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Depois de ter sido reconduzido em agosto para mais dois anos à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR), Augusto Aras adotou posições que acenderam o alerta sobre um possível distanciamento em relação ao governo do presidente Jair Bolsonaro – que o considera um aliado.
Observadores consultados pela Gazeta do Povo avaliam que essas manifestações do procurador-geral, que destoam dos interesses do governo ou do presidente, não significam um rompimento. Aliados de Augusto Aras dizem que ele simplesmente mostra que é independente, como se espera de um procurador-geral da República. Mas críticos afirmam que ele ainda sonha em chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF) e que seu comportamento mostra que o PGR tenta se "equilibrar" entre Bolsonaro e os ministros da Corte.
O episódio mais recente, de contrariedade em relação ao Planalto, ocorreu na última segunda-feira (13), quando Aras pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender a medida provisória (MP), recém-lançada pelo presidente, que dificultava que as redes sociais removessem conteúdos de suas plataformas. Na quarta-feira (15), a ministra do STF Rosa Weber, relatora de diversas ações contra a MP, atendeu ao pedido de Aras e suspendeu a norma – que também perdeu a validade ao ter sido devolvida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
Terras indígenas, BC, privatização: outros "distanciamentos" de Aras
Além da suspensão da MP das redes sociais, Aras também se opôs, nas últimas semanas, a outras questões envolvendo o governo.
No início deste mês, o procurador-geral da República se posicionou no STF contra a adoção do marco temporal como critério decisivo para a demarcação de terras indígenas. Disse que os índios têm direito a territórios desde que se comprove, na avaliação caso a caso, de que os indígenas tradicionalmente ocuparam as terras que pleiteiam, mesmo que eles não estivessem assentados nelas antes da promulgação da Constituição de 1988. O marco temporal é a tese que propõe que os índios só podem reivindicar terras nas quais estavam até a promulgação da Constituição e das quais tenham sido expulsos posteriormente.
O governo sempre defendeu o critério do marco temporal como forma de dar segurança jurídica a agricultores que ocupam terras em disputa. Mas Aras discordou. "Muitos índios não estavam na posse das suas terras exatamente porque haviam sido expulsos em disputas possessórias e conflitos agrários", ressaltou o procurador-geral no julgamento, em argumento contra o marco temporal.
Outra contrariedade em relação às posições do governo foi manifestada em agosto, no julgamento sobre a autonomia do Banco Central (BC). Partidos de oposição questionaram no STF a forma como o projeto tramitou no Congresso: apesar de Bolsonaro ter proposto mandatos fixos para os diretores do BC, foi aprovada proposta muito semelhante, mas oriunda do Senado.
Aras considerou que isso era motivo para declarar a lei inconstitucional, porque só o presidente tem a prerrogativa de propor alterações em órgãos do Executivo. Mas a tese de Aras acabou rejeitada pela maioria dos ministros, que mantiveram a lei. Se o argumento do procurador tivesse vencido, o Banco Central não teria mais a autonomia defendida pelo governo, pois a lei teria sido declarada inconstitucional.
Em julho, Aras já havia se posicionado, ao menos parcialmente, contra outra prioridade do Planalto: a desestatização total dos Correios. Nesse caso, também em julgamento no STF, o procurador-geral se opôs à privatização de uma parte dos serviços da estatal, de entrega de correspondências dentro do país. Trata-se de uma atividade deficitária, que é compensada pela entrega de encomendas.
Para Aras, somente a entrega de encomendas (e não de cartas) poderia ser repassada à iniciativa privada. Segundo ele, a entrega de correspondências deveria ser custeada com dinheiro público, se preciso. Mas não houve choque direto com o governo, porque a proposta mantinha o serviço postal como atividade estatal, e só possibilitava a entrada das empresas nesse segmento.
Outro "distanciamento" da PGR em relação a Bolsonaro se deu na área penal. No início deste mês, o braço-direito de Aras no combate ao crime, a subprocuradora Lindôra Araujo, pediu a prisão de apoiadores do presidente, argumentando que eles incitavam a população à invasão do STF e do Congresso em 7 de setembro. Mas, em agosto, Aras havia se manifestado contra a prisão do presidente do PTB, Roberto Jefferson, determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.
Presidente de associação de procuradores não vê rompimento com Bolsonaro
Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta não vê, em nenhum desses atos, um rompimento de Augusto Aras com Bolsonaro.
Para ele, no caso mais recente, da MP das redes sociais, Aras se manifestou contra por ser algo que já estava consolidado. "Era tão flagrantemente inconstitucional, no aspecto formal – não tinha urgência e tratava de temas que uma MP não podia alcançar – que até a ministra Rosa Weber, que é mais contida, suspendeu, assim como o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que a devolveu [ao Planalto]", afirma Cazetta.
Em relação ao marco temporal, ele diz que a posição de Aras foi "dúbia", porque ele admite a possibilidade de uso do critério e só o afasta nas situações em que houve expulsão dos índios. "É como se dissesse: 'Pode ser, quem sabe, talvez, dependendo do contexto'. A posição da 6.ª Câmara do MPF [Ministério Público Federal] é totalmente contra o marco temporal. Aras fez uma leitura de meio-termo, analisando cada caso concreto. Certamente é menos favorável ao que o governo quer, mas não despreza a ideia."
Quanto ao BC e aos Correios, Cazetta diz que não eram temas tão essenciais. "Está dentro da margem de divergência esperada", afirma Cazetta. No primeiro caso, o governo saiu vitorioso. E nada indica que perderá quando o STF julgar o segundo.
Já em relação aos inquéritos contra apoiadores de Bolsonaro, Cazzeta considera que as recentes manifestações favoráveis a prisões e buscas e apreensões expressam uma tentativa da PGR de não se indispor com o STF – alvo de ameaças – e não uma ruptura com o presidente.
O que dizem os aliados e os críticos de Aras
Apoiadores de Aras, porém, dizem que nenhuma dessas posições está ligada a interesses políticos junto ao presidente. A subprocuradora aposentada Delza Curvello Rocha avalia que o próprio questionamento sobre a atuação de Aras em relação ao Executivo parte, sobretudo, de colegas que nunca aceitaram sua escolha para o cargo.
"O procurador-geral não tem que estar 'alinhado ou não'. Ele tem toda a independência", diz Delza. Para ela, uma parcela considerável da classe age contra Aras porque quer atingir Bolsonaro. "Estão desesperados porque a lista tríplice é a única forma de chegarem ao poder", afirma. A lista a que ela se refere são os três nomes mais votados dentre os procuradores que eram enviados para o presidente escolher um para ser o novo PGR (Bolsonaro rompeu com essa prática e escolher Aras, que não havia sido eleito pela categoria).
Subprocuradores críticos de Aras dizem, por outro lado, que ele ainda sonha em chegar ao STF, caso o ex-advogado-geral da União André Mendonça, indicado por Bolsonaro, tenha seu nome rejeitado ou desista da indicação. Por isso, afirmam que Aras tenta se equilibrar entre o presidente e os ministros do STF – com quem terá de conviver se um dia chegar ao Supremo.
"Só haverá inflexão se ele passar a investigar o presidente e os filhos", diz um integrante da PGR. Para essa ala de procuradores, um teste importante ocorrerá quando ele receber o relatório final da CPI da Covid, que trará uma série de acusações contra Bolsonaro. Só o procurador-geral pode pedir a investigação formal sobre o presidente.