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Mauro Cid
“Queriam que eu falasse coisa que eu não sei”, disse Mauro Cid a interlocutor. No STF, depois, negou induzimento, mas foi preso em seguida| Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Os áudios em que o tenente-coronel Mauro Cid apontou um possível induzimento de sua colaboração para as investigações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro poderão ser usados pela defesa dos investigados para anular provas e mereceriam uma apuração mais aprofundada, por parte do Ministério Público Federal, sobre a conduta da Polícia Federal no caso. Essa é a visão de criminalistas consultados pela reportagem para entender possíveis consequências das falas do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, reveladas pela revista Veja na semana passada.

Referindo-se a delegados da PF que tomaram seus depoimentos, Mauro Cid disse, nos áudios, que “eles queriam que eu falasse coisa que eu não sei, que não aconteceu” e que “já estão com a narrativa pronta”. “Eles não queriam que eu dissesse a verdade, eles queriam só que eu confirmasse a narrativa deles”, afirmou o tenente-coronel na conversa com um interlocutor. Segundo a Veja, as declarações foram feitas na semana em que ele prestou depoimento à PF.

Cid ainda mencionou uma suposta pressão dos delegados, que teriam lhe afirmado que seus crimes o levariam a penas de 30 anos de prisão, caso não confirmasse a “narrativa”. E também criticou a condução do caso pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. “Ele já tem a sentença dele pronta. Só tá esperando passar um tempo. O momento que ele achar conveniente, denuncia todo mundo, o PGR acata, aceita e ele prende todo mundo”, afirmou o ex-ajudante de ordens.

A colaboração de Mauro Cid alimenta uma série de investigações contra Bolsonaro, envolvendo a falsificação de um cartão de vacina contra a Covid, a disseminação de ofensas e mentiras contra opositores nas redes sociais, a campanha de descrédito das urnas eletrônicas e do processo eleitoral conduzido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a apropriação de presentes valiosos (joias e relógios) dados à Presidência por líderes estrangeiros, o uso do cartão corporativo, e a suposta tentativa de golpe de Estado no fim de 2022 para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Por ordem de Moraes, Cid foi preso na última sexta (22), dia seguinte à publicação dos áudios. Chamado a depor no STF, ele disse que fez apenas um “desabafo”, “num momento ruim” e procurou desmentir o teor das críticas sobre a PF e Moraes. “Ninguém o teria forçado. Eles têm [sic] a tese investigativa e ele tem a versão dela. Muitas vezes as versões eram contrárias. Nunca houve induzimento às respostas. Nenhum membro da Polícia Federal o coagiu a falar algo que não teria acontecido”, afirmou Cid ao juiz auxiliar de Moraes, no gabinete do ministro, confirmando depois que fez a colaboração de “livre e espontânea vontade”.

A voluntariedade é requisito exigido pela lei para uma delação premiada e qualquer sinal de que o colaborador esteja falando sob coação deve ser investigada – caso isso se confirme, as provas colhidas a partir de seus relatos devem ser anuladas. Trata-se da conhecida tese dos “frutos da árvore envenenada”: se, na origem, o procedimento não é idôneo, os resultados também serão necessariamente viciados. Só seriam válidas provas colhidas de forma independente pela PF, não aquelas derivadas da colaboração, caso se confirme a coação.

Nos últimos anos, o STF fixou o entendimento de que o juiz do caso pode reduzir os prêmios pactuados, no momento do acordo, com o Ministério Público ou com a polícia, a depender da eficácia da colaboração e dos resultados alcançados ao final do processo. Numa condição de coação, o colaborador se vê forçado a falar o que querem os investigadores, que buscam resolver o caso da maneira mais eficiente, para não perder os benefícios prometidos a ele.

Recentemente, o ministro Dias Toffoli tem revisto multas pactuadas em acordos de leniência da Odebrecht e da J&F, com base na alegação de que seus executivos teriam sido coagidos por procuradores do Ministério Público Federal, sob ameaça de que seriam presos ou de que as empresas quebrariam se não concordassem em delatar corrupção e pagar as multas propostas.

“A declaração de vontade no acordo de leniência deve ser produto de uma escolha com liberdade. Com efeito, é manifestamente ilegítima, por ausência de justificação constitucional, a adoção de medidas que tenham por finalidade obter a colaboração ou a confissão, a pretexto de sua necessidade para a investigação ou a instrução criminal”, escreveu o ministro na decisão que suspendeu os pagamentos devidos pela Odebrecht.

Especialistas dizem que conduta da PF deveria ser averiguada

Para alguns membros do MPF consultados pela reportagem, a suspeita de que houve coação e induzimento deveria, no mínimo, levar a Procuradoria-Geral da República (PGR), no caso de Cid, a apurar como a PF tem conduzido os interrogatórios. Isso seria importante até para desmentir o colaborador, se fosse o caso, e afastar qualquer mácula sobre a investigação.

O ideal seria verificar vídeos dos interrogatórios, para observar a postura dos policiais – nas delações conduzidas pelo MPF, as gravações dos depoimentos são mantidas e eventualmente divulgadas, mas não se sabe se isso está sendo feito pela PF, muito menos se haverá disponibilização desse material. O depoimento de Mauro Cid, desmentindo o que disse nos áudios, não bastaria; afinal, ele pode ter feito isso também sob temor de perder benefícios.

Para o criminalista Yuri Sahione, sócio do escritório Sahione Pugliesr, uma apuração aprofundada levaria a dois cenários. Se ficasse constatado que houve coação, as provas colhidas a partir da delação seriam inválidas, e a PF teria de coletar outras evidências de forma independente, mas Cid manteria os benefícios do acordo, como a pena máxima de 2 anos de prisão, por exemplo. Mas se ele estivesse mentindo, a PF aproveitaria as provas baseadas na colaboração e Cid perderia os benefícios.

“A PF ou o MPF poderia pedir ao colaborador para abrir o celular e mostrar o contexto do envio daqueles áudios. Como colaborador, ele não tem direito ao sigilo legal, porque é padrão nesses acordos uma renúncia a esses direitos. Seria talvez a melhor maneira de identificar por que ele falou aquilo e verificar o que estava acontecendo”, diz o advogado, com experiência em delações.

Autor de um livro sobre colaboração premiada, o professor e mestre em Direito Penal Eduardo Cabette também entende que a corregedoria da PF deveria apurar a conduta dos policiais, a partir do áudio. Para ele, é natural que, nos depoimentos, policiais fizessem pressão para que Cid falasse tudo que sabia. Mas para ele, o depoimento no STF e sua prisão na sequência já configuram uma pressão indevida, o que deveria levar a uma revisão da delação.

“Se não tinha sido coagido antes, agora foi. O recado é: colabora, se não vai preso. Se ele colaborar de novo, vão soltar. É escancaradamente uma coação. O sujeito desmaiou lá. Se fosse uma situação normal, não teria validade nenhuma”, diz.

Ao contrário do depoimento ao STF, a decisão que determinou a prisão preventiva de Cid não foi divulgada. Foi informado apenas que a medida foi determinada por haver indícios de que teria ocorrido obstrução de Justiça e descumprimento de restrições impostas ao tenente, possivelmente quebra da proibição de não ter contato com outros investigados. Não se sabe, porém, o que exatamente motivou a prisão, uma vez que a decisão permanece sigilosa.

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