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Os prejuízos colhidos pelo governo na sessão do Congresso da semana passada, na qual sofreu derrotas em série nas votações de vetos presidenciais, não se devem apenas às falhas da sua articulação política. O alerta mais preocupante para o Palácio do Planalto veio de uma bem-sucedida coordenação das três principais bancadas temáticas da Câmara – agronegócio, segurança pública e evangélica –, todas de viés conservador.
O placar de 317 deputados favoráveis à manutenção de um veto do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à criminalização das notícias falsas em eleições encorajou a oposição a intensificar a sua reação contra a agenda progressista do Planalto, que tem o respaldo do Supremo Tribunal Federal (STF).
Após este e outros trunfos, como a derrubada do veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao fim das saidinhas de presos, com 314 votos na Câmara, os alvos seguintes são endurecer leis sobre drogas e aborto.
O novo protagonismo das bancadas conhecidas pela sigla BBB – de boi (agronegócio), bala (segurança) e Bíblia (evangélica) – partiu do ensaio de sua atuação conjunta, como um só bloco parlamentar. O maior entusiasta da movimentação é o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), líder da minoria no Congresso, que comemorou as ações entabuladas pelos seus respectivos líderes Pedro Lupion (PP-PR), Eli Borges (PL-TO) e Alberto Fraga (PL-DF).
“Ficou combinado que em pautas de costumes, mesmo que o assunto afete só uma frente, as outras serão solidárias”, disse o senador a O Globo.
A maior frente, a ruralista, tem oficialmente 295 deputados e 50 senadores. Em seguida vem a evangélica, com 205 deputados e 26 senadores. Por fim, a da segurança pública reúne 256 deputados, sem representação formal no Senado.
De acordo com seus líderes, sua atuação estava contida desde os episódios do 8 de janeiro de 2023, com forte pressão do judiciário sobre Bolsonaro e seus aliados mais próximos. Os vetos de Lula, contudo, despertaram os parlamentares e favoreceram a união das frentes.
Drogas e aborto são os próximos desafios das bancadas conservadoras
A ofensiva das três frentes conservadoras no Congresso para aprovar ou barrar projetos conforme uma orientação comum começa novo teste esta semana, com foco nas pautas de costumes e de segurança pública, nas quais até mesmo os líderes do governo admitem não terem mais qualquer forma de resistir diante do perfil ideológico do plenário da Câmara.
Desde o ano passado, a oposição na Câmara vem impondo votações marcantes contra o governo, tais como na manutenção do marco temporal das terras indígenas (321) e na continuidade da desoneração da folha salarial (378), com apoio de integrantes do PSD, União Brasil e Republicanos, legendas que integram o ministério de Lula.
A primeira investida das frentes conservadoras após a sessão do Congresso é fazer avançar a proposta de emenda à Constituição (PEC) que criminaliza o porte de drogas, já aprovada pelo Senado. A PEC será analisada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara nesta terça-feira (4).
Outra prioridade é tentar aprovar, ainda nesta semana, o projeto do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) que equipara o aborto ao homicídio quando realizado após a 22ª semana de gravidez com viabilidade fetal.
O PL 1904/2024 foi uma reação à recente decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de suspender uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a assistolia fetal, técnica que usa medicações para parar os batimentos cardíacos do feto, antes de sua retirada do útero. O texto em análise na Câmara acaba ainda com a previsão legal de aborto decorrente de estupro a partir de cinco meses.
Tanto a constitucionalidade do uso de drogas quanto flexibilizações da prática de aborto são temas de julgamentos em curso no plenário da Suprema Corte.
Votações das bancadas temáticas podem viabilizar impeachment de Lula
Para os entusiastas da reação conservadora, a aliança das três bancadas aterroriza Lula, que falhou na tentativa inicial de cooptar essas frentes. O diretor da consultoria política Action, João Henrique Hummel Vieira, que tem experiência em coordenação de bancadas temáticas, admite haver um esforço dos líderes nesse sentido, mas ainda acha difícil que a intenção se viabilize por completo. De toda forma, ele classifica os avanços obtidos de históricos e um importante fator de afirmação da autonomia do Congresso.
Outros analistas lembram que a votação para manter o veto de Bolsonaro evidenciou até o risco de impeachment de Lula, medida radical que requer apoio de 342 deputados, apenas 25 a mais do que o alcançado na manutenção do veto do ex-presidente.
Mesmo com a popularidade em queda, esse risco para o chefe do Executivo ainda é considerado remoto, mas o contexto atual já indica que seu mandato seguirá pressionado pelo Legislativo.
Bolsonaro emerge como coordenador informal das frentes conservadoras
Segundo informações de bastidores, a nova estratégia para as frentes BBB foi possível mediante uma reaproximação entre elas e Jair Bolsonaro, para negociar a manutenção do seu veto a trechos da lei de segurança nacional.
O consultor eleitoral e cientista político Paulo Kramer informa que já há uma expectativa do PL de que o ex-presidente passe a dar "indicações mais claras" sobre votações na Câmara, atuando como um coordenador informal das bancadas conservadoras. Para Flávio Bolsonaro, o Congresso estava formatado para um eventual segundo governo do pai.
Sem base parlamentar que lhe dê sustentação, Lula, por sua vez, viu nas votações dos vetos até integrantes de partidos da esquerda agirem contra o Planalto, pressionados pelas bases eleitorais.
A deputada Maria do Rosário (PT-RS), por exemplo, votou com a maioria contra a saidinha de presos, no papel de pré-candidata à Prefeitura de Porto Alegre. Igual atitude teve a deputada Tabata Amaral (PSB-SP), que quer ser prefeita de São Paulo.
O deputado Alberto Fraga (PL-DF), líder da frente da segurança pública, cita como exemplo da articulação o apoio ostensivo da bancada evangélica ao projeto aprovado no mesmo dia da sessão do Congresso e que flexibilizou o decreto de Lula para acesso a armas.
Segundo ele, apesar da composição partidária heterogênea do grupo parlamentar, as questões ideológicas e de costumes se sobrepõe à disputa entre governo e oposição.
Os conservadores conseguiram também restringir o empenho de recursos do orçamento federal em temas como o financiamento do Movimento Sem-Terra, abortos e cirurgias de mudança de sexo em crianças.
Como reação tardia, as derrotas provocaram mudanças na articulação política de Lula. O presidente da República começou na segunda-feira (3) uma rotina de encontros semanais com líderes do governo no Congresso visando evitar novos dissabores.
Para os oposicionistas próximos a Bolsonaro, porém, nem mesmo o empenho pessoal de Lula nas negociações com o Legislativo vai mudar o cenário favorável aos conservadores.
Orientações de líderes conservadores superam a influência dos partidos
Em sua atuação padrão, as frentes conservadoras se articulam em torno de um tema e reúnem parlamentares de legendas as mais diversas. Com frequência, deputados e senadores priorizam interesses temáticos em detrimento das orientações partidárias, atendendo desejos das suas bases eleitorais. A frente evangélica, por exemplo, reúne católicos e espíritas, unidos basicamente pelo combate ao aborto.
A dificuldade do PT com as bancadas "BBB" remonta ao governo de Dilma Rousseff, quando ruralistas e evangélicos ampliaram a sua participação no Congresso. Juntas, têm peso suficiente para emplacar pautas legislativas, barganhar com o governo e até para mudar a Constituição.
Pautas como redução da maioridade penal, revogação do Estatuto do Desarmamento, criação do Estatuto da Família, inclusão do aborto entre os crimes hediondos, entre outras, foram propostas desde esse período.
Curiosamente, o rótulo BBB foi usado pela primeira vez pela deputada Erika Kokay (PT-DF) em reunião da bancada do PT na Câmara no início de 2015. Ele se difundiu rapidamente entre parlamentares de esquerda e na imprensa. As frentes tiveram influência importante no afastamento da então presidente e deram apoio ao presidente eleito em 2018, Jair Bolsonaro.