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Caso das joias

Anulação da condenação de Lula é precedente para invalidar investigação sobre Bolsonaro

Jair Bolsonaro é investigado por gastos com cartão corporativo, cartão de vacina e agora joias presenteadas no inquérito das "milícias digitais" (Foto: Elaine Menke/PL)

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O mesmo motivo que levou os ministros do Supremo Tribunal Federal a anular as condenações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2021, poderia ser usado, em tese, para invalidar as investigações sobre as joias recebidas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Assim como o petista teve os processos por corrupção enterrados por alegada incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para investigá-lo, Bolsonaro também poderia apontar que não cabe a Alexandre de Moraes, do STF, esquadrinhar um suposto desvio de joias recebidas quando ele ocupava a Presidência.

O caso passou a ser investigado no conhecido inquérito das “milícias digitais”, aberto de ofício por Moraes em 2021 em substituição ao dos “atos antidemocráticos”, arquivado a pedido da Procuradoria-Geral da República. Inicialmente, o principal alvo da investigação era o jornalista Allan dos Santos, que, no entanto, nunca foi denunciado e cuja extradição, dos Estados Unidos para o Brasil, nunca avançou. A mesma investigação, contudo, já abarcou os mais diversos fatos e alvos: conversas de empresários antipetistas em grupo de WhatsApp; questionamentos do ex-secretário da Receita Marcos Cintra sobre o sistema eleitoral e críticas de executivos do Google ao projeto de lei das “fake news”, defendido por Moraes.

Só recentemente, após deixar o mandato, Bolsonaro tornou-se um alvo direto, a partir de uma devassa autorizada por Moraes nos dados telemáticos e bancários do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante da Presidência. Inicialmente, Cid era investigado no inquérito pelo fato de ter ajudado Bolsonaro a divulgar um inquérito da Polícia Federal sobre a invasão hacker ao Tribunal Superior Eleitoral em 2018. A Procuradoria-Geral da República (PGR), que representa o Ministério Público no STF, não viu crime e recusou-se a apresentar uma denúncia no caso.

Depois, com base nas comunicações de Cid, Moraes passou a investigá-lo por outro assunto, não diretamente relacionado às redes sociais (objeto inicial do inquérito das “milícias digitais”): transações financeiras que efetuava para pagar contas da família de Bolsonaro – até o momento, também não houve denúncia por parte da PGR. Com base em e-mails e conversas pelo celular, Cid passou a ser investigado por fraudes em cartões de vacinação de sua família, no de Bolsonaro e no da filha do ex-presidente, Laura – apesar de ter provas, a PGR também não fez denúncia.

O cerco se fechou de vez contra Bolsonaro na revelação, na semana passada, de que Cid, seu pai, o general Mauro Lourena, e outros auxiliares tentaram vender, nos EUA, esculturas, um relógio, abotoaduras, uma caneta, um rosário islâmico e um anel, presenteados pelos árabes a Bolsonaro. No entendimento da PF e de Moraes, os itens deveriam ter sido incorporados ao patrimônio público e, por isso, a tentativa de apropriá-los e de fazer dinheiro com eles configuraria peculato (desvio de bens públicos) e lavagem de dinheiro.

Investigações e competências

O primeiro problema, notado por observadores, é a falta de ligação do caso com as tais “milícias digitais”, descritas por Moraes e pela PF como uma “organização criminosa voltada à criação, publicação e difusão de mensagens atentatórias ao Estado Democrático de Direito” ou com “o objetivo de assegurar vantagens financeiras e/ou político partidárias aos envolvidos”. A amplitude do objeto viabilizou que se abarcassem assuntos tão diversos na investigação.

Outro problema, no caso das joias, é que desde março, outra equipe da Polícia Federal, em São Paulo, já investigava a tentativa de Bolsonaro ficar com presentes recebidos na Presidência. Na época, foi revelado que, em 2021, o ex-ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e alguns assessores, retornando de uma viagem aos Emirados Árabes, tentaram passar pela alfândega do aeroporto de Guarulhos com joias destinadas à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. A investigação criminal foi determinada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, e ficou a cargo da Delegacia Especializada de Combate a Crimes Fazendários da PF, na mesma cidade.

Por esse motivo, aliás, a PGR se posicionou contra a operação, na semana passada, contra Mauro Cid, seu pai, e contra o advogado Frederick Wassef. O órgão pediu a Moraes que o caso fosse enviado ao juiz da 6ª Vara Federal de Guarulhos, e pediu que o ministro autorizasse que os policiais que investigaram o caso para ele atuassem com os outros que já investigavam o caso em São Paulo. Nesta terça (15), a pedido do MPF local, a vara de Guarulhos enviou para o STF as investigações que lá tramitavam. Os papéis devem chegar nos próximos dias, mas não se sabe ao certo, ainda, se eles vão também para Moraes.

Na semana passada, o ministro rejeitou a recomendação de deixar o caso na primeira instância e, para justificar o domínio sobre a investigação, apresentou até um gráfico que mostraria como estaria tudo estaria ligado (veja abaixo). Assim, para Moraes, a mesma organização criminosa que produziria “ataques virtuais” a opositores, às instituições, urnas eletrônicas e ao processo eleitoral, também teria tentado dar um golpe de Estado, atacar as vacinas contra a Covid, e usar a estrutura estatal para obter vantagens, entre as quais o cartão corporativo, a inserção de dados falsos em cartões de vacinação e, por fim, o desvio de “bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras”.

Gráfico apresentado por Moraes sobre o inquérito das milícias digitais

Nos últimos anos, com o fim de reduzir o poder de fogo da Operação Lava Jato, o STF passou a refinar sua jurisprudência sobre como definir a competência de um juiz para analisar situações diferentes. Em 2015, isso ocorreu com um pedido da presidente do PT, Gleisi Hoffmann, para retirar do então juiz Sergio Moro uma investigação sobre repasses que ela e o ex-marido Paulo Bernardo teriam recebido de uma prestadora de serviços do Ministério do Planejamento.

Como o episódio não tinha nada a ver com a Petrobras, a Corte resolveu remeter o caso para a Justiça Federal de São Paulo, no caso de investigados que não tinham foro privilegiado. Além disso, o STF transferiu a investigação contra Gleisi, então senadora, do ministro Teori Zavascki, na época relator da Lava Jato no STF, para Dias Toffoli. Firmaram-se ali algumas teses que passaram a prevalecer em várias decisões posteriores que transferiram para outros juízes várias investigações inicialmente aportadas na 13ª Vara de Curitiba.

Uma delas determina que o critério inicial para a definição de competência é o local onde o crime foi cometido. Por isso, os processos que levaram à condenação de Lula foram transferidos de Curitiba para Brasília. E por isso também a investigação sobre as joias de Bolsonaro foram iniciadas, em março, pela PF em Guarulhos.

Outro critério óbvio é a existência, ou não, de foro por prerrogativa de função, nome técnico do foro privilegiado. No caso de Bolsonaro, não existe mais, muito menos para os demais investigados no caso das joias, que nunca tiveram.

“O STF não tem competência para apreciar a questão. O ex-presidente não tem prerrogativa de foro. E nenhum dos investigados tem. Ainda que algum deles tivesse, o STF vem decidindo pelo desmembramento do processo em relação a quem não tem prerrogativa de foro e remessa ao juízo competente, mantendo o foro privilegiado apenas para aqueles que o têm. Vários os precedentes nessa linha”, diz o desembargador aposentado e ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo Ivan Sartori.

Um critério secundário para aferir a competência, esclarecido pelo STF, é a prevenção. Em síntese, é a possibilidade de concentração, num só juiz, de vários processos com objeto semelhante, desde que ele seja competente para a causa. “Nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal, a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração”, disse Toffoli na época, acrescentando que um juiz só poderia supervisionar uma investigação sobre um fato novo descoberto se houvesse conexão com o fato inicial apurado.

“A conexão intersubjetiva ou instrumental decorrente do simples encontro fortuito de prova que nada tem a ver com o objeto da investigação principal não tem o condão de impor o unum et idem judex [uma e mesma jurisdição]. O simples encontro fortuito de prova de infração que não possui relação com o objeto da investigação em andamento não enseja o simultaneus processus”, registrou o ministro em seu voto, citando um precedente de 2014, de Luiz Fux.

Toffoli deu um exemplo, para reforçar seu argumento pela prevalência do critério territorial para fixação de competência. “O fato de um juiz de um foro em que encontrado um cadáver ser o primeiro a decretar uma medida cautelar na investigação não o torna prevento, nos termos do art. 83 do Código de Processo Penal, para a futura ação penal caso se apure que o corpo tenha sido apenas ocultado naquela localidade e que o homicídio, em verdade, tenha-se consumado em outra Comarca. Nessa hipótese, prevalece o forum delicti commissi (foro do lugar da infração), critério primário de determinação da competência, pois a prevenção não pode se sobrepor às regras de competência territorial”, afirmou. Ou seja, em uma analogia ao caso de Bolsonaro, o local do suposto crime seria São Paulo e não Brasília.

Em 2021, Edson Fachin se valeu do mesmo entendimento para anular as condenações de Lula, citando a decisão de 2015 em favor de Gleisi e várias outras posteriores em benefícios de políticos e empresários inicialmente processados em Curitiba. “As regras de competência, ao concretizarem o princípio do juiz natural, servem para garantir a imparcialidade da atuação jurisdicional: respostas análogas a casos análogos”, afirmou o ministro. As condenações de Lula caíram porque o que ele teria recebido das empreiteiras não seria fruto apenas dos contratos delas com a Petrobras (objeto da Lava Jato), mas com diversos outros órgãos e estatais.

Segundo Ivan Sartori, “não existe inquérito sem prazo de término e com alcance prospectivo”, referindo-se ao inquérito das milícias digitais. “O caso das joias já estava sob o juiz natural [em Guarulhos]. Portanto, o STF não poderia examinar o caso, com a devida vênia. Esse inquérito [das milícias digitais] tem alcance indefinido e tem sido utilizado de forma flexível”, critica.

Casos diferentes?

Por outro lado, há advogados que entendem que os casos de Lula e Bolsonaro são diferentes.

Na Lava Jato, discutia-se se a conexão probatória, ou seja, a ligação entre as provas coletadas ao longo das fases da operação, justificava a manutenção de todas as investigações com Sergio Moro. Inicialmente, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendiam que fazia sentido concentrar os casos em Curitiba, uma vez que a descoberta de uma prova em determinada fase levava a outra, e assim por diante. Mas o STF depois considerou que não, uma vez que, embora houvesse operadores comuns em casos de corrupção, os órgãos, empresas e negócios envolvidos eram distantes entre si.

No caso de Bolsonaro, boa parte das provas foram colhidas junto a Mauro Cid, e se relacionam a como ele auxiliava o ex-presidente em diversas atividades suspeitas. A conexão probatória, nesse caso, é mais simples de ser aferida, pela amplitude e complexidade menor dos atos e situações investigadas, afirmam alguns especialistas. Ainda assim, permanece a dúvida quanto à competência do STF para investigar pessoas sem foro privilegiado e casos sem relação direta com os “ataques” à Corte.

Outra diferença é que o caso de Bolsonaro vem sendo investigado no próprio STF e dificilmente os atuais ministros anulariam os atos de um colega, Alexandre de Moraes. No caso de Lula, a maioria invalidou decisões de Moro, um juiz de primeira instância que já não gozava de prestígio dentro da Corte.

Desde a deflagração da operação, na sexta (11), a defesa de Bolsonaro ainda não se manifestou sobre a condução de mais esse caso por Alexandre de Moraes. A reportagem entrou em contato com os advogados do ex-presidente para questioná-los sobre a possibilidade de questionar a competência do STF e de Moraes, inclusive para anular as provas colhidas e que vierem a ser incorporadas à investigação por autorização do ministro. Não houve resposta até o momento. O espaço segue aberto.

Lula e Dilma também tiveram problemas com presentes

Não é apenas a dúvida sobre a competência para investigar que aproxima os casos de Lula e Bolsonaro. O próprio objeto da atual investigação – o caráter público ou privado dos presentes recebidos durante o mandato – também trouxe problemas para o atual presidente.

Entre 2016 e 2019, ao fiscalizar os presentes recebidos pela Presidência de 2003 a 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) constatou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se apropriou de 434 objetos dados ao Brasil por chefes de Estado estrangeiros durante seus dois primeiros mandatos. A ex-presidente Dilma Rousseff, por sua vez, tomou para si 117 itens.

No início da fiscalização, em 2016, o órgão determinou que a Presidência, então ocupada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), identificasse com quem e onde estariam 568 presentes dados a  Lula e 144 recebidos por Dilma, de modo que fossem incorporados ao patrimônio público da União. Com base em dados consolidados pela Presidência, os números depois foram revistos.

No mesmo ano, 132 presentes dados a Lula foram encontrados pela Polícia Federal num cofre do Banco do Brasil no centro de São Paulo; 21 de maior valor foram depois confiscados pela Presidência. Em 2019, no final da auditoria, o TCU registrou que 360 presentes recebidos por Lula foram localizados no Galpão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e foram transportados de volta para Brasília. Outros 74 não foram localizados.

Já os presentes recebidos por Dilma foram encontrados num Galpão da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados na Região de Porto Alegre, em Eldorado do Sul (RS). No local, no entanto, não foram localizados 6 dos 117 presentes identificados – segundo representantes da ex-presidente, eles teriam ficado nas dependências da Presidência.

O relatório não detalhou o que eram esses presentes, mas alguns itens – esculturas, maquetes, espadas e uma coroa – foram incorporados à União após uma decisão judicial. Lula ainda tenta reaver esses bens. Ele acionou a Justiça Federal para anular o resultado da fiscalização do TCU e resgatar os 21 presentes confiscados pela Presidência.

Alegou que, durante seu governo, um órgão distinguia quais presentes deveriam ir para o acervo privado e quais eram públicos. No fim do mandato, os primeiros foram para cofres do Banco do Brasil e os demais deixados nos palácios do Planalto e da Alvorada.

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