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Em reunião extraordinária realizada na noite desta segunda-feira (26), a diretoria da Anvisa vetou, por unanimidade, o pedido de estados e municípios para a importação da vacina russa Sputnik V. Até o momento, 14 estados enviaram solicitações de importação do imunizante: Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Sergipe e Tocantins, além dos municípios de Maricá e Niterói, no Rio de Janeiro. Os pedidos representariam um total de 66 milhões de doses do imunizante.
Na decisão de ontem, o órgão regulador brasileiro relacionou uma série de razões para vetar a importação do imunizante russo para o Brasil. A Anvisa alega que um dos principais motivos para a negativa foi a falta de dados consistentes e confiáveis apresentados, até o momento, pelo instituto russo Gamaleya, fabricante da vacina Sputnik V.
Segundo o órgão, a decisão foi tomada com base em dados levantados e avaliados pelas equipes técnicas das gerência-gerais de Medicamentos e Produtos Biológicos (GGMED), de Inspeção e Fiscalização Sanitária (GGFIS) e de Monitoramento de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária (GGMON). Também participaram do levantamento de informações a Gerência-Geral de Portos, Aeroportos e Recintos Alfandegados (GGPAF) e a Assessoria de Assuntos Internacionais (Ainte).
Para o relator do processo, Alex Machado Campos, muitas questões sobre o imunizante ficaram sem resposta, o que justificou a decisão. "Para os pleitos ora em deliberação, o relatório técnico da avaliação da autoridade sanitária ainda não foi apresentado, os aspectos lacunosos não foram supridos, conforme as apresentações técnicas. Portanto, diante de todo o exposto, verifica-se que os pleitos em análise não atendem, neste momento, às disposições da Lei 14.124 e da Resolução da Diretoria Colegiada 476, de 2021, razão pela qual eu voto pela não autorização dos pedidos de importação e distribuição da vacina Sputnik V solicitados pelos estados que já relacionamos", afirmou o diretor-relator, que foi seguido pelos outros relatores da agência.
Confirma abaixo alguns dos principais pontos que influenciaram a decisão da Anvisa.
1 – Riscos à saúde
Um dos principais pontos levantados pela Anvisa foram os riscos à saúde trazidos pela vacina Sputnik V. A Gerência-Geral de Medicamentos e Produtos Biológicos (GGMED) do órgão identificou que as células onde os adenovírus são produzidos para o desenvolvimento do imunizante permitem sua replicação, o que poderia ocasionar sérias reações em seres humanos, provocando infecções graves e mortes, especialmente em pessoas com baixa imunidade e outros problemas respiratórios.
Segundo a Anvisa, esse modelo foge dos padrões de qualidade estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos de Medicamentos para Uso Humano (International Council for Harmonisation of Technical Requirements for Pharmaceuticals for Human Use – ICH), que é seguido pelas principais agências reguladoras do mundo.
Segundo o gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos (GGMED), Gustavo Mendes, essa presença de adenovírus replicante no imunizante representa uma não-conformidade grave. “Isso significa que o vírus que deve ser utilizado apenas para carrear material genético do coronavírus para as células humanas e assim promover a resposta imune, ele mesmo se replica, podendo causar doenças nas pessoas vacinadas, como adenoviroses”, disse. Ele alertou que, uma vez no organismo humano, o adenovírus replicante poderia causar viroses e se acumular em tecidos específicos do corpo, como nos rins. O problema, segundo ele, teria sido identificado em todos os lotes inspecionados.
O relator do processo afirmou que o desafio da Anvisa é, justamente, avaliar se os benefícios dos imunizantes superar os riscos. “A segurança é um aspecto inalienável diante da incerteza do risco. Chegamos até aqui de mãos dadas com a ciência e amparados por evidências”, afirmou.
2 - Falhas no desenvolvimento e produção
A gerência-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos (GGMED) identificou também falhas graves no desenvolvimento da Sputnik V em todas as etapas dos estudos clínicos, que compreendem as fases 1, 2 e 3. Segundo informações divulgadas pela Anvisa, foram identificados estudos de caracterização inadequados da vacina russa, inclusive na análise de impurezas e de vírus contaminantes durante o processo de fabricação do imunizante. Também foi verificada a ausência de validação e qualificação de métodos de controle de qualidade, além da falta de testes de toxidade reprodutiva, utilizados para verificar se o produto pode ser prejudicial às células reprodutivas humanas.
3 – Falta de transparência
Outro aspecto que chamou a atenção dos técnicos da Anvisa foi a falta de transparência do laboratório russo com relação ao imunizante. Segundo o órgão regulador brasileiro, houve ausência ou insuficiência de dados de controle de qualidade, segurança e eficácia da Sputnik V. Em sua análise, a gerência-geral de Monitoramento de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária (GGMON) destacou a falta de dados sobre os efeitos adversos de curto, médio e longo prazos decorrentes do uso da vacina.
O gerente de medicamentos argumentou ainda que documentos necessários para a liberação do imunizante não foram entregues, como relatórios técnicos sobre a segurança e eficácia da vacina russa. Segundo o órgão, sem esses registros, exigidos em resolução da diretoria colegiada, não é possível verificar se a autorização para uso concedida por autoridade internacional alcançou os requisitos mínimos de qualidade, segurança e eficácia, conforme estabelecido na lei brasileira.
Segundo a gerente geral de Monitoramento de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária, Suzie Marie Gomes, a "ausência de dados e as falhas detectadas nas etapas de desenvolvimento da vacina, resultados dos ensaios clínicos e sobre a qualidade do produto acabado não permite garantir que o produto é seguro para a população brasileira".
A diretora Cristiane Rose Jourdan Gomes reforçou que a análise feita pela equipe técnica parece não contemplar ainda o mínimo de dados suficientes que contraste com as inúmeras incertezas existentes. “Espero que, no menor prazo possível, a carência de informações da Sputnik V seja superada”, disse Cristiane.
4 – Inspeção barrada
Especialistas da Anvisa terminaram no sábado (24), uma visita de inspeção nas empresas Generium e UfaVita, que participam da produção da vacina Sputnik V. Os brasileiros estavam na Rússia desde sexta-feira (16), e o relatório com as informações coletadas ajudou na decisão. A área de Fiscalização detectou uma série de problemas relacionados ao imunizante. De acordo com a GGFIS, por falta de relatório técnico de aprovação do produto, não foi possível identificar os fabricantes do insumo farmacêutico biológico utilizado na produção da vacina russa. Também não foram identificadas condições de fabricação que demonstrassem que os produtos são consistentemente produzidos e controlados. A GGFIS informou ainda que, ainda em solo russo, uma equipe de inspeção da Anvisa teve o acesso negado às instalações do Gamaleya, instituto desenvolvedor da vacina.
5 – Questões políticas
Pouco depois da decisão da Anvisa, a fabricante da Sputnik V se manifestou pelo Twitter, afirmando que a não aprovação da importação ocorre por uma questão política e que não tem relação com acesso à informação ou ciência. “O Departamento de Saúde dos Estados Unidos, em seu relatório anual de 2020, declarou publicamente que o adido de saúde dos Estados Unidos “persuadiu o Brasil a rejeitar a vacina russa contra a Covid-19”, afirmou a empresa. “A Sputnik V compartilhou com a Anvisa todas as informações e documentações necessárias, muito mais do que o utilizado para homologar a Sputnik V em 61 países. Esperamos que a ciência, e não a pressão de outro país, seja usada para a tomada de decisão.”
Em sua fala, o diretor-presidente Antonio Barra Torres reforçou que a Anvisa já autorizou o uso em território nacional de cinco vacinas, duas delas em tempo recorde no mundo. “No escopo da nossa competência, jamais permitiremos, sem que existam as devidas provas necessárias, que milhões de brasileiros sejam expostos a produtos sem a devida comprovação de sua qualidade, segurança e eficácia ou, no mínimo, em face da grave situação que atravessamos, uma relação favorável risco-benefício”.