A nova resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre propaganda eleitoral nas Eleições 2024 não afronta apenas o Marco Civil da Internet, ao responsabilizar diretamente as redes sociais caso elas não removam, por iniciativa própria, conteúdos “antidemocráticos”, “fatos notoriamente inverídicos” e “discurso de ódio” – termos abertos, mas sempre entendidos, na aplicação de multas, segundo a compreensão particular dos ministros da Corte.
O texto normativo, aprovado no fim de fevereiro, também contraria regra explícita da Lei das Eleições, que prevê a punição das plataformas, por disponibilização de conteúdo gerado por usuários, somente se elas descumprirem uma ordem judicial para retirar aquele material do ar.
A aprovação ocorreu mesmo após atores externos – principalmente partidos, associações do setor de tecnologia, especialistas em direito eleitoral – sugerirem à Corte que seguisse as regras das duas leis. O texto final da resolução foi além, contendo regras contrárias.
A resolução sobre a propaganda foi relatada no TSE pela ministra Cármen Lúcia, com colaboração do presidente da Corte, Alexandre de Moraes, que se tornou nos últimos anos a principal voz, dentro do Judiciário, do combate às “fake news” – frequentemente entendidas como postagens nas redes que questionam, muitas vezes de maneira vulgar, os ministros e tribunais superiores.
Para Moraes, as novas regras do TSE estariam entre as “normatizações mais modernas do mundo para combater as famosas milícias digitais” – que ele costuma associar, quase sempre, a eleitores, militantes e políticos da direita.
TSE usa jurisprudência da Corte para fixar regras, mesmo que elas contrariem leis
O esboço da resolução foi apresentado pelo TSE no início do ano, para que partidos, políticos, entidades civis apresentassem sugestões de melhorias. Em tese, as resoluções do TSE deveriam apenas detalhar melhor o que já prevê a legislação eleitoral, principalmente no que se refere à organização da votação, uma das principais funções da Justiça Eleitoral.
Mas há muitos anos, a Corte também consolida nas resoluções a jurisprudência construída em julgamentos na interpretação e aplicação das leis, em boa parte, relacionadas a temas sensíveis da política, como limites para campanhas e regulação do debate eleitoral – entendimentos que, não raro, ultrapassam o que diz a Lei Eleitoral aprovada no Congresso e sancionada pelo Executivo.
A responsabilização direta das redes sociais por disponibilização de conteúdos supostamente ilícitos, sem prévia decisão judicial que assim os caracterize, é um exemplo claro. Está no artigo 9º-E da resolução, com o seguinte texto: “os provedores de aplicação serão solidariamente responsáveis, civil e administrativamente, quando não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, durante o período eleitoral, nos seguintes casos de risco”, elencando em seguida, os conteúdos proibidos:
- I – de condutas, informações e atos antidemocráticos caracterizadores de violação aos artigos 296, parágrafo único; 359-L, 359- M, 359-N, 359-P e 359-R do Código Penal; (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
- II – de divulgação ou compartilhamento de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos; (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
- III – de grave ameaça, direta e imediata, de violência ou incitação à violência contra a integridade física de membros e servidores da Justiça eleitoral e Ministério Público eleitoral ou contra a infraestrutura física do Poder Judiciário para restringir ou impedir o exercício dos poderes constitucionais ou a abolição violenta do Estado Democrático de Direito;
- IV – de comportamento ou discurso de ódio, inclusive promoção de racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas contra uma pessoa ou grupo por preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, religião e quaisquer outras formas de discriminação;
- V - de divulgação ou compartilhamento de conteúdo fabricado ou manipulado, parcial ou integralmente, por tecnologias digitais, incluindo inteligência artificial, em desacordo com as formas de rotulagem trazidas na presente Resolução.
A regra contraria o Marco Civil da Internet, de 2014, que dispõe que "com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Como o próprio texto diz, é possível haver exceções, desde que previstas em lei – o que não é o caso de uma resolução do TSE. O próprio Marco Civil da Internet contém uma exceção, ao prever responsabilização subsidiária das redes sociais caso deixem no ar materiais que violam a privacidade das pessoas de forma não autorizada, como cenas de nudez não consentida. A obrigação de indisponibilizar esse tipo de material independe de ordem judicial e a falha em remover imagens assim sujeita a plataforma a indenizações por danos morais para as vítimas.
Artigo da Lei Eleitoral também protege big techs
A resolução do TSE para as Eleições 2024 também contraria uma regra aprovada em 2009 na Lei das Eleições, contida no artigo 57-F, segundo o qual “aplicam-se ao provedor de conteúdo e de serviços multimídia que hospeda a divulgação da propaganda eleitoral de candidato, de partido ou de coligação as penalidades previstas nesta Lei, se, no prazo determinado pela Justiça Eleitoral, contado a partir da notificação de decisão sobre a existência de propaganda irregular, não tomar providências para a cessação dessa divulgação”.
Mais uma vez, a regra legal, específica para as eleições, diz que as redes só podem ser punidas com multas se não retirarem o conteúdo julgado irregular após notificação da decisão judicial.
A obediência a essa regra dentro da resolução sobre a propaganda foi sugerida ao TSE por representantes de partidos e associações do setor de tecnologia. Uma das “contribuições” – como são chamadas as sugestões de terceiros – foi assim redigida:
“Após intimação de ordem judicial sobre ilicitude de conteúdo impulsionado mencionado no § 2º deste artigo, o provedor de aplicação de internet responsável pela circulação adotará as providências para a indisponibilização, nos termos dos artigos 57-F, da Lei n. 9.504/1997 e 38, §4º desta Resolução”.
Ao analisar a proposta, Cármen Lúcia decidiu que ela não seria acatada – o TSE publicou um documento listando todas as contribuições aceitas e rejeitadas pela ministra.
Nesse documento, a reportagem identificou ao menos outras 8 sugestões no mesmo sentido, de exigir prévia “ordem judicial”, “notificação da Justiça Eleitoral” ou “decisão judicial” sobre a ilicitude específica de determinado conteúdo, especialmente aqueles impulsionados (com distribuição maior mediante pagamento à plataforma), para remoção do material – e só a partir daí, em caso de descumprimento, haveria a responsabilização, com multa à plataforma.
Responsabilização direta das redes aumenta risco de autocensura
Como mostrou a Gazeta do Povo, a responsabilização direta das redes sociais por conteúdos considerados antidemocráticos, odiosos, violentos ou contra normas sanitárias, por exemplo, ainda não foi aprovada em lei pelo Congresso, e é um dos grandes motivos de oposição ao Projeto de Lei 2630/2020, mais conhecido como PL das Fake News ou PL da Censura.
Essa última denominação do projeto se dá em razão da probabilidade, já externada pelas empresas donas das plataformas, de que elas removam conteúdo de forma massiva, mesmo de textos, vídeos, imagens, áudios ou postagens lícitas e legítimas, caso entendam que esses materiais possam, eventualmente, vir a ser enquadrados pela Justiça dentro daquelas categorias proibidas, em face da subjetividade na definição desses termos.
Na prática, o risco é de aumento exponencial da autocensura, promovida pelas redes contra seus usuários. Caberia às próprias plataformas julgar preventivamente tais conteúdos – não mais ao Judiciário, em que as partes envolvidas, autores e supostos ofendidos, têm o direito mais amplo de se defenderem e argumentarem diante de um juiz, que decide sobre o teor.
Resolução também confronta proposta do Novo Código Eleitoral
A nova resolução do TSE também vai na contramão do que prevê o novo Código Eleitoral, um projeto de lei ainda em tramitação no Congresso, que consolida toda a legislação eleitoral num único diploma legal.
O texto aprovado na Câmara, em setembro de 2021, diz que um provedor de rede social que abrigue propaganda eleitoral com impulsionamento “será responsabilizado por danos decorrentes do conteúdo impulsionado se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente pela Justiça Eleitoral”.
A proposta atualmente tramita no Senado e o relator, Marcelo Castro (MDB-PI), manteve essa regra. Ele trabalha para que o projeto seja aprovado na Casa ainda neste ano. Como ele propôs alterações em relação ao texto da Câmara, caso aprovado conforme seu relatório, a proposta ainda voltaria para análise dos deputados para uma definição final da redação, que seria então submetida à Presidência da República, para sanção ou veto.
Apesar de contrariar a lei, a regra do TSE sobre a responsabilização direta das redes será aplicada nas eleições municipais deste ano. A possibilidade mais forte para derrubá-la seria sua declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se, no entanto, de uma possibilidade remota, porque quase nunca os ministros derrubam uma regra de seus colegas do TSE – três ministros, sempre, pertencem às duas Cortes, e outros dois dos sete integrantes do TSE são advogados indicados pelos próprios ministros do STF.
Novo Código Eleitoral limitaria poder regulamentar do TSE
Como também mostrou a Gazeta do Povo, o projeto do Novo Código Eleitoral prevê a limitação do poder regulamentar do TSE, que ficaria restrito a criar regras sobre os procedimentos para organizar a eleição.
A proposta ainda permitiria que, por meio de um decreto legislativo, o Congresso sustasse uma resolução que “exorbite os limites e as atribuições materiais previstos neste artigo”, isto é, atinentes à votação, alistamento de eleitores, transporte de urnas, etc.
Estudiosa do tema, a advogada Clarissa Maia, doutora em direito constitucional e professora da Universidade Estadual do Piauí (Uepi), entende que a atual Constituição já dá esse poder aos parlamentares, no artigo 49, inciso XI, que diz ser competência exclusiva do Congresso “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”. O texto do novo Código Eleitoral, segundo ela, só deixaria isso mais claro em relação às resoluções emanadas do TSE.
Em 2014, sob a liderança de Gilmar Mendes, o STF impediu que o Congresso sustasse uma resolução do TSE que alterava o número de deputados federais por estado. O ministro e a maioria da Corte entenderam que o Legislativo não poderia fazer isso, por suposta afronta ao princípio da separação dos poderes. Clarissa Maia discorda desse entendimento.
“Quando defendo o uso do decreto legislativo para sustar resoluções do TSE, muita gente acha que a gente está sendo contra a Justiça Eleitoral. Eu defendo o poder regulamentar da Justiça Eleitoral, mas se o TSE continuar a editar resoluções de forma ativista, criando regras que exorbitem da legislação, chegará a um ponto em que vai ficar insustentável e o Congresso acabará proibindo qualquer regulamentação”, diz.
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