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A crise causada pela pandemia do novo coronavírus vai exigir que o Brasil promova um ajuste fiscal entre R$ 350 bilhões a R$ 400 bilhões nos próximos anos. Esse ajuste deve levar todo este mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e mais os quatro anos do próximo governo para ser feito. Essa é a avaliação do secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, que concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Povo nesta quarta-feira (17) por videoconferência.
Parte desse ajuste, explicou o secretário, virá da própria recuperação da economia, com o governo recuperando parte da arrecadação que perdeu. Já a outra parte do ajuste terá necessariamente de ser feita atacando as despesas obrigatórias. Para isso, será necessário prosseguir com a agenda de reformas estruturantes, em especial a reforma administrativa.
Sobre o prazo para fazer esse ajuste, o secretário afirmou que o Brasil ganhou uma janela de dois a quatro anos de juros real mais baixo do que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), segundo as projeções de mercado. Mas ressaltou que não há uma data limite para se aprovar todas as reformas, e que nem o governo Bolsonaro vai conseguir aprovar tudo em dois anos e meio.
“Não é um ajuste que precisa ser feito em um ou dois anos, é num ciclo de quatro, cinco e seis anos. Por isso que eu falo que o ajuste fiscal pega esse governo e o próximo”, disse. Ele afirmou, ainda, que os investidores já trabalham com esse cenário gradual de aprovação de reformas.
Para o secretário, o que não pode acontecer nos próximos meses é um retrocesso na agenda econômica, como mexer no teto de gastos (mecanismo que limita o crescimento das despesas à inflação) e na Constituição para gastar sem limite. “Seria um risco muito grande a gente discutir nesse momento mudança no teto de gastos, porque você estaria mexendo na única âncora fiscal que nós temos, que nos permitiu uma taxa Selic real abaixo do crescimento do PIB para os próximos quatro anos.”
Mansueto fica no cargo de secretário do Tesouro até o fim de julho. Ele pediu demissão neste mês ao ministro Paulo Guedes e deve seguir carreira na iniciativa privada, após o período de quarentena obrigatório. Seu sucessor será o economista Bruno Funchal, atual diretor de programas do Ministério da Economia e ex-secretário de Fazenda do Espírito Santo.
Confira a entrevista completa com o secretário Mansueto Almeida
Substituto no Tesouro
O ministro Paulo Guedes anunciou a escolha do Bruno Funchal para ser o novo secretário do Tesouro. O que o senhor achou dessa escolha?
Quando o Bruno [Funchal] foi convidado para vir para o Ministério da Economia [como diretor de Programas], ali no final de 2018, eu e o secretário [especial de Fazenda] Waldery Rodrigues levantamos essa possibilidade. Eu falei: 'Bruno, olha só, eu vou ficar aqui um período, para fazer uma transição, talvez seja um ano ou no máximo um pouquinho mais de um ano, que eu não vou aguentar ficar mais quatro anos de governo, e eventualmente você pode ser o secretário do Tesouro. Então venha aqui pro ministério da Economia já sabendo que mais à frente você será indicado secretário do Tesouro’. Então eu achei [a indicação] um nome muito bom. O Bruno foi secretário de Fazenda do Espírito Santo. Ele tem uma boa interlocução com os secretários de fazenda atuais e participa do Comsefaz [Conselho de secretários estaduais de Fazenda]. Ele já tem acompanhando toda essa pauta fiscal.
O trabalho do Bruno Funchal de ajuste das contas públicas do Espírito Santo contribuiu para vocês chamarem ele para o governo?
Foi muito mais pela formação técnica dele. Mas, claro que o trabalho dele como secretário de fazenda do Espírito Santo foi muito importante. Quando terminou o governo do Paulo Hartung, o Bruno foi convidado para ser secretário de Fazenda de três ou quatro estados e ele não aceitou os convites. Então, a gente o convidou, porque a agenda fiscal, incluindo dos estados, seria muito importante, e ele tem experiência em finanças públicas estaduais.
Qual vai ser o maior desafio de Funchal à frente do Tesouro?
O desafio do Bruno vai ser muito parecido com o meu e com o secretário que vai suceder ao Bruno. O Brasil tem que fazer um ajuste fiscal na casa de R$ 350 a R$ 400 bilhões. E é um ajuste fiscal que vai levar todo esse governo e vai levar todo o próximo governo. O próximo governo de 2023 a 2026 vai ser também de ajuste fiscal. É um desafio que, para ele ter sucesso, vai depender muito da política do governo para fazer o Congresso aprovar as reformas.
Nesse governo, para cumprir o teto dos gastos, não precisa de nenhuma reforma radical. É só seguir três coisas: não dar aumento salarial, ou, se der, não ser linear; não criar despesa obrigatória nova; não repor integralmente o número de funcionários que vai se aposentar nos próximos dois, três anos. O governo com essas medidas consegue cumprir o teto de gastos até 2022. Para cumprir o teto além de 2022, vai ser preciso fazer reformas a mais para controlar despesa obrigatória. Mas para esse governo basta controlar contratação, salário e despesa obrigatória que cumpre o teto de gastos.
Ajuste fiscal
Essas três medidas que o senhor citou são apenas para cumprir o teto? Ou já seriam suficientes para o ajuste fiscal de R$ 350 a R$ 400 bilhões?
Um ajuste fiscal dessa magnitude é de 4 a 5 pontos do PIB. Pelo lado da despesa você vai ter que fazer muito mais coisa. Mas tem uma coisa: parte desse ajuste vai decorrer com a recuperação da economia, com a arrecadação. Com a recuperação da economia, a gente espera que o governo recupere parte dessa arrecadação que o governo perdeu em relação à média de 2011 e 2013. E o que não recuperar, o governo vai ter que partir para mudanças no que a gente chama de gasto tributário, aqueles regimes especiais de tributação, e uma chance de fazer isso é por meio da reforma tributária. Uma parte relevante do gasto é despesa, mas vai ser importante a gente recuperar uma parte dessa arrecadação que a gente perdeu.
Esse ajuste de até R$ 400 bilhões já conta o estrago feito pela pandemia? E qual era o tamanho do ajuste antes?
Antes da pandemia a gente estava num cenário que possivelmente o governo teria superávit já no final deste mandato. E a gente conseguiria estabilizar a dívida pública bruta nesse governo e ter até uma queda. A gente achava que a dívida ia ficar em 76% do PIB. Então você tinha que fazer um ajuste fiscal para 76% do PIB. Mas agora essa dívida vai para 95% do PIB neste ano. Então, o ajuste fiscal aumentou e a gente possivelmente não vai ter superávit neste governo, mesmo cumprindo o teto de gastos. Não é um ajuste que precisa ser feito em um ou dois anos, é num ciclo de quatro, cinco e seis anos. Por isso que eu falo que o ajuste fiscal pega esse governo e o próximo.
A IFI estima o país verá sua dívida bruta chegar a 117,6% do PIB em 2030. O que fazer para conter o crescimento da dívida?
A trajetória da IFI está baseada em uma série de hipóteses como, por exemplo, que o teto de gastos não se cumpre a partir do próximo ano. O nosso cenário não é esse. Cumprindo o teto de gastos e mesmo com a queda de arrecadação, pelos dados de mercado, a taxa Selic vai ficar muito baixa [pelos próximos anos], e quase 60% da dívida é afetada pela Selic. A estimativa do [Boletim] Focus mostra que a gente vai ter quatro anos de juro real menor que a expansão do PIB. Isso já vai ajudar a controlar a expansão da dívida. Você tem espaço sim, de dois a quatro anos de juros real baixo para avançar em reformas, e aí você controla a dívida e a partir de 2026 a dívida começa a cair. E pelo nosso cenário a dívida não chega a 100% do PIB. Mas tem embutido aí uma hipótese: cumprir teto de gastos.
Chegou a circular a informação que o Tesouro estaria tendo dificuldade para financiar a dívida. Isso procede?
Foi um mal-entendido. Quando a crise começou, em março, o Tesouro entrou fazendo leilões de compra, porque o mercado ficou disfuncional, porque quem queria vender não encontrava comprador. Então a gente parou os leilões de março e ficamos muito mais comprando. Essa disfuncionalidade acabou em abril e agora em maio a gente teve o maior leilão dos últimos doze meses. Em junho, os leilões também estão indo bem. Eventualmente no segundo semestre a gente vai aumentar um pouco mais a captação, mas não tem dificuldade alguma não. A única coisa é o encurtamento da dívida [financiamento por títulos de curto prazo], mas não tem problema de financiamento não.
Voltando ao tema do ajuste fiscal, quais seriam as reformais mais essenciais dentro daquele pacote do governo? Seria a tributária?
A tributária é muito mais por causa de crescimento, porque a gente tem um sistema tributário tão complexo que acaba prejudicando o crescimento. A reforma tributária aumenta a eficiência. Outra reforma importante é a administrativa, não só para o governo federal, mas para estados e municípios. A gente ainda tem o hábito de dar aumento salarial para todo mundo de uma vez. E no serviço público, a pessoa chega ao topo da carreira pelo tempo de serviço. Será que isso é o mais correto? O plano de carreira deveria ter algum incentivo para mérito?
A última vez que a gente fez a reforma administrativa foi na década de 1990. Por exemplo, os estados ainda têm aumento automático por tempo de serviço, que a União não tem mais. Isso tem que mudar nos governos estaduais. Nos governos estaduais, quando tem contingenciamento, só o Executivo faz, os poderes independentes, não. E aí tem a despesa obrigatória. Nosso Orçamento tem muitas vinculações e proporção muito grande de despesa obrigatória. Parte disso está [abordada] nas PECs do pacto federativo e emergencial.
Agenda de reformas
O presidente Bolsonaro afirmou na segunda-feira que o envio da reforma administrativa vai ficar para 2021. Mas a equipe econômica vem ressaltando a necessidade de voltar com a agenda de reformas no 2º semestre. Essas declarações do presidente não passam um sinal ruim para os investidores?
Não tem uma data limite para fazer reformas. O importante é que a gente comece o debate o mais rápido possível. O importante da reforma administrativa é que ela esteja aprovada antes de começar novamente o ciclo de contratações e aumento salarial. Até o final de 2021 não terá aumento salarial e possivelmente nenhum grande concurso público.
Parte dessas reformas, muitas delas, não será aprovada neste governo. O que o investidor quer é não ver nenhum retrocesso, porque aí sim seria um caos. Eles não querem ver nenhum retrocesso da pauta econômica, como não cumprir teto de gasto e mudar a Constituição para gastar sem limite. Da agenda de reforma, o investidor já espera que ela será gradual, que muito não vai conseguir fazer em dois anos e meio.
Mas, é importante que se coloque em debate para se criar um consenso, que foi o que aconteceu com a reforma da Previdência. Por isso o importante é que, mesmo que não se aprovem todas as reformas, se faça um esforço para apresentar todas as reformas ainda neste governo.
O senhor comentou sobre não haver um retrocesso no teto de gastos, mas membros do próprio governo já defenderam a flexibilização do teto para aumento do investimento público. Qual deve ser a direção no pós-pandemia? Há chances de flexibilizar o teto?
Se você perguntar hoje para os investimentos o que é mais importante: manutenção do teto ou alguma reforma estrutural? A grande maioria vai falar que é manutenção do teto. É importantíssimo o sinal da manutenção do teto. Seria um risco muito grande a gente discutir nesse momento mudança no teto de gastos, porque você estaria mexendo na única âncora fiscal que nós temos, que nos permitiu uma taxa Selic real abaixo do crescimento do PIB para os próximos quatro anos. O próprio ministro Paulo Guedes tem total compromisso com a manutenção do teto.
O ministro Paulo Guedes afirmou nesta terça-feira que, sem as reformas, o Brasil pode viver uma depressão econômica. O senhor concorda?
Hoje, se não houver retrocesso, a gente já está num cenário que é juro real maior e menor que o crescimento do PIB. A questão toda é que esse cenário é baseado em cumprimento de teto de gastos e que, eventualmente, você vai avançando em algumas das propostas da pauta econômica, concessão, privatização. Se houver risco de retrocesso nessa agenda, aí esse cenário de juros muda radicalmente: a perspectiva de juros aumenta, o risco país sobe e a perspectiva de recuperação cai. Aí você tem um cenário que, ao invés de ser de recuperação, se transforma num cenário de depressão. Não é que você tem que aprovar as reformas em três, quatro meses, pode levar mais tempo. Mas o ponto que o ministro estava falando é para a gente evitar o risco de transformar a recuperação que vai acontecer num cenário de depressão.
Situação dos estados
Agora falando dos Estados. O Plano Mansueto não foi aprovado em virtude da pandemia e o projeto acabou sendo substituído por outro socorro. Por outro lado, os estados vão sair ainda mais endividados da crise. O governo deve voltar a desenhar um novo programa focado em recuperar os Estados, já que o Regime de Recuperação Fiscal tem mostrado alguns problemas e também aproveitando a experiência do Bruno Funchal na área?
Possivelmente sim. O Bruno já acompanhava tudo isso de perto. Possivelmente, o deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) será o relator nessa nova versão. A única coisa é que vai ser necessário modificar um pouco a data de ajuste do plano, porque no plano original, que era o PEF [o plano Mansueto], os Estados que têm nota C e que poderiam apresentar um plano [de recuperação, baseado em ajuste fiscal] ao Tesouro para pegar empréstimos com garantia da União teriam de três a quatro anos para sair de uma nota C para B. Esse prazo agora vai ter que ser alterado, porque todos os Estados vão sair mais endividados da crise. A queda do PIB foi muito forte para todo mundo, então não dá para eles fazerem um ajuste para recuperarem em dois anos, até 2022. O prazo agora vai ter que ser maior.
Mas as bases seriam as mesmas?
Exatamente, as bases [do novo plano Mansueto] seriam as mesmas. E nesse plano a gente estava ajustando o regime de recuperação fiscal, porque o regime fiscal na forma que ele funciona hoje o Estado que entra passa três anos sem pagar praticamente nada de serviço dívida e depois começa pagar gradualmente e quando ele sai tem um pulo. A gente estava mudando isso, para ele deixar de pagar a dívida somente por um ano e a partir daí ser uma escadinha que acelerava ou não a depender de ele tá cumprindo as despesas. Então eu acho que sim, esse plano que cria o PEF e muda o regime de recuperação fiscal deve sim voltar no segundo semestre.
O senhor disse em março que perdeu o sono quando o país cresceu só 1,1% em 2019. Como anda o sono agora, no meio dessa hecatombe?
A gente está numa crise que tem alguns fatores de incerteza. Nem aqui nem no resto do mundo a gente sabe se haverá uma segunda onda de contaminação. Se houver, é um risco para todos os países.
Segundo, a gente vai sair de um ambiente que a gente está tendo uma discussão muito grande sobre políticas para redução de desigualdade e pobreza. O Brasil gasta com o social muito perto do que gasta um país rico da Europa, mas o efeito distributivo é muito pequeno. Porque muito do que se gasta com social não tem efeito distributivo. Por exemplo, o abono salarial. O abono é um 14º salário pra quem ganha, mas não tem efeito distributivo. Se os R$ 17 bilhões que você gasta com o abono fossem utilizados integralmente no Bolsa Família, você poderia aumentar o Bolsa Família em mais de 50%, e o efeito distributivo seria maior. Então acho que a gente vai ter um debate positivo necessário sobre como melhorar o gasto social para de fato atingir as pessoas de baixa renda e o debate tributário vai entrar um pouco nisso.
A gente tem, além de uma carga alta de imposto indireto, tem vários subterfúgios e regras que permitem uma pessoa com uma renda muito maior pagar menos impostos. Então essas coisas todas vão entrar no debate. E o desafio de continuar a agenda de reformas num mundo mais protecionista. Tem grandes desafios aí.
O que eu falei lá em março é que a gente saiu da recessão de 2015 e 2016 com um crescimento muito baixo, o que não é normal numa economia como o Brasil. A gente vai ter que resolver esses problemas todos para aumentar o crescimento do PIB potencial. Este e o próximo governo e o próximo vai ter de avançar na agenda de reformas que possibilite a gente aumentar o crescimento do PIB potencial. O gasto público não faz isso.