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Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-advogado-geral da União André Mendonça disse à Gazeta do Povo considerar que o Legislativo, e não o Judiciário, é o local adequado para uma eventual volta da prisão em segunda instância. Caso tenha o nome aprovado pelo Senado para integrar a Corte, Mendonça terá a chance de reverter a decisão do plenário que, por 6 votos a 5, em 2019, acabou com a possibilidade de executar as penas após a condenação em segundo grau. Ele herdará a relatoria de ações ainda em curso que discutem o assunto; uma delas já tem um recurso.
Para Mendonça, contudo, "qualquer nova interpretação" deve vir do Congresso, onde já tramita uma proposta de emenda à Constituição sobre o assunto, mas que encontra-se praticamente parada na Câmara. E indicou que, na análise de casos individuais, deve prevalecer o entendimento firmado em 2019, que diz que a prisão só é possível após o trânsito em julgado de uma condenação, isto é, após a rejeição de todos os recursos possíveis, inclusive nos tribunais superiores.
"Sobre esse tema da prisão em segunda instância, de forma abstrata tenho me pronunciado sempre em favor da segurança jurídica. Ou seja, o que está manifestado pelo STF deve valer para a análise dos casos", disse Mendonça. "Qualquer nova interpretação, como defendem propostas legislativas em curso no Congresso Nacional, tenho defendido que o local adequado para o tratamento da matéria, se assim desejarem os parlamentares, é o próprio Poder Legislativo, não o Judiciário, que já se manifestou", afirmou, em nota enviada à reportagem.
Há meses, Mendonça conversa com senadores para viabilizar sua candidatura ao STF. Intensificou as conversas em julho, após sua indicação por Bolsonaro, mas tem sofrido resistência por parte de senadores que temem que ele reverta decisões da Corte que ajudaram a enterrar a Operação Lava Jato e causaram retrocessos no combate à corrupção. A indicação está num impasse porque o presidente da Comissão e Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), por preferir outros nomes, recusa-se a marcar a sabatina, requisito para a votação de sua indicação no plenário.
Mendonça atuou como AGU no julgamento que vetou prisão em segunda instância
Caso se torne o novo ministro do STF, Mendonça substituirá o ministro aposentado Marco Aurélio Mello e passará a ser o relator de mais de mil ações que estão paradas em seu gabinete. Entre elas, as três ações que levaram a Corte a acabar com a prisão em segunda instância. Ainda em novembro de 2019, três semanas após o julgamento, o Patriota, um dos autores, recorreu para reverter a decisão.
No recurso – chamado embargos de declaração, que visa a esclarecer omissões, obscuridades e contradições – o partido argumentou, por exemplo, que os ministros da ala vencedora se omitiram ante o fato de que, quando um condenado apela às instâncias superiores (Superior Tribunal de Justiça e STF), o recurso não tem efeito suspensivo sobre sua condenação, o que mantém válida a sentença e justificaria, portanto, a punição já aplicada por um tribunal da segunda instância.
Trata-se de um argumento que o próprio André Mendonça usou no mesmo julgamento de 2019, quando, na posição de advogado-geral da União, também defendeu a possibilidade da execução da pena após a condenação em segundo grau. Na tribuna do STF, ele também disse que a Justiça deve considerar não apenas direitos e garantias dos condenados, mas também a situação das vítimas.
“Quem defende o direito individual das vítimas? Quem defende o direito de ir e vir das vítimas, o direito à vida das vítimas, o direito de sair do trabalho e voltar com segurança no transporte público, saber que seu filho foi com segurança para escola? Quem defende as viúvas e órfãos?”, disse André Mendonça na ocasião.
Na época, votaram contra a prisão em segunda instância o relator, Marco Aurélio, e também Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Votaram a favor Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Luiz Fux.
Celso de Mello deixou a Corte no ano passado e seu substituto, Kassio Nunes Marques, apesar de ter defendido no passado a prisão em segunda instância, disse, durante sua sabatina no Senado, que a decisão deveria caber ao Congresso, como agora também diz Mendonça. Se o STF decidir julgar novamente a questão, bastaria apenas um voto favorável para mudar o placar.
Advogado do Patriota, Héracles Silva disse esperar a volta da segunda instância com a entrada de Mendonça. "Eu acredito sinceramente que vai reverter o placar sim. Ele como relator pode levar isso para o plenário", afirmou à reportagem. Questionado pela Gazeta do Povo, Mendonça afirmou que não pode antecipar votos.
Além de poder virar a jurisprudência, André Mendonça também teria influência na avaliação do melhor momento para isso. Como relator das ações, é ele também quem liberaria o recurso para julgamento; a data só dependeria de uma definição do presidente do STF. O atual, Luiz Fux, que é favorável à prisão em segunda instância, fica no cargo até setembro do ano que vem. Depois disso, assume Rosa Weber, que é contrária à execução da pena após a condenação em segundo grau.
André Mendonça evita se manifestar sobre ações que afetam classe política
De qualquer modo, parte considerável dos ministros considera que o momento político conturbado do país não recomenda uma nova decisão do STF sobre o tema no curto prazo.
Outro complicador é a própria possibilidade de Mendonça atuar, como ministro, de uma nova decisão dentro dessas ações, uma vez que participou do julgamento em 2019 como advogado-geral da União. Há juristas que consideram que ele deveria declarar-se impedido, com base em regra do Código de Processo Civil que afasta do processo um juiz que tenha atuado nele anteriormente como advogado. Uma das partes poderia, com base nisso, tentar barrar a participação de Mendonça.
A jurisprudência do STF, no entanto, permite sua atuação no caso. Em setembro do ano passado, o plenário reafirmou que, em ações de controle concentrado – nas quais analisa-se a constitucionalidade de uma lei em abstrato, como é o caso das ações sobre a prisão em segunda instância, e não a situação concreta de indivíduos – as regras de impedimento e suspeição não se aplicam.
Desde que foi indicado para o STF, em julho, Mendonça tem evitado se manifestar sobre esse e outros julgamentos que podem afetar diretamente a classe política. Nas diversas visitas que fez a senadores, Mendonça vem tentando afastar a fama de "lavajatista" colocada sobre ele por políticos que resistem à sua indicação e incentivam o presidente da CCJ, Davi Alcolumbre, a não marcar a sabatina. Trata-se de uma manobra para tentar convencer Bolsonaro a trocar a indicação, algo que o presidente já disse que não fará.
Além da prisão em segunda instância, Mendonça também deverá enfrentar no STF outros julgamentos com impacto direto no combate à corrupção. Há, por exemplo, ações para afrouxar a Lei da Ficha Limpa, contra a implementação do “juiz de garantias” (que cuidará só de investigações e não poderá julgar réus) e prováveis ações futuras contra retrocessos ainda em discussão no Congresso, como o enfraquecimento da Lei de Improbidade e a PEC que reduz a independência do Ministério Público.