Ouça este conteúdo
O Brasil tem capacidades militares superiores às da Venezuela. Mas a falta sistemática de investimentos em equipamentos militares e a fraca vontade política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vêm dificultando a defesa da fronteira de Roraima - território que corre o risco de ser violado por tropas venezuelanas se o líder Nicolás Maduro realmente decidir invadir a Guiana. A crise atual evidencia a vulnerabilidade militar do Brasil como um todo, causada especialmente por falta de verbas e de infraestrutura.
Após manobras militares americanas no espaço aéreo da Guiana na quinta-feira (7), Maduro baixou o tom e anunciou no último sábado (9) que a Venezuela participará de uma reunião com a Guiana na próxima quinta-feira (14). O encontro para discutir a crise será em São Vicente e Granadinas, no Caribe, país que ocupa a presidência do bloco de esquerda Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).
Por outro lado, ao anunciar a reunião, o ditador venezuelano disse que não vai desistir de anexar 70% das terras do país vizinho, cujo litoral pode ter quase tanto petróleo quando o pré-sal. A possibilidade da Venezuela violar o território de Roraima em uma possível campanha militar massiva passou a ser debatida seriamente no Brasil há cerca de uma semana, quando a população venezuelana alegadamente votou em um referendo decidindo pela anexação de parte do território da Guiana.
Inicialmente o governo Lula anunciou o envio de 16 carros blindados 4x4, Guaicuru, como resposta à possibilidade de tropas venezuelanas usarem estradas de Roraima para avançar para Essequibo, na Guiana. Eles são veículos usados para reconhecimento e transporte de tropas leves de infantaria, mas foram retratados como "tanques" por segmentos da imprensa e por políticos.
Também foram enviados cerca de 60 militares para um posto avançado de fronteira em Pacaraima, que é reponsável por dar o alarme em caso de ameaça ao Brasil.
"Isso é o tipo de resposta de quem tem certeza de que não vai ter guerra. Isso é para publicidade, não é para combate", disse Eduardo Brick, pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa da Universidade Federal Fluminense.
O senador Hiran Gonçalves (PP-RR) solicitou o envio de mais tropas para Boa Vista, mas não influiu na quantidade de tropas disponibilizadas pelo governo Lula. "Estive na fronteira, visitei Guiana e Venezuela e a situação parece estar sob controle. Esperamos que a situação não evolua para um conflito", disse à reportagem.
A Gazeta do Povo apurou que mesmo antes dos anúncios do governo, o Exército já vinha monitorando a possibilidade de conflito e por isso adiantou para este mês o envio de reforços à região que só aconteceria em dois anos.
O Exército está reforçando a 1ª Brigada de Infantaria de Selva, uma unidade que tem 2 mil combatentes baseados em Boa Vista (RR) e Manaus (AM) e é responsável por defender a fronteira de Roraima.
O plano é transformar o Esquadrão de Cavalaria (unidade de carros de combate) da Brigada em um Regimento. Isso aumentará em três vezes o seu efetivo, para cerca de 450 combatentes. Blindados de reconhecimento Cascavel modernizados e armados com canhões de 90 mm também estão sendo enviados para integrar a unidade militar. Tecnicamente, esse blindado também não é um "tanque de batalha". Em linhas gerais, os tanques pesados têm blindagem mais resistente e operam com canhões de 120 mm.
Segundo Brick, o envio dos blindados Cascavel e Guaicuru tem um efeito de dissuasão. Mas eles seriam insuficientes para impedir o uso de território brasileiro pela Venezuela para uma invasão de larga escala na Guiana. "É, na verdade, uma tentativa do Brasil mostrar que não deixou a porta aberta, de colocar uma dificuldade a mais para as tropas venezuelanas", disse.
Investimento em Defesa abaixo da média mundial e falta de estradas criam vulnerabilidades
Analistas e militares ouvidos pela reportagem dizem acreditar que a possibilidade de conflito em Essequibo é baixa, pois Maduro estaria ameaçando invadir a Guiana mais para criar um inimigo externo e ganhar capital político para as eleições do ano que vem.
Mas a crise atual na fronteira mostra que uma guerra pode acontecer muito próximo do Brasil e que o país não teria condições de enfrentar uma "situação mais séria", segundo Eduardo Brick.
A fronteira terrestre do Brasil tem mais de 17 mil quilômetros. Por isso seria inviável posicionar tropas ao longo de toda a sua extensão, mesmo diante do fato do Brasil ser a 12ª maior força militar do mundo, de acordo com o ranking feito pelo think tank Global Fire Power.
Segundo o pesquisador Brick, falta ao Brasil a infraestrutura de estradas e ferrovias para levar rapidamente equipamento militar, comida, combustível e suprimentos para regiões de fronteira que podem ser palco de conflitos.
Mesmo com os novos aviões de transporte militar KC-390 e com os helicópteros da Força Aérea (171 ao todo, segundo o Global Firepower), apenas tropas leves de infantaria, como a Brigada Paraquedista do Rio de Janeiro ou a Brigada de Forças Especiais de Goiânia, conseguiriam chegar rapidamente por via aérea ao local do conflito. Mas isso não é suficiente para sustentar uma guerra de alta intensidade.
Para se ter uma ideia, os blindados Cascavel que vão reforçar a 1ª Brigada de Infantaria de Selva devem demorar de 20 a 30 dias para serem levados do Rio Grande do Sul e Mato Grosso para Roraima. Não se sabe quantos veículos estão sendo transferidos. Estima-se que ao todo o Brasil tenha cerca de 460 carros de combate de diversos tipos espalhados em bases em todo o território.
A falta de infraestrutura de estradas e ferrovias não dificulta apenas a defesa do país, mas impede a expansão agrícola e freia o crescimento como um todo. Na região amazônica obras de grande porte são deliberadamente atrasadas com o argumento de preservação do meio ambiente.
Além disso, o investimento na área de Defesa feito pelo Brasil está muito abaixo da média mundial. Os comandantes das Forças Armadas estiveram no Congresso duas vezes neste ano para apontar que o Brasil investe 1,1% de seu Produto Interno Bruto em Defesa, quando a média mundial é de 2%. Países como Estados Unidos e Colômbia investem 3,5%.
O comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, afirmou em maio que 40% dos navios da esquadra podem ser sucateados até 2028 por falta de investimentos. Como exemplo, o almirante afirmou que a Marinha precisa gastar R$ 74 milhões por ano com munições (que são produtos perecíveis), mas só recebeu R$ 6,8 milhões para esse fim. Os comandantes pediram que ao menos o investimento chegasse a 2% do PIB, mas não foram atendidos.
Além da falta de recursos para navios, na prática o Brasil não possui tanques de guerra modernos (os mais pesados são o alemão Leopard 1 e o americano M60, da década de 1960). A Venezuela também não tem tanques pesados de ultima geração. Caracas possui os soviéticos T-72, da década de 1970, e os franceses AMX-30, da década de 1990. Todos esses veículos são muito vulneráveis a armamento antitanque moderno, como foguetes Javelin e munição de urânio empobrecido.
O Brasil investe agora na aquisição de blindados Centauro II, dos anos 2020. Eles são veículos desenvolvidos na Itália com canhões de 120 mm que têm o objetivo de abater tanques. Os dois primeiros exemplares já foram entregues. O Exército chegou a cogitar o envio deles para Roraima, mas preferiu deslocar para lá os modelos modernizados do Cascavel.
Além disso, as Forças Armadas não tem defesas antiaéreas para médio e longo alcance (dependendo para defender seu espaço apenas de caças Gripen, que são pouco efetivos contra mísseis, por exemplo). A Venezuela tem os sistemas S-300, que vêm se mostrando muito eficazes no contra aviões e mísseis de cruzeiro na guerra da Ucrânia e uma aviação de caça muito mais moderna, com mais de 40 aeronaves Sukhoi, SU-30.
O Exército tenta ainda desenvolver tanto radares como mísseis de cruzeiro, armas fundamentais para a guerra moderna, mas os investimentos do governo federal na base industrial de defesa do país não são suficientes. Para o pesquisador Brick, isso cria outra vulnerabilidade pois muitos tipos de armamentos não são vendidos por outros países.
Sem coordenação estratégica e vontade política para avançar em Defesa, o Brasil aposta que está exposto, no máximo, a conflitos com países igualmente deficientes na área de defesa. Quando a hipótese é uma guerra com um país mais forte, o Brasil aposta em uma estratégia de esconder equipamentos militares e travar uma guerra prolongada de guerrilha com o intuito de defesa pós-invasão.
Como seria uma invasão da Guiana pela Venezuela?
A Venezuela tem algumas opções para tentar anexar militarmente a região de Essequibo. Uma invasão terrestre com tropas blindadas teria que passar pela parte norte do território de Roraima e se daria por meio de rodovias. Mesmo tanques de guerra não conseguiriam avançar no terreno pelo meio da selva amazônica e não há estradas ligando a Venezuela à Guiana diretamente. O ministro da defesa brasileiro, José Múcio Monteiro, afirmou que o território brasilero é inviolável.
Também é possível que forças especiais venezuelanas se infiltrem aos poucos, em pequenas unidades sem ser notadas, por rios e pela mata, na região de Essequibo. Esses militares assumiriam paulatinamente o controle de governos locais - como a Rússia fez com a Crimeia em 2014.
Outra opção é um desembarque anfíbio de militares da Venezuela a partir de navios de guerra na costa da Guiana. Essa é uma opção de difícil realização pelo tamanho da marinha venezuelana, que teria apenas quatro embarcações de desembarque de tropas, uma fragata e um submarino, e pelo risco implícito dos desembarques anfíbios.
"No cenário mais provável, essa invasão da Venezuela sobre a Guiana seria por via aérea”, afirmou o militar da reserva e analista de estratégia José Eduardo Leal, do think tank Iniciativa Dex. “[A Venezuela] deslocaria aviões, deslocaria helicópteros e não há artilharia antiaérea ou aviões da Guiana que se contraponham à essa ofensiva venezuelana", afirmou.
Segundo ele, a Venezuela pode lançar inicialmente paraquedistas sobre aeroportos da Guiana. Eles tomariam as pistas de pouso e aviões venezuelanos transportando tropas poderiam aterrisar sem sofrer ameaças e desembarcar soldados e equipamentos.
Mas a análise de Leal é que, após a tomada do território, o governo de Maduro teria dificuldade de manter o terreno conquistado e fazer a “manutenção da guerra”. Ou seja, Caracas teria que enviar munições, combustível e suprimentos para as tropas por via terrestre, passando pelo Brasil, ou por via marítima.
Assim, é mais provável que, em caso de ação militar, o território brasileiro não seria violado no início de uma invasão. Mas a Venezuela poderia tentar passar militares e equipamentos pelas estradas de Roraima para levar posteriormente provisões e reforços às suas tropas em Essequibo.
Essas estratégias de invasão podem ser atrapalhadas por ações dos Estados Unidos. Na quinta-feira (7), aeronaves americanas sobrevoaram a Guiana e um sinal de alerta para Maduro. Se Washington decidir empregar suas tropas para impedir a invasão, dificilmente a Venezuela teria êxito em qualquer uma das estratégias. Por outro lado, o governo americano já está envolvido nas guerras na Ucrânia e em Israel e dificilmente teria apetite para um novo conflito.
Venezuela pode invadir Guiana, mas teria dificuldade para manter terreno
De acordo com relatório do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), com 123 mil soldados na ativa, a Venezuela tem um efetivo de militares aproximadamente 36 vezes maior que a Guiana. Estima-se que o país ameaçado teria apenas 3.400 militares a postos. No ranking da Global Fire Power, que elenca as maiores potências militares do mundo, a Guiana sequer é listada. A discrepância entre os dois países também é populacional: enquanto a Venezuela tem mais de 28 milhões de habitantes, a Guiana possui apenas 804 mil, de acordo com levantamento do Banco Mundial realizado em 2021.
A Guiana, na análise de especialistas, não teria qualquer chance de enfrentar sozinha o exército venezuelano em um possível conflito. “Em base de comparação, a Venezuela é um pitbull e a Guiana é um poodle”, afirmou Leal.
Assim, a invasão venezuelana à Guiana é possível, mas a manutenção do território seria uma tarefa muito mais difícil. Segundo o doutor em Relações Internacionais e pesquisador da Universidade de Harvard ,Vitélio Brustolin, a área de Essequibo é composta por uma mata fechada e a força militar de Maduro não teria condições de ocupá-la prolongadamente com sucesso. “É uma extensão de 800 quilômetros de fronteira e que não há estradas”, afirma.
Sem muitos recursos e com uma economia em frangalhos, uma ocupação por longo período de tempo seria pouco factível. "Acredito que uma tomada de território seja possível, mas eu não acredito que a Venezuela consiga manter o território anexado por muito tempo", avalia o cientista político Heni Ozi Cukier.
Brasil tem mais forças militares que a Venezuela
Apesar do investimento em Defesa brasileiro ser sistematicamente baixo e da existência de todos os gargalos de infraestrutura que dificultam o deslocamento de tropas pelo país, o Brasil teria condições de conter uma ação militar da Venezuela para entrar em seu território, segundo analistas.
"A nossa potência militar é infinitamente superior a qualquer outro país latino-americano”, afirmou Leal, do think tank Iniciativa Dex. "Se a Venezuela entrar [em solo brasileiro] ela vai arcar com as consequências. Não tenho dúvidas de que o Brasil tem plena capacidade de se defender de uma eventual ofensiva venezuelana”, afirmou Leal.
De acordo com o ranking da Global Fire Power, a força brasileira está 40 posições à frente da Venezuela no ranking mundial. O país é o mais bem posicionado da América do Sul. O cientista político Heni Cukier afirmou que a identificação político e ideológica de Maduro com o Brasil de Lula pesa para que essa incursão não seja feita.
"Isso sim seria um problema para o governo brasileiro que tem uma proximidade e uma afinidade ideológica com o Maduro. [Um confronto entre Brasil e Venezuela] causaria um problema para o PT e para o Lula absolutamente desnecessário e o Maduro não faria isso", afirmou.
VEJA TAMBÉM:
- Venezuela anuncia reunião com governo da Guiana para discutir disputa territorial em Essequibo
- Futuro em risco: crise gera escassez de professores e deterioração de escolas na Venezuela
- Após Maduro dizer que deseja resolver disputa no “diálogo”, Guiana responde no mesmo tom: “Não nos opomos a conversas”