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Nos quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o ministro da Economia do período, Paulo Guedes, encabeçou uma agenda liberal para o Brasil. Embora os resultados colhidos na busca por redução da máquina estatal, realização de privatizações em série, desregulamentação generalizada e abertura comercial tenham ficado aquém de suas aspirações, as iniciativas dele introduziram esses temas no país de forma explícita e definitiva. Na prática, contudo, a agenda de Guedes está hibernando.
Um ano após a saída do ministro do poder, seu legado continua produzindo efeitos positivos nos indicadores econômicos, enquanto a vizinha Argentina, sob a liderança do presidente libertário Javier Milei, vive um choque ainda mais amplo e radical de liberalismo, marcado por centenas de medidas em discussão. O Brasil, por sua vez, vê a pausa na agenda de reformas liberais, seja devido à mudança de governo, com a volta do esquerdista Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seja pela dificuldade de a maioria dos parlamentares, de perfil de centro-direita, avançar com propostas para retomá-la. A vitória de Milei foi festejada pela direita brasileira e apoiada por Bolsonaro e seu grupo.
O Centrão, grupo majoritário na Câmara, conseguiu até agora apenas barrar revisões e revogações propostas por Lula contra avanços liberais. Políticos e analistas entrevistados pela Gazeta do Povo avaliam que a retomada da liberdade econômica no Brasil dependerá do rearranjo de forças após as eleições de 2026, sendo que o êxito ou o fracasso da avalanche de decretos de Milei poderá influenciar nesse cenário. Para eles, os partidos unidos para reeleger Bolsonaro – PL, PP e Republicanos – têm priorizado só a agenda conservadora de costumes, sem investir na pauta do liberalismo econômico, cuja bandeira é erguida pelo Novo – com só três deputados federais e um senador no Parlamento.
Prova disso foi a aprovação em novembro de 2023 pela Câmara dos Deputados do projeto que resgata a “Carteira Verde e Amarela”, proposta de Guedes para flexibilizar regras trabalhistas para contratação de jovens de 18 a 29 anos e de pessoas com mais de 50 anos. Relatado por Adriana Ventura (Novo-SP), o texto ganhou 286 votos “sim” e 91 “não”, e seguiu para a análise do Senado.
Segundo o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RJ), “a agenda liberal não avançará sozinha no Congresso enquanto a Câmara for presidida por Arthur Lira (PP-AL)”, que estaria condicionado pelo “toma lá, dá cá” com o governo. Lira, contudo, é entusiasta de uma reforma proposta por Guedes na gestão Bolsonaro e rejeitada pela de Lula: a reforma administrativa ou do Estado.
Para o cientista político Luiz Felipe D’Ávila, candidato a presidente pelo Novo em 2022, a agenda liberal não conseguirá avançar no Congresso pelas mãos da oposição. “Com a exceção de meu partido, que defende de fato essa pauta, não encontramos no restante da oposição defensores da abertura econômica, da desregulamentação e da redução de subsídios. Infelizmente, a maioria gosta de uma ajudinha do Estado”, disse.
D’Ávila reconhece que o liberalismo “andou duas casas” durante o governo Bolsonaro, em razão de Paulo Guedes. Segundo ele, o Congresso aprovou matérias como o marco do saneamento, que melhorou a governança no setor e impediu a contratação de estatais sem licitação, a lei de liberdade econômica, que desburocratizou e facilitou o empreendedorismo e novo marco das startups, que incentivou o surgimento de empresas inovadoras no país, entre outras iniciativas.
Mas o governo Bolsonaro teve em seu final o que D’Ávila classifica como uma "recaída antiliberal", aprovando projetos "absurdos", como as PECs Kamikaze, garantiu gastos adicionais do governo com benefícios sociais em pleno ano eleitoral, e a dos Precatórios, que escalonou os pagamentos do governo a fornecedores por determinação judicial ao longo dos próximos três anos e o orçamento secreto, que deu poder para o Legislativo fazer gastos em troca de apoio político.
Apesar dos avanços significativos em temas centrais, o ex-ministro Guedes não conseguiu superar resistências políticas à abertura econômica, algo caro aos liberais. “Havia na base governista apoiadores da indústria nacional, protecionismo e reserva de mercado”, lamentou.
João Henrique Hummel, diretor da Action Relações Governamentais, discorda e avalia que os liberais do Congresso estão perdendo, sim, a chance de seguir produzindo mudanças estruturais no país sob o espectro liberal.
Ele ressalta que há maioria de deputados que já vem impedindo reveses nos avanços dos últimos governos e que o protagonismo do Congresso tem se expressado por projetos de sua exclusiva iniciativa. “Por que os parlamentares não sugerem, por exemplo, o fim do monopólio natural, para abrir mercados e gerar competição, eficiência e menores preços?”, provocou.
Milei ataca em bloco reformas que o Brasil toca desde 1990
O conselheiro de empresas e palestrante Ismar Becker lembra que a maior diferença entre Milei e Guedes está no fato de o economista argentino ter a caneta presidencial na mão para dar aval às suas intenções e impulsioná-las. “Milei é a própria mudança. Ele está usando os duros instrumentos que tem dentro de um arrojado plano de ataque com uma equipe experiente. O tsunami de medidas que deflagrou já estava pronto e a aposta está lançada”, disse. Sobre Guedes, Becker observa que, além da contenção de Bolsonaro, ele também não sabia negociar com políticos para avançar no meio termo.
O plano econômico de Javier Milei era conhecido por medidas extremas, como acabar com o Banco Central e dolarizar a economia. Na prática, o presidente argentino, um economista libertário de 52 anos, está propondo uma revolução para atacar o déficit estatal de forma arrasadora, sem qualquer gradualismo. A meta é aprovar seu “decretaço” na íntegra até o fim de janeiro, em regime de urgência. A Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos (Lei Ônibus) ataca vários gargalos estatais de uma só vez, muitos dos quais o Brasil vem perseguindo desde 1990.
Milei foi eleito com 56% dos votos, maior votação presidencial em 40 anos de redemocratização da Argentina. Seu partido, A Liberdade Avança, tem, contudo, presença minoritária no Congresso. Milei precisará negociar para que o DNU e o chamado projeto Ônibus, com mais de 600 artigos, passem. Ele já disse que realizará um plebiscito caso os parlamentares rejeitem, em meio ao debate sobre constitucionalidade.
Empossado em 10 de dezembro, Milei já sofreu uma primeira derrota nesse esforço na quarta-feira, quando a Justiça do Trabalho decidiu suspender o capítulo da reforma trabalhista prevista no seu decreto de necessidade e urgência (DNU), equivalente à medida provisória (MP). A decisão atendeu ao recurso da Confederação Geral do Trabalho (CGT), maior central sindical do país. No DNU, com mais de 340 artigos, a reforma trabalhista inclui, por exemplo, ampliação do período de experiência do trabalhador de três para oito meses, mudança no sistema de indenizações e demissão para quem fizer protesto na porta das empresas.
Apesar das resistências, agenda de Guedes deixou legado ao país
Embora tenha enfrentado obstáculos nas reformas estruturais, como a administrativa e a tributária, consideradas cruciais por ele para impulsionar o crescimento do país, Paulo Guedes implementou ou apoiou diversas medidas liberalizantes. Ao deixar o cargo em dezembro de 2022, as contas públicas estavam sob controle, registrando superávit fiscal pela primeira vez desde 2013, em um cenário mais positivo que o atual.
Mesmo diante da resistência da maioria dos políticos, incluindo Bolsonaro, Guedes obteve avanços na sua agenda que permanecem. Destacam-se a bem-sucedida Reforma da Previdência, que resultará em uma economia de R$ 900 bilhões em 10 anos, e a autonomia do Banco Central, preservando a política monetária contra interferências políticas. Apesar de não atingir a meta de R$ 1 trilhão em privatizações, houve progressos na desestatização da Eletrobras e em concessões em diversas áreas, como aeroportos e rodovias, reduzindo a presença estatal na economia.
Na área de marcos regulatórios, a agenda liberal teve impacto expressivo, modernizando setores como saneamento, gás, ferrovias e navegação. A Lei da Liberdade Econômica melhorou o ambiente de negócios, simplificando licenças para atividades de baixo risco e facilitando o empreendedorismo. A busca pela adesão à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) refletiu o compromisso com padrões internacionais de qualidade para atrair investimentos externos.
A redução do papel do Estado envolveu desembolsos mais focados do BNDES, expansão do mercado de capitais e cortes pontuais de tarifas de importação. A gestão profissionalizada das estatais trouxe lucro, redução do endividamento e pagamento de dividendos. A Nova Lei de Falências, por sua vez, proporcionou flexibilidade a empresas em recuperação judicial.
Apesar da ausência da Reforma Administrativa, o governo anterior promoveu forte ajuste interno, reduzindo o quadro de servidores e os gastos com o funcionalismo. A digitalização de serviços, desburocratização e estímulos a empresas inovadoras foram parte das realizações, além da modernização do mercado de câmbio e avanços na digitalização do sistema financeiro, incluindo o Pix. O investimento público declinou, mas foi compensado pelo crescimento dos investimentos privados.
"Herança maldita" de Bolsonaro continua ajudando a economia
Desde a transição de governo, Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acusam os antecessores, Bolsonaro e Guedes, de deixarem uma “herança maldita”, repetindo discurso contra a era Fernando Henrique Cardoso, no primeiro mandato petista. Especialistas e políticos de oposição perceberam alguma perda de fôlego nos efeitos positivos dos avanços nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, sobretudo com a desconfiança do mercado com a atual gestão da economia, retardando investimentos. Curiosamente, a reforma tributária, nascida e impulsionada no Congresso, ajuda os petistas.
Lula não conseguiu emplacar o tal “revogaço” das medidas liberalizantes implementadas ou apoiadas por Guedes. A sua contrarreforma veio por meio de portarias, decretos e projetos de lei, mas encontrou resistências no Congresso e na sociedade. Algumas medidas, como afrouxamento na Lei das Estatais e a volta do imposto sindical, andaram devido à colaboração do Supremo Tribunal Federal (STF). O fim do teto de gastos até passou pelo Congresso, mas mediante adoção de novo arcabouço fiscal. Os ataques à autonomia do Banco Central, à privatização da Eletrobras e ao novo marco do saneamento, por sua vez, passaram longe dos plenários do Congresso.
Com o status de “Posto Ipiranga” que lhe fora dado por Bolsonaro ainda na campanha de 2018, Guedes dobrou especulações de saída à cada derrota pessoal, mas acabou permanecendo até o fim no cargo, mesmo com margem de manobra limitada. Na prática, ele lutou para evitar que pressões do calendário eleitoral e os efeitos da pandemia e da guerra entre Rússia e Ucrânia enterrassem a sua agenda. A Covid-19 desorganizou as finanças públicas e abalou a economia do país e do mundo, gerando escassez de produtos, encarecimento de fretes e pressão inflacionária.
O líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), rebate as críticas do PT, lembrando ser hábito reiterado do partido, quando no poder, de criar narrativas inverídicas sobre o passado recente do país. “Pela primeira vez na história econômica recente, desde 1988, tivemos um governo em que a relação da dívida com o Produto Interno Bruto foi menor ao seu fim do que aquele que foi apresentado no seu início. Houve decréscimo de quase 12 pontos percentuais, mesmo com os impactos das intempéries dos quatro anos passados: catástrofe de Brumadinho, maior crise hídrica em 90 anos, pandemia da Covid e guerra da Rússia com a Ucrânia”, disse.
Marinho ressalta ainda que a relação de investimento, da poupança brasileira entre o privado e o público, no início do governo Bolsonaro, era de 14,5% a 15%, e terminou em quase 19%, um acréscimo de quatro pontos percentuais. Em relação a um PIB hipotético de R$ 10 trilhões, houve um acréscimo de R$ 400 bilhões, graças a investimentos feitos, principalmente pela iniciativa privada, em função da previsibilidade, da segurança jurídica, da mudança da infraestrutura e da macroeconomia, como as reformas estruturantes que começaram ainda no período Temer, como a trabalhista.