Altair Rodrigues dos Santos já contribuiu à Previdência Social por 37 anos, dois a mais que o mínimo necessário para se aposentar. Mas, aos 60 anos, continua trabalhando como motorista de uma transportadora em Curitiba – e contribuindo. Sonha com a aposentadoria porque pretende, em seguida, tratar de uma lesão por esforço repetitivo (LER) no braço direito, resultado dos movimentos constantes de troca de marcha, e de um problema na coluna. Toma injeções mensais de um corticoide para suportar a dor. No dia 5 de fevereiro de 2018, o advogado dele fez o agendamento pelo site do INSS para dar entrada no requerimento do benefício. Os documentos foram entregues em 4 de julho daquele ano, a data marcada. Mais de nove meses se passaram, e o INSS ainda não deu retorno sobre a análise do pedido.
A lei estabelece que o INSS tem 45 dias para analisar processos de aposentadoria, pensão por morte, benefício assistencial (BPC) e salário maternidade. Se a análise ultrapassa esse período, a Justiça entende que se caracteriza ameaça ao direito, a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de agosto de 2014.
Segundo o Boletim Estatístico da Previdência Social, em dezembro de 2018 havia 655 mil benefícios em análise no INSS. Desses, 276 mil, ou 42% do total, tramitavam havia mais de 45 dias por causa de pendências do INSS. Outros 61 mil (9% do total) estavam atrasados por pendências do segurado. As demais 318 mil análises estavam dentro do prazo legal de 45 dias.
O tempo médio de concessão de benefícios naquele mês, desde a data do requerimento, foi de 58 dias, oito a mais que em dezembro do ano anterior.
Com o envelhecimento da população, cresce o número de requerimentos de aposentadoria. E a discussão da reforma da Previdência também tende a elevar a procura pelos benefícios. Assim, casos como o do motorista curitibano, que já não são raros, podem ficar ainda mais frequentes. “Está bem difícil para ele trabalhar. Ele se queixa muito das dores ”, conta Luiza Santos, esposa de Altair. Ele estava trabalhando no momento em que a reportagem o procurou.
Joaquim Lourenço de Souza, 57 anos, completou 35 anos de contribuição ao INSS ainda em 2017. E ainda não começou a receber o benefício. Enquanto isso, continua trabalhando como zelador em Itaperuçu, região metropolitana de Curitiba. O agendamento para dar entrada no pedido de aposentadoria foi feito por seu advogado em 5 de dezembro de 2017, pelo site do instituto. Mas o INSS só deu entrada no requerimento em 8 de março deste ano. “Estamos esperando”, diz Souza. “Pobre brasileiro vive de esperança. Espero que saia ainda este mês.”
Segundo o advogado Leandro Murilo Pereira, presidente da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR), casos cuja espera passa de um ano são comuns em todo o país. “O problema é falta de servidor para analisar.”
Luiz Henrique Weigsding, advogado dos dois segurados citados neste texto, conta que os problemas se intensificaram em 2017, quando o INSS iniciou os testes do sistema digitalizado para o envio pela internet de documentos para solicitar benefícios. Ele diz ter outros clientes que enfrentam atrasos semelhantes, e que quando a entrega da documentação ocorria em agências físicas da autarquia o prazo de análise e de concessão era menor.
“Os beneficiários não podem ser prejudicados nisso. Tem pessoas que dependem dessa aposentadoria. Gente que às vezes está desempregada ou doente”, diz o advogado. Segundo ele, em algumas regiões o processo é mais rápido. Pedidos feitos em Santa Catarina ou no interior do Paraná, diz, são concluídos em até três meses – ainda assim, mais que os 45 dias definidos em lei.
TCU indicou risco de estrangulamento em 2014
Em entrevista à revista Veja em outubro do ano passado, o então presidente do INSS, Edison Garcia, informou que o instituto recebia 6 mil processos por dia, e que o órgão só conseguia dar encaminhamento adequado a 3 mil deles. Para ele, a situação pioraria em 2019.
O problema já era apontado em 2014, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) alertava para o risco de estrangulamento do sistema. Auditoria realizada pelo órgão entre maio de 2012 e junho de 2013 acendia o sinal de alerta para a falta de profissionais capacitados para analisar, por exemplo, os requerimentos de aposentadoria e pensões por morte.
Números apontavam à época que, dos 39.392 servidores do órgão, 5.868 responderam por 80% das concessões realizadas entre maio de 2012 e junho de 2013. O TCU sinalizava para a possibilidade de erro e fraude em casos de uma grande quantidade de serviço realizada por poucos funcionários. Outro dado preocupante apontado pela investigação mostrava que 46% dos servidores do órgão já estariam aptos para se aposentar até 2017. Em 2014, eram 26%.
Hoje, segundo Pereira, da OAB, o INSS tem 34.559 servidores ativos. Desses, 11.690, ou 34%, estão aptos a se aposentar desde janeiro deste ano. Na capital paranaense, são 483 funcionários, dos quais 137, ou 28%, já podem pedir aposentadoria desde janeiro.
Em 2015, o INSS foi autorizado pelo antigo Ministério do Planejamento a realizar um concurso para preencher 950 vagas – 800 vagas para técnico do seguro social e 150 para analista do seguro social. A seleção recebeu mais de 1 milhão de inscritos e foi realizada no ano seguinte. Mas a portaria que autorizava a contratação dos aprovados só foi publicada em Diário Oficial em maio de 2018.
“A [discussão da] reforma da Previdência aumenta a busca por benefícios no INSS”, diz Pereira, da OAB. “Isso ocupa demais o serviço, o funcionário que está no atendimento, mas a gente não pode deixar isso passar porque já havia sido levantado em 2014 pelo TCU de que haveria um colapso.”
O que acontece hoje é que, mesmo com a possibilidade de agendamento online e o INSS Digital para advogados, em que é possível ao profissional do direito entregar toda a documentação do cliente digitalizada, o número de funcionários é insuficiente. E muitas vezes, o servidor que poderia estar na análise do benefício está ocupado digitalizando documentos de requerentes ou no atendimento em agências, fornecendo documentos como extrato de Imposto de Renda, que o próprio contribuinte poderia acessar pela internet.
Para Pereira, o servidor é uma vítima do sistema. Ele diz que vê nos servidores boa vontade e até criatividade para tentar driblar as dificuldades enfrentadas por eles dentro do órgão. “Além da falta de servidor, existe falta de estrutura”, aponta. “Você abre ferramenta de entradas, [a possibilidade de fazer] pedidos de maneira digital, mas não há estrutura, internet suficiente para abrir aquele processo, encaminhar para o lugar correto, o equipamento é ruim”, aponta Pereira.
“Humanamente impossível”
Quando o prazo dos 45 dias não é atendido, o requerente pode entrar com um mandado de segurança. Para isso, precisa de um advogado. Uma vez impetrado um mandado, a Justiça passa a analisar o motivo do não cumprimento do prazo. Na prática, ao utilizar o remédio jurídico para ver sua solicitação atendida após o tempo definido por lei, o requerente acaba por transferir ao Judiciário a responsabilidade de resolver um problema que o INSS não conseguiu. “Com o tempo, o balcão está mudando de lugar”, analisa o presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PR.
No ano passado, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou uma ação civil pública contra o INSS com objetivo de garantir agendamento e análise dos benefícios em prazo razoável e a garantia de atendimento adequado aos idosos. Como muitos não têm acesso à internet ou familiaridade com um sistema online, a ação visava também garantir a eles atendimento presencial.
A petição citava uma audiência administrativa realizada com a gerência executiva do INSS em Curitiba em janeiro de 2018 em que ficaram claros problemas no atendimento a idosos e demora na análise dos benefícios. “Os servidores do INSS que desempenham as atribuições de análise de concessão de benefícios têm número considerável de requerimentos pendentes de análise, sendo, por evidente, humanamente impossível desempenhar suas atribuições de modo a concluir todo o trabalho pendente”, registra o documento.
Na ação, a DPU anexou informações sobre um requerimento de aposentadoria por idade feito em Curitiba em outubro de 2016 cuja análise levou mais de oito meses. Em outra solicitação, de aposentadoria por tempo de contribuição feita em Mandirituba, no interior do Paraná, em setembro do mesmo ano, a autarquia demorou mais de 11 meses para dar o retorno da análise. Em ambos os casos, o benefício foi concedido.
Decisão do juiz federal Ed Lyra Leal de 27 de março passado determinou que o INSS tem 60 dias para apresentar estudo de abrangência nacional sobre os prazos de tramitação envolvendo atos de agendamento, requerimento e apreciação.
O DPU solicitou também que o INSS não faça a convocação de servidores para participar dos programas de revisão de benefício – conhecidos como “pente fino” – enquanto não conseguir comprovar que conta com pessoal para fazer o serviço normal em tempo razoável.
A OAB-PR faz reuniões constantes com a DPU e com a gerência executiva do INSS em Curitiba. Para Pereira, se não houvesse essa relação, na tentativa de encontrar alternativas para tentar melhorar o atendimento e o andamento dos processos, o problema poderia ser pior. “A gente ainda não está conseguindo impedir [os problemas]. Os esforços são válidos, mas não resolutivos. Se continuar do jeito que está, com aposentadorias [de servidores], falta de contratação e de concurso público, é fechamento [de agências] e paralisação”, vislumbra Pereira.
O que diz o INSS
Por e-mail, o INSS informou que a otimização dos canais de acesso ao sistema, incluindo o INSS Digital (Meu INSS) e os acordos de cooperação técnica (ACTs) com prefeituras e entidades de classe fez aumentar a procura de segurados pelos benefícios.
Para agilizar o processo de envio da demanda, o instituto informa que lançou mão de forças-tarefas na análise de processos em tempo integral, e que elas “têm contribuído fortemente para reduzir o estoque de requerimentos pendentes de análise”. E cita que em muitos casos, as pendências estão relacionadas a falta de documentos dos segurados.
“Por outro lado, o INSS trabalha com quadro limitado de servidores para atender às demandas dos segurados. Por isso, outros procedimentos vêm sendo adotados para agilizar o atendimento, tais como a concessão automática de benefícios e a instituição de um programa de bonificação por análise de benefício (previsto na MP 871) que, por enquanto, aguarda autorização orçamentária para que possa ser executado. Os primeiros benefícios que serão analisados dentro do programa serão inclusive os de salário-maternidade", afirma a autarquia.
"Em outra frente, o INSS tem buscado estabelecer uma comunicação eficiente com os cartórios para agilizar o processo de análise dos requerimentos de concessão do salário-maternidade. Para isso, a autarquia busca firmar parcerias e acordos com os cartórios que permitam agilizar o compartilhamento de informações entre os diversos órgãos públicos em tempo real", conclui a nota.