• Carregando...
réus stf
Julgamento dos quatro primeiros réus estabeleceu tese para demais acusados| Foto: Nelson Jr./SCO/STF.

Duas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) podem selar o destino dos próximos 231 réus do 8 de janeiro nos próximos dias: o julgamento dos acusados em plenário virtual e o acatamento da tese de “crime de multidão” como argumento para julgar os envolvidos de uma forma única, excluindo a individualização dos casos. Para advogados dos réus ouvidos pela Gazeta do Povo, as decisões impedem a ampla defesa garantida pela Constituição Federal.

Na quarta-feira (20), o ministro Alexandre de Moraes, do STF, negou um pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que contestou a decisão da presidente do STF, ministra Rosa Weber, de julgar os réus de forma virtual. O argumento da entidade é que julgamento compulsório, sem a opção de ocorrer em plenário físico, viola “o devido processo legal, o contraditório e o direito de defesa”. Por outro lado, o plenário físico assegura aos advogados a oportunidade de realizar a sustentação oral em tempo real de forma clara e efetiva.

No julgamento de Aécio Lúcio Costa Pereira, primeiro condenado por causa do 8 de janeiro, o Supremo acatou a tese da Procuradoria-Geral da República (PGR) de que os atos de vandalismo às sedes dos Três Poderes resultaram de um “crime multitudinário”, ou seja, cometido por uma multidão, em que as pessoas envolvidas influenciavam umas às outras com o objetivo comum de derrubar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por meio de violência ou grave ameaça e impedir ou restringir o exercício dos poderes Judiciário e Legislativo.

Defesas apontam ilegalidades no processo

A advogada Morgana Kjelin, que defende 46 réus, afirma que a defesa não teve acesso às provas do “crime de multidão” apresentado pela PGR, o que inviabilizaria a defesa de seus clientes.

“A maioria dos ministros reconheceu que os crimes ocorreram na forma de crime de multidão, alegando que tem provas suficientes, que eles têm documentos, registros, fotos, vídeos e declarações dos presos em redes sociais que comprovam essas ações violentas. Ocorre que a defesa não tem acesso a essas provas. Então, como eles vão incriminar alguém sem direito de defesa? Não há como falar nesse crime, porque o crime de multidão é quando um influencia o outro e todos estavam conscientes. Mas bem se sabe que, na verdade, essa manifestação, a intenção desses manifestantes era fazer uma manifestação de forma pacífica e ordeira”, diz a advogada.

Ela critica ainda a determinação de julgamento virtual, pois avalia que diminui o papel do advogado no processo. "A sessão do julgamento oral possui grande importância ao direito da ampla defesa do acusado. Quando ocorre de forma virtual, não desmerecendo a forma virtual, mas quando ocorre de forma virtual, sem consentimento das partes, coloca o advogado em um patamar inferior. Inclusive, o artigo 6º do Estatuto da Advocacia especifica que não há hierarquia e nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público".

Responsável por defender 24 réus, o advogado Ezequiel Silveira argumenta que a utilização de “crime de multidão” para o caso seria inconstitucional. Para o jurista, o fato de os acusados estarem na Praça dos Três Poderes não os iguala aos que invadiram os prédios públicos.

“A figura do “crime multitudinário” é inconstitucional, uma vez que viola o princípio da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII, CF), e da individualização da pena (art. 5º, inc. XLV, CF). Trata-se de responsabilidade penal objetiva, o que é vedado no ordenamento jurídico brasileiro, que adota o princípio da responsabilização penal subjetiva. Se crimes foram praticados na Praça dos Três Poderes, em 08 de janeiro, não pode o simples fato de alguém estar nas proximidades aderir, por osmose, ao desiderato criminoso de outros. Tal situação é incabível juridicamente, pois não existe adesão “geográfica” à prática criminosa”, disse o advogado.

E acrescentou: “Diversas pessoas foram à Praça dos Três Poderes se manifestar pacificamente. Se houve pessoas que promoveram depredações, que sejam identificadas e punidas nos termos da lei. Entretanto, não é aceitável que uns paguem pelos crimes de outros. Caso não seja possível individualizar as ações, deve-se aplicar o princípio do in dubio pro reo [“na dúvida, em favor do réu”], e absolver os acusados. E não condená-los a penas altíssimas pelo crime de “live”, como ocorreu na semana passada.

O advogado Claudio Caviano, que representa 18 réus, afirmou que a publicidade do processo, garantida pela sustentação oral em plenário, é um direito firmado pelo Brasil em tratados internacionais.

“O direito parece ter sido sepultado definitivamente, porque isso [o julgamento virtual] fere o princípio da ampla defesa e do contraditório. Todo processo é público. Isso é um dever que consta na nossa Constituição, no Código de Processo Penal, no Pacto de São José da Costa Rica e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tudo isso está sendo suprimido de maneira bastante arbitrária e nós não vemos que possa ser corrigido depois dessa violação. O princípio da publicidade é um princípio basilar de toda democracia”, disse o jurista.

Ele salientou que o julgamento virtual retira a defesa técnica por parte do advogado, trabalho considerado essencial em um processo. “Quando o processo é colocado no plenário virtual, ele suprime o direito do advogado falar pelo seu cliente representado. Advogar é falar por alguém. Estão impedindo que o advogado fale pelo seu cliente. Isso fere as prerrogativas da nossa profissão e fere o artigo 133 da Constituição Federal, que diz que o advogado é imprescindível”.

Ao contrário dos réus defendidos por Morgana e Silveira, os clientes de Caviano estão com as denúncias suspensas por 120 dias após decisão de Moraes. Com o recebimento de 1.345 denúncias, o magistrado determinou que parte delas fosse suspensa para que a PGR analise se propõe ou não Acordos de Não Persecução Penal (ANPP).

Editorial da Gazeta do Povo salientou a escolha que poderá ser dada pela PGR aos réus: "confessar um crime que eles têm a convicção de não ter cometido para escapar da prisão, ou manter sua inocência e enfrentar um julgamento cujo resultado é bastante previsível, à luz de todo o clima de caça às bruxas montado em relação ao 8 de janeiro na opinião pública, no Judiciário e no governo federal". Se aceitar o acordo, "o investigado não seria julgado e não correria risco de voltar para a cadeia, tendo apenas de prestar serviços comunitários e pagar uma multa".

Juristas questionam tese do “crime de multidão”

Apesar de prevista no ordenamento jurídico brasileiro, a tese do “crime de multidão” utilizada pelo Supremo no caso dos manifestantes do 8 de janeiro não parece se aplicar nessa situação. Advogados de fora do caso ouvidos pela reportagem afirmam que a ocorrência do crime requer certas condições para ser configurado.

Segundo o advogado cível Emerson Grigollette, os manifestantes do dia 8 não tinham condições para aplicar um golpe de Estado. “Admitir que aquelas quase 2 mil pessoas - dentre elas incontáveis crianças, idosos e outros tantas pessoas desarmadas - seriam capazes de promover um golpe de Estado, destituindo um governo ou mesmo abolindo o Estado Brasileiro atual é admitir que vivemos uma total anarquia, em uma completa ausência de Estado. Por óbvio, a lei não exige a consumação do golpe ou da abolição do estado atual, mas, por outro lado, não há como negar a necessidade de existência de um potencial real e efetivo das condutas serem consumadas, o que não vislumbro, nem sob lupa, sobre o caso em epígrafe”, disse o jurista.

Em casos de crimes de multidão, a ampla defesa se torna uma condição essencial ao processo. “Não é de hoje que nossos Tribunais lidam com os ditos crimes multitudinários, ou seja, crimes de multidão, por assim dizer. A jurisprudência é majoritária no sentido de admitir sua ocorrência. No entanto, esse mesmo entendimento majoritário segue o raciocínio de que os crimes multitudinários somente são admissíveis quando exercido plenamente a ampla defesa e o contraditório, o que, como temos visto nos últimos anos, não vem sendo respeitado”.

O advogado criminalista Adriano Soares da Costa também questionou o real potencial de um golpe de Estado por parte dos réus e explicou que a conduta individual deve ser analisada nos casos de crimes multitudinários. “A turba desejava derrubar mesmo o governo? Quem dela participou tinha essa consciência? Qual a conduta individual em concreto que demonstraria a consciência dessa finalidade? O acusado participou diretamente da depredação? O acusado estava dentro ou fora dos prédios públicos invadidos? Para responder a essas perguntas, apenas julgamentos individuais e suas defesas individuais garantem o devido processo legal”, disse o jurista.

O professor de Direito Penal Gustavo Dandolini, docente na Universidade Federal de Rondônia (UFRO), argumenta que a utilização da tese do “crime de multidão” deve ser feita com cautela. “Embora infrações envolvendo a aglomeração de pessoas não sejam incomuns, a interpretação específica conferida pelo STF pode ser vista como uma adaptação das leis existentes para lidar com esse tipo de delito. A jurisprudência e a interpretação do Direito Penal estão em constante mutação, mas essa aplicação da lei deve ser realizada com cautela e responsabilidade, reconhecendo que deve ser aplicado apenas subsidiariamente, sendo o último recurso para regular as interações sociais em uma sociedade democrática baseada no Estado de Direito”, explica o professor.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]