O procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu nesta quinta-feira (2) que o chamado "marco temporal" não deve ser usado como critério para demarcação de terras indígenas naqueles casos em que os índios que ocupavam tradicionalmente um território foram expulsos.
O marco temporal é um dos requisitos para o reconhecimento oficial da posse de uma terra por um tribo e consiste em verificar se, em 5 de outubro de 1988, ela já ocupava aquela área. Produtores rurais que disputam propriedades com indígenas pressionam o Supremo Tribunal Federal para garantir somente essas terras aos indígenas, o que limitaria as demarcações.
O julgamento sobre a validade do marco temporal começou na semana passada e ocupou as últimas duas sessões do plenário nesta semana, dedicadas apenas às manifestações orais das partes, de entidades de defesa dos indígenas e também representativas do agro. Após a manifestação de Aras, nesta quinta, ele foi suspenso, e será retomado na próxima quarta-feira (8), com o voto do relator, ministro Edson Fachin.
Nesta quarta (1º), a Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu a manutenção do marco temporal, reproduzindo a posição do governo de Jair Bolsonaro, que diz que o fim do critério traria insegurança jurídica, reduziria a área produtiva do país, prejudicando exportações e a produção de alimentos.
Último a se manifestar na sessão desta quinta, o procurador-geral argumentou que a demarcação — dentro do qual o marco temporal é verificado — não é o ato que constitui o direito do índio de ocupar aquela terra. Segundo Aras, ela apenas reconhece e dá segurança jurídica a uma posse já existente, decorrente da ocupação tradicional da tribo sobre determinada região.
"O artigo 231 da Constituição impõe o dever estatal de proteção dos direitos das comunidades indígenas antes mesmo antes da conclusão do processo demarcatório, dada sua natureza declaratória", afirmou no julgamento. Antes, sustentou que o marco temporal deve ser afastado "quando se verifica, de maneira evidente, que já houvera apossamento ilícito das terras dos índios".
"Muitos índios não estavam na posse das suas terras, exatamente porque haviam sido delas expulsos, em disputas possessórias e disputas agrárias. Nesses casos, não haveria mesmo como exigir a ideia do marco temporal, nem seria justo exigir o contato físico com a terra daqueles que foram removidos por invasores e lutaram por seus modos para reconquistá-la, em momento contemporâneo à edição da Constituição de outubro de 1988 [...] É preciso que se diga com clareza: haverá casos em que mesmo não havendo posse por parte dos índios em 5 de outubro de 1988, a terra poderá ser considerada como tradicionalmente ocupada por eles", afirmou.
Ele disse que o reconhecimento daquela terra como indígena, dentro do processo de demarcação, exige a aferição da tradicionalidade da ocupação por meio de estudos antropológicos, cartográficos e ambientais. Essa verificação, acrescentou, deve ser feita de forma distinta para cada caso concreto.
"Quem logrou obter terra indígena antes de outubro de 1988 não recebeu do constituinte. A ordem constitucional antecedente também assegurava posse dos índios sobre suas terras. Da mesma forma, o constituinte não deu aos indígenas um salvo-conduto para ocupar sucessivamente qualquer terra no Brasil, sobretudo as que jamais ocuparam ou de ocupação indígena remotíssima, suplantada pelo processo histórico", afirmou.
No caso concreto em julgamento, em que o estado de Santa Catarina busca a reintegração de posse de parte da reserva biológica do Sassafrás, ocupada por índios da etnia Xokleng, Aras posicionou-se ao lado dos indígenas. Defendeu o acolhimento de um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai) contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que havia garantido a propriedade ao instituto ambiental do estado. Em 2006, o Ministério da Justiça reconheceu que 37.108 hectares na região deveriam ser destinadas à reserva indígena de Ibirama-La Klanõ — trata-se da última etapa antes da homologação da demarcação, feita pelo presidente da República, mas que, no caso dos xoklengs, não foi concretizada.
A decisão a ser tomada pelo STF sobre o marco temporal, porém, terá repercussão geral e será aplicada a todas as terras em disputa por índios e agricultores, principalmente.
Agro x índios
Na sessão desta quinta, manifestaram-se também representantes de produtores rurais. O advogado Rudy Maia Ferraz, da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), disse que o marco temporal "é o único instrumento que traz segurança jurídica, previsibilidade, estabilidade das relações sociais do país".
Argumentou que não é justo exigir de quem compra uma propriedade, para plantar e produzir alimentos, a contratação de laudos antropológicos para saber se ali havia indígenas num passado remoto.
"Não estamos aqui para buscar a extinção dos direitos indígenas, estamos discutindo aqui como implementá-los, se é através da violação do direito de propriedade ou se é por compatibilização dos direitos dos índios com o dos produtores", disse.
Representando comunidades indígenas tradicionais do Maranhão, a advogada Lucimar Ferreira Carvalho defendeu o fim do marco temporal, lembrando a dificuldade que elas tiveram para permanecer em seus territórios antes da Constituição de 1988.
"Os apãnjekra canela foram violentamente massacrados na primeira parte do século 20 por fazendeiros, que se apossaram da sua aldeia e de parte de seu território, e deixaram praticamente apenas mulheres e crianças para se refazerem, enquanto povo, em uma parte do território. Os apãnjekra canela, da terra indígena Porquinhos, afirmam que são raízes daquele lugar, e já moram muito antes de 1988, antes de qualquer lei", narrou.
"Hoje, vivem encurralados, sem poder viver plenamente em seu território tradicional, vendo caças, rios, florestas serem devastados a seu redor, impactando nas duas formas de vida, nos seus rituais, na sua forma de sobrevivência", disse a advogada.
Relator é contra marco temporal
Em seu voto, na semana que vem, Edson Fachin defenderá o fim do marco temporal. Em junho, quando ele levou o assunto para julgamento numa sessão virtual, ele adiantou sua posição.
Em linha com o que defendeu Aras, Fachin considerou que o marco temporal não é um critério válido, porque muitas tribos foram expulsas de territórios que ocupavam e não teriam meios para comprovar que lá estavam mais de três décadas atrás. O "elemento fundamental" para a demarcação, para o ministro, deve ser um laudo antropológico da Funai, que demonstraria ou não a tradicionalidade daquela ocupação.
A garantia de posse de determinada área pelos índios também exigiria, segundo o ministro, que ela seja habitada em "caráter permanente" e utilizada para suas "atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recurso ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural". De posse daquela terra, eles teriam o "usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes".
A demarcação poderia ser feita mesmo contra registros civis que davam a posse a particulares ou a entes estatais — sem direito a indenização, exceto para benfeitorias feitas de boa-fé — e poderia até mesmo redimensionar uma área, de modo a estender aos índios sua posse, desde que configurada a ocupação tradicional.
Governo e Congresso podem reagir
Se, no julgamento, prevalecer a tese de Fachin, o governo e o Congresso poderão reagir com novas normas que restabeleçam o marco temporal como parâmetro fundamental da demarcação.
No último sábado (28), Bolsonaro disse que vai tomar uma decisão contrária que "interessa ao povo brasileiro". Segundo ele, o fim do critério poderia dar aos índios, além dos 14% do território brasileiro já demarcado, uma área equivalente a toda a região Sul do país.
"Seria um caos para o Brasil e também uma grande perda para o mundo. Essas terras que hoje são produtivas poderiam deixar de ser produtivas. E outras reservas, pela combinação geográfica das mesmas, poderiam inviabilizar outras áreas produtivas", afirmou o presidente, numa entrevista ao Canal Rural, no último dia 20.
A Câmara, por sua vez, poderá avançar com uma proposta, já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que transforma o marco temporal em lei — atualmente, ele é aplicado nos processos de demarcação a partir de um parecer da AGU, que orienta a Funai, o Ministério da Justiça e também a Presidência da República, órgãos responsáveis pelo reconhecimento de uma terra indígena.
A pressão sobre os ministros, não só do agro, mas também dos índios, bem como a perspectiva de que os outros Poderes revertam uma decisão do STF, pode levar um deles a pedir vista e suspender o julgamento por tempo indefinido.
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