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O ex-presidente Jair Bolsonaro e o deputado Alexandre Ramagem.
O ex-presidente Jair Bolsonaro e o deputado Alexandre Ramagem.| Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

O áudio de uma reunião ocorrida em agosto de 2020 entre o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e advogadas do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) não é suficiente para imputar crimes a eles. É a visão de criminalistas que analisaram a gravação, feita pelo deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), na época diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e que participou da conversa, junto com o general Augusto Heleno, então chefe do gabinete de Segurança Institucional (GSI).

Na reunião, as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach aventavam a possibilidade de o GSI obter junto ao Serpro (estatal de processamento de dados do governo) a identificação de acessos ocultos e supostamente irregulares, dentro da Receita Federal, a dados bancários de Flávio. Esses dados foram o ponto de partida para a investigação criminal que apurou a suposta “rachadinha” (desvio de salário de funcionários) de quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro.

A defesa buscava provar que a fiscalização da Receita era ilegal e, com isso, apontar nulidades que pudessem derrubar o inquérito criminal. Na reunião, Ramagem argumentou que não seria viável nem adequado obter os dados por meio do GSI e do sistema de inteligência do governo. Bolsonaro então sugeriu que as advogadas conversassem com os chefes da Receita e do Serpro, para que os acessos fossem investigados internamente.

Em entrevistas concedidas à imprensa nesta terça (16), Juliana Bierrenbach, uma das advogadas que participou da reunião e que já deixou a defesa de Flávio, afirmou que o objetivo da reunião era levar a Bolsonaro a suspeita de que havia uma organização criminosa dentro da Receita para perseguir pessoas politicamente. “Eu fui levar ao conhecimento das autoridades a existência de uma organização criminosa. Não se foi pedir nenhum tipo de benefício”, disse à CNN.

Juliana ressaltou que não houve, após a reunião, nenhum desdobramento de sua denúncia. “Não virou nada a reunião. O que fizemos foi uma formalização dessa situação ao Serpro e à Receita. Mas não teve nenhum desdobramento”.

Para Fabio Tavares Sobreira, professor de Direito Constitucional, a sugestão, por si só, não configura um crime. “Imaginar outras hipóteses é permitido, mas não afirmar que houve a prática de algum crime, porque não houve. No direito penal não se punem sugestões, pensamentos ou atos imaginários, como se extrai dessa investigação”, diz.

Sobreira, no entanto, cita alguns crimes possíveis, caso se comprove que Bolsonaro tenha atuado diretamente para obter provas em favor do filho. O tráfico de influência, com pena de 2 a 5 anos de prisão, se caracteriza quando uma autoridade usa seu poder para influenciar atos de funcionários públicos visando benefício próprio ou de terceiros.

Outro crime, mais grave, o de obstrução de Justiça, com pena de 3 a 8 anos, é quando há intenção e ação deliberada de atrapalhar investigações em andamento sobre irregularidades. Por fim, o crime de advocacia administrativa, com pena leve, de 1 a 3 meses e multa, se concretiza quando um funcionário público patrocina, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública.

“Todavia, é importante destacar: tudo isso são ilações, hipóteses imaginárias, que sequer se extrai, ainda que timidamente dos autos. Ninguém pode ser punido por hipóteses”, diz Sobreira.

Visão semelhante tem o procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo César Dario Mariano, especialista em direito penal e professor.

“No direito penal, só se pune alguém a partir da fase executória do delito. Se você pensa alguma coisa, idealiza alguma coisa, está na fase de cogitação. Se você prepara, por exemplo, um roubo, aluga um carro para isso, isso também é um nada jurídico no direito penal. Exceto em situações específicas, em que a preparação em si é um crime, como associação criminosa, em que pessoas se reúnem para cometer crimes, não importa se eles aconteçam ou não”, explica.

Ele também menciona a possibilidade de corrupção ativa, caso se comprovasse que Bolsonaro ofereceu a algum funcionário vantagem indevida para ajudar o filho. Se algum funcionário aceitasse, incorreria em corrupção passiva. “Mas parece que não houve nada disso, nenhum pedido, nenhuma influência. Se ficou apenas nisso, ele não conversou com ninguém, simplesmente falou o que poderia ser feito, não tem crime nenhum”, completa.

Para incriminar Bolsonaro, portanto, a investigação teria de avançar e descobrir sua atuação direta, junto à Receita e ao Serpro, para beneficiar Flávio Bolsonaro.

Gravação pode ser contestada como prova para acusar Bolsonaro

Mas, além dessa lacuna, há um possível entrave de ordem processual. Em 2019, o Congresso aprovou, dentro do pacote anticrime, uma regra segundo a qual “a captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação”.

O dispositivo chegou a ser vetado por Bolsonaro, por considerar que a redação poderia impedir que gravações feitas sem conhecimento dos interlocutores fossem usadas para acusar alguém, mas somente para defender. Na justificativa do veto, ox-presidente afirmou que a regra significaria “um retrocesso legislativo no combate ao crime” e contrariava a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que permitia que gravações feitas sem aval do MP e da polícia fossem usadas para comprovar um crime e condenar o ofensor.

O Congresso, no entanto, derrubou o veto e restabeleceu a regra, que permanece válida. A rigor, uma leitura literal da lei tem levado advogados e parte dos juízes a considerar essas provas ilícitas. O argumento é de que a gravação viola a privacidade das pessoas gravadas.

César Dario Mariano discorda desse entendimento, pois considera que o interesse público e o dever estatal de punir criminosos supera o direito à privacidade. Mas a questão ainda divide os ministros do STF – Alexandre de Moraes, destaca ele, é um dos que entende que gravações não podem ser usadas para acusação, somente para defesa.

“Havendo justa causa, para que não haja falta de paridade entre acusação e defesa, pode empregar. Mas não é o que prevalece hoje na jurisprudência. No meu modo de ver, essas gravações poderiam ser empregadas, tanto pela acusação, quanto pela defesa. E para apuração de crimes, sempre há justa causa. Mas isso terá de ser analisado pelos tribunais”, afirma Mariano.

Para Sobreira, não é possível usar a gravação para acusar, nem como ponto de partida para buscar outras provas que pudessem confirmar uma eventual atuação de Bolsonaro em favor de Flávio.

“No direito brasileiro, conforme o art. 5º, LVI, da Constituição Federal, provas obtidas de forma ilícita são inadmissíveis no processo. Isso significa que se uma gravação ambiental for considerada ilícita, qualquer prova derivada dela (provas obtidas a partir da gravação) também pode ser considerada inadmissível, contaminando toda a cadeia probatória. Provas obtidas de forma ilícita e suas derivações são inadmissíveis, podendo contaminar a investigação”, afirma.

Ele acrescenta que a gravação pode até mesmo beneficiar Bolsonaro. “Se Bolsonaro estivesse sendo acusado de um crime e essa gravação mostrasse sua inocência ou justificasse suas ações, poderia ser admitida como prova.”

Até o momento, Alexandre de Moraes, relator da investigação sobre a “Abin paralela” – estrutura que, segundo a PF, foi montada dentro da agência para produzir dossiês contra desafetos e adversários políticos – não determinou diligências para aprofundar a investigação sobre a reunião de Bolsonaro com as advogadas e Ramagem.

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