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O balanço da política externa deste ano do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é bastante negativo. O mandatário propôs intermediar negociações de paz na Ucrânia e em Israel e foi ignorado; não assumiu o papel de líder dos países em desenvolvimento em assuntos de clima e meio ambiente; não fechou o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, e não conseguiu impedir a expansão dos Brics. O petista ainda deu declarações polêmicas que envergonharam o país diante de líderes estrangeiros.
Após os 12 anos em que esteve afastado do Executivo, Lula retornou ao Planalto com a expectativa de se tornar um líder internacional e por isso abusou das viagens a outros países no primeiro ano do atual mandato. Considerado o presidente brasileiro que mais viajou para o exterior na história do país, Lula fez 15 viagens internacionais neste ano e passou mais de dois meses fora do Brasil — 62 dias mais especificamente. Neste período, passou por 24 países e se encontrou com dezenas de chefes de Estado e de governo.
A intenção do mandatário era “recuperar” a imagem do Brasil no exterior, pauta que, na opinião dele, não foi prioridade durante os governos de Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. Lula, contudo, não entregou o que se propôs. Para especialistas ouvidos pela reportagem, a política externa do petista acumula mais erros que acertos.
"Eu acho que a política externa do Lula tem acertos e erros. A meu ver ela é imperfeita e tem problemas porque foi inteiramente entregue a uma única visão do mundo. Que é a visão do Lula, do PT, do Celso Amorim, que é essa visão do Sul Global, que inclui a China e busca uma ordem internacional diferente e alegadamente melhor do que a atual”, avalia o ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e diplomata de carreira Rubens Ricupero.
Desde que assumiu este terceiro mandato, o presidente tem adotado o discurso de que o "Brasil voltou" para o cenário internacional, mas ao mesmo tempo comete falhas que afastam essa possibilidade de projeção internacional. Entre elas, o coordenador de análise política da BMJ Consultores Associados, Lucas Fernandes, destaca a forma como o mandatário brasileiro se posicionou sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia, na Europa.
Segundo ele, as declarações de Lula demonstraram incapacidade de articular apoiadores e se destacar em negociações internacionais. “Lula adotou uma postura muito branda em relação à Rússia e isso sabotou qualquer possibilidade e qualquer ambição que ele tinha de se tornar um intermediador nessa crise. Esse foi um fato em que Lula foi derrotado”, avalia. Para analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, as declarações do petista sobre a guerra em curso na Europa foram um divisor de águas para sua imagem no exterior.
"A guerra [entre Rússia e Ucrânia] foi um grande teste [para o presidente brasileiro] em que ele mostrou que não tinha clareza [diplomática]. Tanto que uma das primeiras declarações de Lula foi a de que tanto um como o outro tinham a mesma culpa. E isso é um absurdo, porque é você colocar o país agredido e o agressor no mesmo patamar. Entre Israel e Hamas ele teve um posicionamento parecido. Isso evidencia como ele tem dificuldade de escolher claramente um lado", pontua Rubens Ricupero, que também foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na Itália.
Veja a retrospectiva geopolítica de 2023 no YouTube da Gazeta do Povo.
Acenos à Rússia deixaram Lula em “maus lençóis” com o Ocidente
Quando assumiu seu terceiro mandato, a guerra entre Rússia e Ucrânia estava prestes a fazer um ano. Em busca de protagonismo e com sede por se lançar como um líder internacional, Lula declarou o desejo de intermediar o conflito. Em uma dessas tentativas, afirmou que gostaria de formar uma espécie de "clube da paz" com outros países para chegar a uma solução pacífica para a guerra.
O brasileiro, contudo, não tinha um plano para a formação do tal clube, conforme afirmou para uma TV chinesa, e então passou a dar declarações controversas sobre o conflito. Em diversas oportunidades ele relativizou a guerra e chegou a dizer que a Ucrânia seria tão culpada pelo conflito quanto a Rússia. A guerra, entretanto, teve início depois que Vladimir Putin ordenou que tropas russas invadissem a Ucrânia.
"Fico vendo o presidente da Ucrânia na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin. Ele é tão responsável quanto o Putin. Porque numa guerra não tem apenas um culpado", disse Lula à revista Times em maio.
Para a Ucrânia e outras nações ocidentais, como os Estados Unidos e países europeus, o Brasil vem sendo influenciado pela narrativa russa — seja pela parceria econômica ou pela aproximação ideológica. O impasse de Lula com o Ocidente ficou ainda mais claro durante a cúpula do Novo Pacto Financeiro Global, que aconteceu em junho deste ano na França, quando os países da América Latina não concordaram em assinar uma declaração conjunta que condenava a Rússia pelos ataques à Ucrânia. O Brasil foi um dos países que não concordou com tal termo no acordo.
No xadrez geopolítico em que China e Estados Unidos disputam poder, os acenos de Lula a Pequim e a Moscou o colocaram em uma posição desconfortável com o Washington. À frente das principais discussões do mundo, os Estados Unidos e os países europeus fecharam as portas para uma possível participação de Lula em discussões internacionais. Em algumas de suas afirmações, o brasileiro criticou o apoio desses países à Ucrânia e disse que o G7 (grupo dos sete países democráticos mais desenvolvidos do mundo) eram os responsáveis pelo conflito entre Rússia e Ucrânia.
"Ele [Lula] tem uma certa confusão no uso dos conceitos. Ele não é motivado por uma visão de defesa intransigente de direitos humanos ou de democracia, por exemplo. Ele faz isso [toma partido sobre as guerras] sempre ligado à ideologia, a partir de uma visão anticapitalista, antiocidental e anti-Estados Unidos”, afirma Ricupero.
Para os analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a forma como Lula se posicionou sobre o conflito na Europa também favoreceu sua exclusão das negociações da guerra entre Hamas e Israel na Faixa de Gaza. O país tentou intermediar, quando ocupava a presidência no Conselho de Segurança da ONU, uma resolução sobre o conflito que foi vetada pelos Estados Unidos.
Por outro lado, o presidente norte-americano Joe Biden e líderes de outros países do Oriente Médio, como Catar e Egito, foram os principais atores das negociações no conflito. Os acordos negociados pelos Estados Unidos possibilitaram a entrada de ajuda humanitária no enclave, e o Egito abriu sua fronteira para saída de estrangeiros da Faixa de Gaza. Apesar da tentativa, o Brasil não se sentou à mesa com esses agentes para negociar sobre o conflito.
Lula perdeu queda de braço contra expansão do bloco Brics
Nem mesmo a aproximação do Brasil com a Rússia e com a China rendeu a Lula uma posição de destaque no Sul Global — designação utilizada para os países em desenvolvimento que, em sua maioria, estão localizados no hemisfério sul do globo. O líder chinês Xi Jinping e o presidente da Índia, Narendra Modi, protagonizaram a disputa pela liderança do Sul Global.
Lula queria evitar que o Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, abrisse as portas para a entrada de mais países, uma vez que o Brasil teria mais relevância em um bloco mais restrito.
“O Brasil não desempenha grande influência no grupo. Não somos uma potência econômica e nem uma influência política. Hoje, nos Brics, estamos no mesmo patamar que a África do Sul, e a inclusão de mais países ao grupo pode deixar o Brasil em uma posição ainda mais desconfortável”, disse José Augusto de Castro, presidente da Associação do Comércio Exterior do Brasil (AEB), à Gazeta do Povo anteriormente.
Mas a China, país que domina o bloco e desde 2022 tenta dar a ele um caráter antiamericano, trabalhou para expandir o número de participantes para poder exercer influência sobre mais países. Esse processo foi acelerado depois que os EUA e a China iniciaram uma guerra comercial em 2018 e quando a Rússia foi isolada por sanções ocidentais em 2022 por invadir a Ucrânia.
O petista acabou sucumbindo à influência chinesa nos Brics e não teve força política para impedir a expansão do bloco. Em agosto, o grupo anunciou que mais seis países foram convidados a se juntar: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã.
Contradições afastaram Lula da liderança ambiental
Após a frustrada tentativa de intervir em conflitos para ganhar o status de líder internacional, Lula passou a mirar no discurso ambientalista para além das fronteiras do Brasil para tentar alcançar uma posição de liderança no mundo.
Na concepção dos especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, o petista acertou ao aproximar o Brasil das discussões ambientais, já que o país possui os recursos para ser um porta-voz sobre o tema. Mas a aproximação com a Rússia já havia comprometido as chances de Lula de ser reconhecido pelo Ocidente como uma voz internacional relevante.
Além disso, ao passo em que aposta na estratégia de se destacar na área da defesa do meio ambiente, o mandatário brasileiro se cerca de contradições, sobretudo no que diz respeito à exploração de petróleo. Isso ficou evidente nos últimos meses, quando Lula se declarou favorável a uma solicitação da Petrobras ao Ibama para explorar petróleo na costa próxima à Amazônia, em uma região chamada de Margem Equatorial, que fica no mar a 180 quilômetros da costa do Amapá.
A área que a petroleira quer explorar é banhada pela Foz do Rio Amazonas e, por isso, ativistas ambientais têm se posicionado contra a exploração. O Ibama chegou a negar o primeiro pedido da empresa alegando que a Petrobras não havia apresentado garantias suficientes de que conseguiria proteger a fauna da região caso houvesse vazamento de óleo ou outros incidentes.
Além disso, ambientalistas têm tentado promover a ideia de frear a exploração de combustíveis fósseis. De acordo com eles, a utilização e exploração desses recursos contribuem para o aquecimento global, emissão de gases que causam o efeito estufa e para a mudança climática — todas as pautas que Lula tem abraçado em discursos nos últimos meses.
No início de dezembro, o petista apostou alto em sua participação na Convenção das Nações Unidas sobre o Clima (COP 28), realizada nos Emirados Árabes Unidos, como o espaço para se lançar como um grande líder das temáticas ambientais. Mas o que chamou mesmo a atenção foi o anúncio de que o Brasil ingressaria na Opep+ (Organização dos Países Produtores de Petróleo + aliados), contradizendo, mais uma vez, o discurso ambientalista.
"Nota-se que Lula tem sido extremamente contraditório em tudo que ele tem falado. A meu ver, ele não está preocupado com o meio ambiente ou com conflitos internacionais, ele está preocupado com sua imagem”, pontua o cientista político e diretor de Projetos do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais, Marcelo Suano.
A aproximação de Lula com Rússia e China também contribuiu para ele não ter ascendido com o tema. Especialistas apontam que ao se associar com esses países, o petista se isola ainda mais do Ocidente, onde estão os principais apoiadores e investidores das políticas ambientais no mundo. São eles que também doam para o Fundo Amazônia, por exemplo.
Enquanto Lula se esforçava para ocupar o espaço de líder do meio ambiente, a primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley, foi quem teve grande destaque com essa agenda. Junto com Emmanuel Macron, presidente da França, e um dos principais porta-vozes da causa ambiental, ela se destacou nos debates sobre o tema durante todo o ano, especialmente na cúpula do Novo Pacto Financeiro Global, que reuniu países europeus, caribenhos e da América Latina no segundo semestre.
Mottley, inclusive, tem sido cotada para ocupar o posto de António Guterres como secretária-geral das Nações Unidas, que fica vaga em 2026. As pautas da premiê de Barbados vão de encontro com as de Lula, mas o petista não possui o mesmo protagonismo que Mottley, que não se indispôs com o Ocidente.
Lula não fechou acordo com Mercosul
Apesar das altas expectativas do governo e de todo esforço de Lula para ratificar o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, o petista não conseguiu realizar esse feito. Entre junho e dezembro, o Brasil assumiu a presidência temporária do bloco sul-americano e tornou prioridade a conclusão do tratado.
À frente do Mercosul, Lula discutiu o acordo com diversos líderes europeus, inclusive com Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e disse que bateria o martelo sobre a ratificação do tratado. Entretanto, para que fosse de fato concluído, todos os quatro países do Mercosul e os 27 da União Europeia precisariam aprovar os termos acordados. O pacto entre os dois blocos, porém, nunca foi consenso para os países europeus.
Na tentativa de reverter tal situação, Lula passou a negociar diretamente com os países que haviam se posicionado contra o acordo, sobretudo com a França.
O presidente francês, Emmanuel Macron, não só se posicionou contra como foi responsável pela introdução nas negociações de um novo documento: a side letter que voltou a discutir uma série de termos previstos no texto do acordo, colocando mais exigências de preservação ambiental para os países da América do Sul. A ideia era que o Mercosul cumprisse exigências de preservação ambiental que já estão em vigor na Europa para que houvesse igualdade de competição entre as empresas privadas.
Mas nem mesmo a aproximação entre Lula e Macron foi suficiente para fazer o francês mudar de ideia. Nas últimas semanas, o governo passou a adotar uma postura positiva sobre a conclusão do acordo. Na primeira semana de dezembro, o Brasil convidou os países-membros do Mercosul para um encontro no Rio de Janeiro e a expectativa era de que fosse anunciado a conclusão do acordo com a União Europeia no evento.
O anúncio, contudo, não foi feito, pois Lula não conseguiu desenrolar o acordo com o bloco europeu. Na análise de Ricupero, a grande problemática do acordo entre os dois blocos está na União Europeia. “É um acordo difícil de ser fechado e a União Europeia dificilmente vai abrir mão do seu protecionismo para que ele seja concluído. Acho que Lula pode ter articulado bem, mas os europeus ainda não estão dispostos a concluir este acordo, especialmente a França de Macron”, avalia.
Lula acertou ao fortalecer política externa brasileira?
Os analistas Lucas Fernandes e Rubens Ricupero avaliam que a estratégia de Lula em priorizar a agenda internacional do Brasil foi uma iniciativa positiva, apesar dos diversos erros cometidos pelo brasileiro no curso de sua política externa. “Lula e o PT viam a necessidade de retomar essa agenda internacional e, nesse sentido, pode-se dizer que ele foi bem-sucedido. Lula foi recebido por presidentes de várias frentes e esteve presente em diversas discussões internacionais”, avalia o analista político da BMJ Lucas Fernandes.
O especialista relembra ainda que a escolha dos destinos das primeiras viagens internacionais do petista, em que ele foi para a Argentina e depois para o Uruguai, foi uma estratégia de posicionamento. “A viagem para a Argentina é muito simbólica porque o país é um grande parceiro econômico do Brasil e havia uma grande aproximação entre Lula e o presidente Alberto Fernández”, avalia. Já na viagem ao Uruguai, Lula visitou Luis Lacalle Pou, presidente de direita e visto como seu opositor na América do Sul.
Para o analista da BMJ, a escolha dos dois primeiros destinos de Lula foi uma forma de representar o desejo do petista de criar uma imagem para o Brasil: de um país articulador e que mantém diálogos com diferentes esferas e políticas. Rubens Ricupero ainda ressalta que o perfil diplomático de Lula favorece para as discussões internacionais em que o Brasil está envolto.
O ex-ministro pontua que o mandatário precisa abandonar posturas atreladas à ideologia petista para conseguir o desejado destaque internacional sem se comprometer com declarações controversas. “Negativo é obedecer a essa visão do mundo do PT, que era muito forte nos dois primeiros governos Lula e no governo da Dilma. É a ideia de que o Brasil pertence ao Sul Global e que luta por uma outra ordem internacional”, diz.
Para Ricupero, é essa visão de mundo que compromete os esforços diplomáticos de Lula e o coloca em uma posição desfavorecida. “Além de não ser uma visão majoritária no país, ela contraria a tendência da própria economia e do que as pessoas acham que o Brasil deveria ser como sistema econômico”, pontua.
Lula parece ter admitido tacitamente que sua política internacional fracassou. Para o próximo ano, ele afirmou que deve focar em um roteiro de viagens nacionais e visitar obras pelo Brasil, mas não deve desistir completamente de ocupar espaço nas discussões globais sobre o meio ambiente.