Se há algo em comum entre União e estados durante a pandemia da Covid-19 no Brasil é a frágil situação fiscal, com perda de arrecadação por causa da queda da atividade econômica em todo o país. O governo federal tomou uma série de medidas para ajudar os estados a mitigar os efeitos da crise causada pelo coronavírus, mas a divisão dos recursos pode ser insuficiente para tirar todos os entes do vermelho.
Estimativa feita pela Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, mostra que esse socorro pode chegar a R$ 107,1 bilhões, a depender de todos os tipos de ajuda se concretizarem. Esse montante cobriria as perdas de receitas sofridas pelos estados, mas a forma como o dinheiro está sendo dividido acaba fazendo com que alguns entes recebam valores superiores às perdas e outros fiquem no vermelho, sem cobrir todas as perdas.
A análise foi feita em nota técnica assinada pelo diretor da IFI e consultor legislativo Josué Pellegrini. Ele calcula que o conjunto de medidas adotadas pelo governo federal nos últimos meses – em grande parte, com a liberação de créditos extraordinários e edição de medidas provisórias (MP) – pode chegar a um total de R$ 107,1 bilhões, mas ressalta que ainda é difícil fazer qualquer previsão sobre intensidade e duração da perda de arrecadação. “Alguns tipos de ajuda podem não se concretizar inteiramente, enquanto outros não considerados podem ainda ser adotados”, pondera.
Em relação à distribuição nos estados – as projeções da IFI mostram que a maioria receberá mais recursos do que efetivamente perderá, enquanto alguns estados não terão compensadas as perdas de arrecadação –, a análise é de que era um “resultado previsível”. E atribui isso a duas razões: o fato de que as medidas foram sendo tomadas sem avaliar seus efeitos conjuntos e as dificuldades de se projetar os impactos da crise sobre a arrecadação de cada ente.
As cinco medidas de ajuda da União
A União tomou, ao menos, cinco medidas para ajudar os estados durante a pandemia, todas em momentos distintos. A primeira é um grupo de providências relacionadas ao enfrentamento direto do coronavírus. Para essas medidas provisórias, com créditos extraordinários, foi criada uma ação no orçamento federal e destinados R$ 10,9 bilhões em créditos. Mas, até o dia 18 de junho, cerca de 38,5% do montante já havia sido de fato executado. “Mas pode ser também que novos créditos extraordinários sejam apresentados por meio de medidas provisórias. Vale dizer, ao término do ano, os recursos podem tanto ficar abaixo como acima dos R$ 10,9 bilhões indicados”, ressalta a nota técnica.
Outra medida, relacionada às MPs 938 e 939, trata das complementações das transferências ao Fundo de Participação dos Estados (FPE). Ela estabelece que o valor nominal transferido entre março e julho de 2020 não deve ser inferior aos repasses de 2019. Pellegrini faz a ressalva que essas transferências correspondem a 21,5% da arrecadação do IPI e Imposto de Renda. Com isso, devem ser destinados até R$ 7,8 bilhões aos estados. Na avaliação da IFI, esse limite não deve ser alcançado sem uma prorrogação do prazo – com a transferência já feita de três parcelas mais o projetado para a última, chega-se a R$ 4,4 bilhões.
A terceira medida é a lei de socorro a estados e municípios em meio à pandemia do novo coronavírus (LC 173/2020), que pode destinar até R$ 37 bilhões aos entes – R$ 30 bilhões para uso live e R$ 7 bilhões para assistência social. “Diferentemente do observado no caso dos créditos que não especificam a quais estados serão dirigidos, a referida lei define claramente como se dará a distribuição entre os entes”, expõe.
A quarta medida analisada envolve o Pasep – contribuição paga pelos entes por meio de uma alíquota fixada em 1% sobre receitas e transferências. Portaria do Ministério da Economia postergou esse pagamento. “O valor da suspensão foi estimado em R$ 2,3 bilhões e dificilmente será devolvido ainda em 2020, do mesmo modo que os outros tributos federais diferidos”, aponta.
Por fim, ainda no projeto de socorro, o pagamento das dívidas dos estados junto à União foi suspenso. “Diferentemente das outras medidas que elevam a despesa primária (não financeira) da União, essa suspensão reduz a receita financeira. O governo federal estimou que a suspensão chegará a R$ 32,6 bilhões no referido período, considerando-se apenas os estados. Esse valor será incorporado ao saldo devedor e pago a partir de 2022”, observa.
Divisão entre os estados não cobre todas as perdas
Apesar de o socorro da União aos estados ser polpudo, a divisão acaba fazendo com que nem todos consigam superar as perdas na arrecadação.
“Em algumas medidas, a própria norma informa o critério de distribuição. Em outras, é preciso adotar algumas hipóteses para se chegar à distribuição. Como os repasses já estão em andamento, por vezes as hipóteses se referem apenas à parcela ainda não repassada”, expõe a nota técnica.
O auxílio previsto na LC 173/2020 já estabelece os percentuais de divisão no anexo. A complementação do FPE é mais previsível e os valores relacionados à suspensão do pagamento da dívida foram informados pelo próprio governo. Para a suspensão do Pasep, foi feito um cálculo usando o percentual de participação de cada ente na receita com o FPE e impostos estaduais. Os recursos para enfrentamento direto ao coronavírus, por sua vez, seguem um padrão que usa a combinação entre número de casos confirmados da doença e população.
“A perda de receitas dos estados se deve ao mesmo fator que também tem afetado a arrecadação da União. O necessário isolamento social destinado a conter a propagação do vírus para não sobrecarregar o sistema de saúde provoca forte retração da atividade econômica”, aponta Pellegrini.
A IFI, então, analisou dados de arrecadação dos estados obtidos com o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Embora haja muita incerteza sobre o desempenho das receitas estaduais de junho em diante, o montante de quase R$ 108 bilhões que a União disponibilizou para ajudar os estados só seria insuficiente em seis situações extremas das projeções feitas pelo economista.
O problema é que, embora haja recursos, as medidas “foram adotadas em diferentes momentos da crise, em circunstâncias distintas e perseguindo objetivos diversos. Desse modo, aparentemente, não se levou em conta o efeito conjunto das medidas para cada estado. A isso se somam as diferentes intensidades do impacto da crise sobre as receitas de cada estado”, aponta. Pellegrini faz o alerta: parte dos estados vai receber mais do que perderá e outros não terão compensação suficiente.
Ele cita alguns exemplos. Pelos cálculos da IFI, considerando o total de ajuda e as perdas projetadas, Paraná e Santa Catarina estão mais desprotegidos que os outros entes, pois o socorro da União já se torna insuficiente a partir do mês de agosto. O Mato Grosso do Sul também fica com as contas no vermelho nessa projeção, mas a partir de novembro.
Em um cenário mais conservador – desconsiderando a suspensão do pagamento da dívida junto aos bancos federais e organismos internacionais –, a situação dos estados piora. “Feita desse modo, constata-se evidentemente um número maior de estados insuficientemente contemplados com ajuda em determinado mês. Junto com Paraná e Santa Catarina, surgem Espirito Santo, Bahia e Distrito Federal a partir de setembro; Ceará em companhia do Mato Grosso do Sul, a partir de outubro; Goiás e Pernambuco, a partir de novembro; e São Paulo e Mato Grosso, em dezembro”, apontam as projeções.
Pellegrini lembra que a maioria dos estados brasileiros já estava com a situação fiscal fragilizada antes da pandemia, que acaba acentuando o problema e deve torná-lo ainda mais complexo, exigindo a retomada da sustentabilidade fiscal desses entes. “A ajuda da União provavelmente terá que ser feita por meio de planos ajustados em função da gravidade da situação fiscal de cada grupo de estados. Além de novos empréstimos, a dívida terá que ser renegociada nos casos mais graves”, observa.
O problema é que os planos adotados até o momento não têm um desenho adequado e vão exigir que novas ajudas sejam parte de um conjunto mais amplo de mudanças, com foco na sustentabilidade fiscal dos estados. E aí entram as reformas, que precisam ser implementadas, também, no âmbito estadual, como a previdenciária e administrativa.
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