Ampliação de terra indígena em SC afeta economia de municípios| Foto: Lidiane Ribeiro/Ibama
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A retomada do julgamento do marco temporal indígena pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aumentou a angústia de cerca de 500 famílias de pequenos agricultores que vivem na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Caso os ministros entendam que a data de promulgação da Constituição não deve ser usada como marco temporal para demarcação, a ampliação de uma terra indígena na região tem mais chances de ser concluída, depois de décadas de imbróglio judicial, o que obrigaria essas famílias a deixar suas propriedades, resultando em grandes prejuízos para as economias dos municípios, que dependem da atividade rural.

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A Terra Indígena (TI) em questão é a Ibirama-La Klanô, uma reserva localizada nas proximidades dos municípios de Vitor Meireles, José Boiteux, Doutor Pedrinho e Itaiópolis. Atualmente ela possui 14 mil hectares, onde vivem 505 indígenas, segundo o Censo Indígena de 2022. Caso o STF entenda que a ampliação da área, autorizada em uma portaria do Ministério da Justiça em 2003, é constitucional, a terra indígena passará a ter 37 mil hectares – o equivalente a 73,2 hectares para cada pessoa que hoje habita a área.

Se isso ocorrer, os pequenos agricultores de Vitor Meireles, por exemplo, estimam que deixarão de produzir até 50% da movimentação econômica gerada pela agricultura. Levando em conta que pelo menos 60% da atividade econômica vem da agricultura, o futuro do município é incerto.

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Com a possibilidade de desapropriação, as famílias de pequenos agricultores podem ter que deixar para trás a história que alguns constroem há seis gerações. É o caso do agricultor Francisco Jeremias, de 63 anos, que vive em uma propriedade de 15 hectares em Vitor Meireles, com a esposa, quatro filhos, noras e seis netos. Como porta-voz das famílias possivelmente atingidas, Jeremias teme que uma “sentença de morte” seja assinada no julgamento do STF. “Se o STF for contra o marco temporal, está assinada a sentença de morte do agricultor familiar aqui na região. Para nós, se tirar a terra, vai tirar a vida”, disse o agricultor.

Impactos econômicos expõe incerteza sobre futuro dos municípios 

Vitor Meireles será a cidade mais afetada pela pretensa ampliação da Terra Indígena Ibirama-La Klanô. A reserva poderá abranger 48,8% do território do município (o equivalente a 18 mil hectares de Vitor Meireles). Sem poder contar com quase metade da sua área de produção, a pequena cidade de 5,3 mil habitantes deve sofrer os impactos econômicos, especialmente na agricultura.

Um levantamento feito pela Associação de Municípios do Alto Vale do Itajaí (Amavi) em 2018 mostrou que Vitor Meireles tinha 64,3% de sua atividade econômica concentrada na agricultura, pecuária e serviços relacionados, com movimentação de R$ 49,25 milhões. No mesmo ano, um relatório analítico formulado pela prefeitura do município mostrou que as 10 localidades potencialmente atingidas pela pretendida ampliação da terra indígena, tinham um movimento econômico de R$ 22,75 milhões.

Nessas dez localidades do meio rural de Vitor Meireles, as propriedades têm, em sua maioria, 15 hectares cada. As cerca de 400 famílias que habitam a área produzem leite, feijão, milho, fumo, soja, bovinos, suínos, peixes, além de plantio de eucalipto e de árvores frutíferas como laranja e tangerina.

Sem a movimentação econômica da agricultura, o futuro do município é incerto. “O município vai ter uma nova realidade [se a ampliação da TI for confirmada]. Aí é pouco possível prever como se dará isso. No comércio local, por exemplo? Como vai se comportar isso? Isso é uma coisa incerta, teremos que descobrir de outras realidades onde já aconteceu algo parecido”, avalia o vice-prefeito de Vitor Meireles, Ivanor Boing.

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Já para o agricultor Francisco Jeremias, sem a produção agrícola das 400 famílias que vivem na área rural de Vitor Meireles, o município pode “fechar as portas”.

Incerteza sobre direito de propriedade faz com que agricultores evitem investimentos 

O vice-prefeito de Vitor Meireles, Ivanor Boing, disse que há pelo menos 20 anos o município vem sofrendo os impactos da possível ampliação da terra indígena. Os 14 mil hectares onde os indígenas vivem hoje foram reservados a eles em 1927, no entanto, a ampliação foi declarada por meio de uma portaria publicada em 2003. Desde então, alguns agricultores chegaram a abandonar as propriedades. “Muitas propriedades ali foram abandonadas. Em algumas, as pessoas reflorestaram e foram embora. Eles ficaram com medo de acontecer algo do dia pra noite e não estar mais lá. E daí, como é que fica?”, disse o vice-prefeito.

“Nossos antepassados, avós e bisavós, sempre respeitaram os limites da terra indígena. Vivíamos em harmonia até que veio a portaria de ampliação da área”, lembra o agricultor Francisco Jeremias ao se referir à Portaria n° 1.128/2003, do Ministério da Justiça. “Na época [da publicação da portaria], só uma parte das famílias quis entrar na Justiça porque os advogados diziam que nossos títulos eram muito antigos e que não tinha como mexer nas nossas propriedades”, disse o agricultor.

De acordo com um dos advogados das famílias de agricultores envolvidas no caso, Salesiano Durigon, boa parte dos títulos de domínio e posse na região foram obtidos entre 1911 e 1922.

“Em 1926, o governo de Santa Catarina doou a área da terra indígena ao Serviço de Proteção aos Índios (SPI) com registro nº 21.105 no cartório de Luiz Isolani de Ibirama. Em 1952, um acordo entre governo do estado e o SPI definiu a extensão da área, oficializado em 1965, devidamente titulada em cartório. Em 1967, estabeleceu-se que as terras pertencem à União. Em 1987, a área de 14 mil hectares foi registrada como da União”, explicou o advogado.

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Diante dos anos de incerteza sobre o direito de propriedade, Jeremias disse que vários agricultores estão segurando investimentos nas propriedades. “Aqui na minha propriedade, nós queríamos ampliar, comprar um secador de milho. Mas com essa insegurança não dá. Estamos segurando os investimentos e 90% das famílias está na mesma situação”, disse o agricultor de Vitor Meireles.

Caso sejam desapropriados, agricultores afetados pela demarcação não sabem para onde vão 

Na hipótese de ampliação da demarcação da Terra Indígena Ibirama-La Klanô, os agricultores não sabem para onde vão. A legislação atual garante a eles apenas a indenização pelas benfeitorias existentes nas propriedades, mas não garante um novo pedaço de terra a quem é desapropriado. O porta-voz dos agricultores de Vitor Meireles destaca a situação dos idosos.

“Uma pessoa como eu, com mais de 60 anos, vai fazer o que numa cidade, por exemplo? Fica muito difícil de se manter. Nós estamos clamando por atenção, porque essa pode se tornar uma grande desgraça social na nossa região. Já pensou tirar terra do agricultor? E aí vão pra onde?”, questiona Francisco Jeremias.

Em Vitor Meireles não há áreas que possam servir para o reassentamento das famílias. “A proposta do governo é que essas pessoas entrem na fila da Reforma Agrária. O Incra não dá conta nem de assentar o que já tem. Imagina agora mais essas famílias todas”, enfatizou o vice-prefeito, Boing.

Em caso de demarcação de terra indígena, cabe à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) a regularização desses territórios, resolvendo as questões que envolvem os não-indígenas que porventura habitam a área. No caso de agricultores desapropriados, somente os que tem perfil para se tornarem beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária entram no cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Sendo assim, caso sejam ocupantes de cargo, emprego ou função pública remunerada ou tenham renda proveniente de atividade não agrícola superior a três salários mínimos mensais ou a um salário mínimo per capita, por exemplo, os agricultores não poderão ser selecionados pelo Incra.

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“O Incra promove a regularização das famílias em assentamentos, a partir de processo de desintrusão iniciado na Funai e concluído pelo instituto. Os desintrusados são o 3º público na ordem de preferência da Reforma Agrária”, afirmou, por meio de nota, a assessoria de comunicação do Incra. Sendo assim, quando novos projetos de assentamento são criados, os agricultores ficam atrás dos desapropriados e de quem porventura trabalhe nos imóveis desapropriados. Os trabalhadores rurais sem terra em situação de vulnerabilidade social são o quarto público na ordem de preferência.

STF trata de caso específico e da repercussão geral para demarcação de terra indígena

O julgamento, retomado mais uma vez no último dia 30 no STF, deve pôr fim ao impasse no caso catarinense e estabelecer a repercussão geral sobre as demais demarcações de terras indígenas no país. No STF, tramitam pelo menos 219 outros processos parecidos sobre marco temporal aguardando a tese para serem julgados.

O recurso extraordinário que vai determinar a repercussão geral partiu de uma ação movida pela Funai contra o atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) – antigamente denominado Fundação do Meio Ambiente (Fatma). Em 2009, indígenas invadiram uma parte da Reserva do Sassafrás, e o governo do estado entrou com uma ação de reintegração de posse da área.

Embora a repercussão geral determine uma jurisprudência para o julgamento de outros casos semelhantes relacionado à demarcação de terras indígenas, o caso de Santa Catarina pode ter solução diferente. Ou seja, os ministros podem definir, por exemplo, que para a repercussão geral o marco temporal não seja válido, mas para o caso da ampliação da TI Ibirama-La Klanô, os títulos de propriedade sejam válidos e seja respeitado o marco temporal.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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