenas não fala de política, mas as lideranças têm uma visão mais à esquerda da questão, refratária ao desenvolvimento e focada em criar santuários na mata para "preservação" das populações indígenas. Foi na maior dessas tendas de debates políticos que a decisão de Gilmar Mendes começou a repercutir desde que foi divulgada na segunda-feira (22).
“Inconciliável”: indígenas demonstram insatisfação com decisão de Mendes
A decisão de Gilmar Mendes sobre a lei do marco temporal foi publicada no final do primeiro dia de mobilização no acampamento. Os debates sobre as determinações de Mendes foram iniciados já na terça-feira (23). Com o tema “os desafios enfrentados pelos povos indígenas frente à aprovação da Lei do Marco Temporal", advogados indígenas, representantes do Ministério Público Federal, do governo federal e de ONGs indígenas e indigenistas criticaram a tentativa de conciliação proposta.
Embora o ministro tenha ressaltado em sua decisão a necessidade de conciliação, os indígenas não têm demonstrado disposição nesse sentido. “Gilmar Mendes abriu as porteiras para a boiada passar ao buscar a conciliação em uma pauta que é inconciliável. Se fosse possível um consenso sobre territórios indígenas neste país, nós não estaríamos aqui brigando há 524 anos”, disse a advogada indígena Alessia Tuxá, que é defensora pública na Bahia.
O coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Maurício Terena, chamou a decisão do ministro de “golpe” e fez críticas ao regime indenizatório que ainda está sendo debatido no STF. O regime mencionado por Terena trata das indenizações que podem ser concedidas aos proprietários de áreas que possam ser demarcadas como terras indígenas. Essas indenizações estão previstas na lei do marco temporal e foram tema dos votos dos ministros do STF durante o julgamento que derrubou a tese do marco temporal em setembro de 2023.
Outra advogada indígena, Kari Guajajara, destacou a angústia e a revolta com a decisão de Gilmar Mendes. “Nós não estamos aqui para rifar os nossos direitos territoriais. Nós não negociamos com tese do marco temporal”, disse Kari. A advogada ainda questionou a tentativa de Mendes de conciliar as possíveis inseguranças jurídicas nas interpretações entre o julgamento do STF e a lei sobre o marco temporal. “Que segurança jurídica é essa se o Gilmar Mendes não suspendeu os efeitos da Lei?”
Na mesma terça-feira (23), lideranças indígenas tentaram projetar nas paredes do congresso, usando um sistema de luz, as frases "demarcação é democracia", "futuro indígena é demarcação já" e "o Brasil é terra indígena", mas foram barradas por ordem do presidente da Câmara, Arthur Lira. A decisão se baseou no fato de que as frases iriam contra decisões já tomadas pelo Congresso. Entre elas está a tese do marco temporal. Os indígenas só foram autorizados a projetar a frase "o futuro é ancestral", que remete ao novo álbum do DJ Alok.
“Sinalização positiva”: bancada do agro vê possibilidade de solução para embate sobre marco temporal
A tentativa de conciliação, rejeitada pelos indígenas, foi recebida com entusiasmo pelos parlamentares da bancada do agro. “Eu achei uma sinalização muito positiva. Gostei porque deixa muito claro que o nosso trabalho é válido, reconhece a legislação aprovada, a legislação que está vigente”, disse o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-PR).
Em sua decisão, o ministro Gilmar Mendes enfatizou a necessidade de disposição política para a resolução do conflito. “[...]Para sentar-se à mesa, é necessário disposição política e vontade de reabrir os flancos de negociação, despindo-se de certezas estratificadas, de sorte a ser imperioso novo olhar e procedimentalização sobre os conflitos entre os Poderes, evitando-se que o efeito backlash [de retaliação] seja a tônica no tema envolvendo a questão do marco temporal”, pontuou Mendes.
Lupion também destacou a vontade do ministro de “organizar o jogo”. “O que o ministro Gilmar Mendes fez ontem foi justamente botar a bola no chão e falar: 'Espere aí, vamos organizar esse jogo aqui, quero ouvir todas as partes e traçar o caminho correto'”, disse o presidente da FPA.
A deputada indígena, Silvia Wãiapi (PL-AP) também comentou a decisão e destacou a necessidade de se colocar um ponto final no debate sobre o marco temporal. “Eu não vivo no século 16 e estou no século 21, como toda essa civilização brasileira, e não podemos voltar na história. É preciso um ponto final, um marco temporal, em que todos os brasileiros (indígenas ou não) possam ser donos de sua própria terra”, disse Silvia.
Indígenas demonstram insatisfação com governo Lula
O desgaste na imagem de Lula tem se acentuado desde o início do governo, mesmo em grupos que são considerados sua base. É o caso de grupos ligados à causa indígena. Lula chegou a vetar a maior parte da proposta sobre o marco temporal aprovada no Congresso, mas não teve força política para barrar a derrubada dos vetos mobilizada pela bancada do agro. Além disso, um dos principais compromissos de Lula na questão indígena foi retomar os procedimentos demarcatórios, paralisados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Ao assumir, Lula se comprometeu em demarcar 14 terras indígenas já no primeiro ano, mas homologou apenas oito no período. Ao celebrar o dia dos povos indígenas, no dia 19 de abril, mais duas terras foram homologadas. Mas o tom de comemoração deu espaço a um clima de frustração entre indígenas contrários ao marco temporal.
“Temos algumas terras ocupadas por fazendeiros, outras por gente comum, possivelmente tão pobres quanto nós. Tem umas que têm 800 pessoas que não são indígenas ocupando. Tem outras com mais gente. E tem alguns governadores que pediram mais tempo para saber como vamos tirar essas pessoas, porque não posso chegar com a polícia e ser violento com as pessoas que estão lá. Tenho que ter o cuidado de oferecer a essas pessoas uma possibilidade para que possam entrar tranquilamente na terra... ", disse Lula, em evento com a presença de dezenas de indígenas e entidades indigenistas.
Nesta semana, durante a mobilização de indígenas em Brasília, a advogada indígena Kari Guajajara criticou as falas de Lula. “O presidente desse país fez uma fala extremamente problemática. Quando demarcou somente duas terras indígenas, ele fez uma afirmação que descaracterizava o artigo 231 da Constituição Federal e reforçava o marco temporal de ocupação. E não estranhamente, alguns dias depois do executivo se pronunciar neste sentido, nós temos o judiciário se pronunciando no mesmo sentido”.
O coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena, fez críticas mais veladas ao governo, direcionando-as aos Ministério da Justiça e da Defesa. A restrição às críticas pode estar relacionada ao fato de seu antecessor no cargo na ONG indígena, Eloy Terena, hoje ocupar o posto de secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas. Em sua fala, Maurício Terena destacou o fato de que nenhuma portaria declaratória [documento que faz parte do processo de homologação de reservas] foi lançada pelo Ministério da Justiça, além de acusar o Ministério da Defesa de omissão, por ter, supostamente, dificultado o acesso dos yanomami às cestas básicas destinadas pelo governo.
Além disso, Maurício preferiu demonstrar o descontentamento maior com o STF e os parlamentares. “É preciso mandar um recado claro para o Congresso e para o STF de que a gente não tá contente”, destacou o coordenador jurídico da ONG.
Em encontro com Lula, indígenas reforçaram pedidos de demarcação
Diferente do que ocorreu na edição passada da mobilização, Lula não foi até o acampamento indígena. Neste ano, apenas 40 lideranças foram recebidas pelo presidente no Palácio do Planalto para a entrega de uma carta com demandas dos povos indígenas. Na reunião, Lula foi cobrado, em especial, pela demora no cumprimento das promessas de demarcações.
Em resposta, Lula disse que criará uma força-tarefa para tentar destravar os processos de demarcação de terras pendentes. A prioridade são quatro áreas: duas em Santa Catarina, uma na Paraíba e uma em Alagoas.
O presidente afirmou que dentro de duas semanas a força-tarefa liderada pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI), em conjunto com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Secretaria-Geral da Presidência de República, a Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministério da Justiça (MJ) - responsável por emitir portarias declaratórias -, e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Incra, dará início ao processo de resolução para assinar as homologações prioritárias.
Durante entrevista à imprensa após a reunião com Lula, um dos coordenadores executivos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinaman Tuxá, externou o descontentamento com a condução do governo na pauta indígena. De acordo com ele, o governo chegou a fazer o movimento de trazer lideranças dos territórios que estavam entre as promessas, mas as homologações não ocorreram. “Nós ajudamos a eleger esse governo, e ele é muito melhor que o anterior, mas isso não quer dizer que nós vamos deixar de cobrar”, disse a liderança.
Ainda, durante a entrevista, Tuxá disse que o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Márcio Macedo, será o articulador da força-tarefa buscando um maior engajamento dos ministérios para a solução da pauta indígena apresentada. "Lula se comprometeu em focar no avanço, não só das terras que precisam ser homologadas, mas de toda a política de demarcação", completou o indígena.
Triângulo Mineiro investe na prospecção de talentos para impulsionar polo de inovação
Investimentos no Vale do Lítio estimulam economia da região mais pobre de Minas Gerais
Conheça o município paranaense que impulsiona a produção de mel no Brasil
Decisões de Toffoli sobre Odebrecht duram meses sem previsão de julgamento no STF