| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

A discussão do marco legal do saneamento na Câmara dos Deputados chegou à reta final, ainda cercada de muitas dúvidas, polêmicas e embates. O Projeto de Lei nº 3261/19 está na agenda do plenário desta segunda-feira (9) e tem o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), como um de seus principais entusiastas. O texto também tem o apoio do governo Bolsonaro, para quem a proposta vai atrair R$ 700 bilhões em investimentos e universalizar os serviços de saneamento até 2033.

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INFOGRÁFICO: os indicadores de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, por estado

O tema, porém, divide as bancadas estaduais, cada qual convivendo com uma realidade diferente: enquanto no Paraná os serviços de água e esgoto estão disponíveis para a maioria da população, há estados com índices baixíssimos, uma situação precária que gera impactos na saúde e no bem-estar da população.

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São as distintas realidades estaduais que pesam contra o PL, um texto que pretende unificar as regras do setor sob o guarda-chuva da Agência Nacional das Águas (ANA). Mas o principal objetivo do projeto é abrir o mercado para a iniciativa privada, de modo a garantir recursos para a universalização do abastecimento de água e da coleta e tratamento do esgoto.

Na média brasileira, 83,5% da população é servida por rede de água e apenas 52,4% tem o esgoto coletado, dos quais apenas somente 46% são tratados, conforme os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) divulgados em fevereiro. Esses percentuais pouco subiram nos últimos anos, ligando o alerta para a impossibilidade de se cumprir as metas de universalização até 2033, conforme o Plano Nacional de Abastecimento (PlanSab), de 2013.

Estudo do Instituto Trata Brasil divulgado em 2018 apontou que são necessários investimentos de R$ 443,5 bilhões em 20 anos para levar água e esgoto a todos os brasileiros. O problema é que, com a crise econômica, os recursos públicos para aplicar no setor foram reduzidos – mesmo com a possibilidade de ganhos futuros. Já descontando os custos da universalização, a sociedade brasileira teria ganhos econômicos e sociais estimados em R$ 1,1 trilhão. O levantamento foi feito pela consultoria Exante, em parceria com o Trata Brasil e a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).

As dificuldades das empresas estatais em melhorar os índices – o mercado hoje é dominado por sociedades de economia mista com administração pública – levaram o deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), relator do PL na comissão especial sobre o assunto, a prever o fim dos contratos vigentes. Entre as críticas direcionadas às estatais estão o uso político, com loteamento de cargos e usurpação dos anúncios de investimentos – independentemente do fato de que as obras são obrigações previstas em contrato e são financiadas pela tarifa paga pelo usuário.

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As primeiras versões do texto foram muito criticadas, e o substitutivo que será levado ao plenário da Câmara prevê sobrevida aos contratos firmados, até o advento do prazo contratual. Há prazo de um ano para as empresas estatais renovarem os chamados “contratos de programa” com os municípios. Há previsão de prorrogação de cinco anos no caso de contratos vigentes que comprovem cobertura de 90% do serviço de abastecimento de água e 60% no de coleta e tratamento de esgoto. Após um ano da promulgação da lei, a licitação será obrigatória, com participação de quaisquer interessados: empresas públicas ou privadas.

Mas o foco de Zuliani é mesmo em repassar os serviços para a iniciativa privada. O projeto prevê que esses contratos de programa terão de ser alterados ao longo do tempo para o novo modelo de prestação, e que serão necessárias licitações para concessão de serviços ou para privatização das companhias estaduais – o controle deverá passar para a iniciativa privada.

Ao falar sobre a nova versão, Zuliani afirmou à Agência Câmara: “Acrescentamos prazo de 12 meses para que as empresas estatais possam pegar os bons contratos vigentes e renovarem a antecipação deles, dentro desses 12 meses, por até 30 anos. Isso para poder valorizar as empresas estatais, elas terem ativo melhor e, com isso, incentivar governadores, com as empresas tendo valor melhor, a privatizá-las e vendê-las na bolsa de valores.”

Desafios não serão resolvidos só pelo setor privado ou só por estatais

A tendência, porém, é que algumas empresas estatais permaneçam no mercado. “Os desafios são tão grandes que não serão resolvidos só pelo setor privado ou só pelo setor público. Precisamos da união de forças, e em muitos locais veremos PPPs [parcerias público-privadas]”, disse à Gazeta do Povo o economista Gesner Oliveira, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e especialista em saneamento.

Em audiências públicas na Câmara dos Deputados sobre o PL, outras vozes defenderam esse ponto de vista. “No caso de água e esgoto, resíduos sólidos e drenagem [os quatro vetores do saneamento básico], considerando as grandes desigualdades territoriais e sociais do Brasil, a ação do Estado deve ir além do aspecto regulatório”, afirmou em 17 de setembro Marcos Thadeu Abicalil, especialista em Água e Saneamento do New Bank of Development, o banco de desenvolvimento dos Brics (parceria entre os países Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

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Abicalil destacou que não há espaço para oposição entre público e privado. “Ambos deverão contribuir de alguma forma. O dilema entre público e privado é falso. O dilema de verdade é garantir a capacidade de financiamento e estruturar benefícios sociais que garantam a equidade”, disse. Para ele, não se pode desconsiderar que, nos últimos 30 anos, cerca de 100 milhões de pessoas foram incluídas no sistema de coleta de esgoto, e 120 milhões na rede de água. “Sim, esse modelo enfrenta restrições. Mas qual a reforma do modelo? Voltar atrás ou aprimorar? Não há saída sem composição do setor público e privado para enfrentar os desafios”, ressaltou.

O presidente nacional da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), Roberval Tavares de Souza, vai pela mesma linha. “O governo federal acha que tem que entrar o privado. O que a gente acredita muito é na união, não na ruptura, como o governo quer. Há empresas públicas eficientes e privadas ineficientes. O serviço deu certo onde houve união”, disse em entrevista à Gazeta do Povo. Ele destacou ainda que os melhores índices de saneamento estão em São Paulo e no Paraná, onde atuam empresas de economia mista com controle estatal.

Impacto do projeto sobre as tarifas gera críticas

A oposição, que está criticando o projeto e já manobrou na Câmara para tentar impedir a votação do PL nº 3261/19, diz que as mudanças atendem ao setor privado e que elas farão com que a tarifa de água e esgoto aumente.

O deputado Bohn Gass (PT-RS) saiu em defesa das empresas estatais e das obras realizadas desde a promulgação da Lei do Saneamento Básico, em 2007. “As ligações de água subiram 48%, as de esgoto, 70%. Falta muito o que fazer, mas o que está se interrompendo agora é um processo de crescimento vertiginoso das ligações de água, de ligações e tratamento de esgoto”, disse à Agência Câmara.

Por outro lado, o especialista Gesner Oliveira, da FGV, diz que é preciso aumentar a tarifa de qualquer jeito. “Todo mundo está preocupado com a modicidade da tarifa para os atuais brasileiros e se esquecendo dos futuros brasileiros”, criticou ele em audiência pública na Câmara dos Deputados em 17 de setembro.

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Oliveira, que entre 2007 e 2010 presidiu a Sabesp, empresa de economia mista responsável pelo fornecimento de água e esgoto em São Paulo, destacou dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) mais recente, que mostram que as famílias gastam três vezes mais com telefonia celular, fixa e internet do que com os serviços de água e esgoto. “Obviamente a telefonia tem seu papel social. Mas acho que 48 horas sem celular dá para aguentar, agora 48 horas sem água fica bem difícil”, pontuou.

Negociação por mudanças no projeto continua

Diferentes grupos políticos e econômicos continuam atuando para tentar modificar o teor do novo marco legal do saneamento. A Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), que reúne cerca de 10 mil profissionais da área, está tentando convencer os deputados federais a não aprovarem o texto. Com o mote “PL 3261 tem que melhorar para universalizar”, a entidade argumenta que haverá insegurança jurídica a respeito da titularidade do serviço público de abastecimento de água e esgoto.

“Por mais que tenha alguns pontos que promovam a melhoria do setor, a espinha dorsal do projeto prejudica o setor de saneamento”, afirma o presidente nacional da Abes, Roberval Tavares de Souza. “Hoje está claro que os municípios são titulares. O texto modifica um pouco isso. A gente acredita que precisa manter essa definição atual, com o compartilhamento nas regiões metropolitanas”, defendeu.

Além disso, a Abes contesta a migração dos contratos de programa para um modelo de concessão. “É um instrumento constitucional e gera insegurança quando [os contratos de programa] são vedados. Além disso, são esses contratos que poderão fazer saneamento nos municípios pequenos. Apesar do setor privado dizer que vai atuar nesses locais, na vida real não acontece. Não aconteceu no Amazonas nem no Tocantins, onde o setor privado já entrou”, afirmou Souza.

O economista Gesner Oliveira, professor da FGV, contrapõe dizendo que o substitutivo é um avanço. “Não há uma mera eliminação dos contratos de programa. Mas acho que ao mesmo tempo induz uma mudança contratual importante no setor. Permite uma união de forças. Acho que não é um texto que elimine as empresas públicas. Apenas dá espaço maior para empresas privadas”, concluiu.

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