O fogo que queima parte da vegetação da Amazônia, e cuja fumaça se espalha pelo país – e nas imagens de satélites captadas até mesmo pela Nasa –, catapultou o debate ambiental no Brasil a outro patamar. E ele vai além da argumentação sobre a soberania brasileira na região e o trabalho de organizações não governamentais (ONGs): expõe contingenciamento de verbas e respinga nas relações comerciais com outros países. Apesar da alta temperatura do debate, os números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o Brasil registrou, até esta sexta-feira, 76.720 pontos de queimadas no ano. Uma parcial bem distante dos picos históricos registrados em 2004 (380 mil focos), 2005 (362 mil) e 2007 (393 mil), durante os governos Lula.
A gestão do meio ambiente do novo governo é alvo de críticas de movimentos ligados à área ambiental. Por um lado, há um quê de excentricidade em determinadas ações, como a de transformar Angra dos Reis na Cancún brasileira. Mas, por outro, também já houve situações mais sérias, como a demissão de Ricardo Galvão da presidência do Inpe, por discordâncias sobre os dados de desmatamento.
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já contestaram a veracidade de dados produzidos pelo próprio governo sobre desmatamento, criticaram políticas públicas de fiscalização, questionaram a atuação de entidades do terceiro setor (ONGs) e contestaram as doações bilionárias feitas por Alemanha e Noruega ao Fundo Amazônia.
Como o governo contestou dados do próprio Inpe, esta semana o Ibama lançou edital para compra de um novo sistema de monitoramento que o governo pretende adotar, com o propósito de apurar novas informações sobre o desmatamento na região amazônica. O ministério quer fazer a "prospecção de empresas especializadas no fornecimento de serviços de monitoramento contínuo", com o uso de imagens de satélites "de alta resolução espacial para geração de alertas diários de indícios de desmatamento (revisita diária)".
A discussão chega agora a um ponto crítico, tanto pelo impacto material das queimadas, quanto pelas incertezas políticas do porvir, que já somam até mesmo pedido de impeachment contra o ministro e ação de inconstitucionalidade contra o governo. Além disso, fragiliza a relação do governo com o Congresso: o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse em seu perfil pessoal no Twitter que a Casa vai criar uma comissão externa para acompanhar o problema das queimadas que atingem a Amazônia. Além disso, o parlamentar também informou que vai realizar uma comissão geral nos próximos dias para avaliar a situação e propor soluções ao governo.
As queimadas
Os números de focos de queimadas estão crescendo desde o começo do ano no Brasil quando é analisado o saldo mensal. De 1º de janeiro até o dia 23 de agosto foram contabilizados 76.720 focos, de acordo com dados do Programa Queimadas. Porém, quando analisado em comparação com a série histórica o panorama muda. No ano passado, foram registrados 132 mil focos de incêndio. A tabela do Inpe que registra o histórico de queimadas no país tem dados desde junho de 1998. Os picos históricos de focos de incêndio aconteceram nos anos de 2004 (380 mil focos), 2005 (362 mil) e 2007 (393 mil).
Duas semanas atrás, as queimadas fizeram o Amazonas decretar emergência no sul do Estado e na Grande Manaus. Semana passada, o Acre declarou alerta ambiental. O problema se alastra ainda em Mato Grosso e no Pará. As chamas também se espalham pelo Cerrado no Tocantins. Mas a situação é mais emblemática na Amazônia.
Nos oito primeiros meses de 2019, foram registrados 39.033 focos apenas no bioma amazônico. Esse número é superior ao que havia sido registrado em 2016, quando o país também enfrentava uma estiagem severa como a deste ano. Mas pesquisadores alertam que a seca não é a única explicação para o que está acontecendo.
O Mato Grosso, por exemplo, é o estado com mais focos – eram 13.682 até a segunda-feira (19). Um dos pontos de incêndio estava no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, onde desde o dia 9 de agosto brigadistas do ICMBio tentavam conter as chamas na vegetação. O ministro Ricardo Salles passou pelo estado nesta quarta-feira (21) para acompanhar o trabalho de combate ao fogo.
Uma análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) sobre a temporada atual de fogo na região apontou que já é 60% superior à média dos últimos três anos e está sendo impulsionada pelo avanço do desmatamento. O grupo de pesquisadores, liderado por Divino Silvério, comparou os focos de incêndio registrados pelo Inpe com indicadores de alertas de desmatamento feitos pelo sistema de monitoramento por satélites SAD, do Imazon. Para eles, há forte correlação entre as duas atividades.
"Os dez municípios amazônicos que mais registraram focos de incêndios foram também os que tiveram maiores taxas de desmatamento", escreveram os autores em nota técnica. "Esta concentração de incêndios florestais em áreas recém-desmatadas e com estiagem branda representa um forte indicativo do caráter intencional dos incêndios: limpeza de áreas recém-desmatadas", apontam.
Para a diretora de Ciência do Ipam, Ane Alencar, não existe fogo natural na Amazônia. “O que há são pessoas que praticam queimadas, que podem piorar e virar incêndios na temporada de seca”, disse em informe divulgado à imprensa.
O presidente Bolsonaro, por exemplo, chegou a afirmar que há "indício fortíssimo de que ONGs estão por trás das queimadas". De acordo com o presidente, as ONGs "perderam dinheiro" e "estão desempregadas", por isso, teriam interesse em fazer uma campanha contra o governo.
Contingenciamento de verbas e programas em suspenso
O Ministério do Meio Ambiente, para se adequar ao contingenciamento de gastos do governo, teve bloqueados R$ 187 milhões, equivalente a 22,8% do total orçado para o ano. Um exemplo é o corte de verba para a Política Nacional sobre Mudança do Clima, que teve retida 95% da verba prevista para o ano – dos R$ 11,8 milhões orçados, sobraram apenas R$ 500 mil.
O Ibama teve um corte de 24% no orçamento. E aí muita coisa foi afetada, inclusive o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo). A verba para construção de uma sede nacional do projeto foi cortada ao meio. Ações de prevenção e controle de incêndios florestais também sofreram com o congelamento de recursos – na casa de 40%, o equivalente a R$ 17,5 milhões.
Em tempos de ajustes nas contas públicas, o ministro Ricardo Salles classificou como insignificante o montante doado por Alemanha e Noruega ao Fundo Amazônia, que soma R$ 3,4 bilhões. As declarações sobre falta de governança e mudanças que serão impostas ao fundo motivaram a paralisação dos repasses dos dois países ao Brasil. Mas os projetos que já estavam em andamento continuam a pleno vapor. Um dos projetos tem um contrato de R$ 14,717 milhões, é válido até agosto de 2020 e financia ações federais de apoio ao combate aos incêndios.
Até dezembro do ano passado, R$ 11,721 milhões já haviam sido gastos pelo Ibama em operações de combate a incêndios na região, o equivalente a 80% do total obtido. Há no caixa, portanto, R$ 3 milhões para bancar ações do órgão. O plano desenhado com dinheiro dos europeus prevê que os combates em 2019 utilizem 12 caminhonetes adaptadas e dois caminhões adaptados tipo F-4000, já licitados e em fase de fabricação.
Repercussão econômica
Parte do discurso bolsonarista sobre a Amazônia é calcado na soberania do Brasil na região. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, declarou na quinta-feira (21) que a Europa utiliza o discurso ambiental do desmatamento no Brasil para proteger sua própria produção. Segundo ele, "o Brasil desmata, mas não no nível e no índice que é dito" e os europeus têm dois motivos principais para atacar o país: confrontar os princípios capitalistas e impor barreiras ao crescimento brasileiro.
"O Brasil é um país que cuida muito bem do seu meio ambiente, não precisamos de lição de ninguém", disse, completando: "Não podemos ser ingênuos. Europeus usam questão do meio ambiente por duas razões: a primeira para confrontar os princípios capitalistas. Desde que caiu o muro de Berlim, uma das vertentes para a qual a esquerda europeia migrou foi para a questão do meio ambiente. E, segundo, impor barreiras ao crescimento e ao comércio com o Brasil, porque eles têm que proteger os produtores deles", disse.
A questão é que a troca de farpas públicas com os europeus pode ter um rescaldo econômico muito palpável. O acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, que levou 20 anos para ser fechado, prevê a adoção de cláusulas ambientais pelos países signatários. E as queimadas na Amazônia acenderam um alerta do outro lado do Atlântico.
O presidente da França, Emmanuel Macron, chamou a situação de "crise internacional". Ele afirmou que o tema deve ser discutido em reunião desta semana no G7 (grupo de países ricos, formado por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido).
"Nossa casa está queimando. Literalmente. A Floresta Amazônica – o pulmão do nosso planeta, que produz 20% do oxigênio do nosso planeta – está em chamas. É uma crise internacional. Membros do G7, vamos discutir essa emergência de primeira ordem daqui a dois dias", escreveu Macron em duas publicações seguidas, em francês e inglês, nas redes sociais.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, também foi ao Twitter dizer que está "profundamente preocupado" com os incêndios na Floresta Amazônica. “No meio da crise climática global, nós não podemos esperar mais prejuízos à maior fonte de oxigênio e biodiversidade. A Amazônia deve ser protegida”, escreveu.
Correção: este texto foi alterado em 23/08/2019 às 16h30 para modificar os dados apresentados na tabela do INPE sobre os focos de incêndio no Brasil: http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal/estatistica_paises