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A Câmara dos Deputados aprovou no último dia 17 um projeto de lei que reforma o Código Penal Militar no país. Entre as mais de cem alterações à lei atual, que descreve os crimes e define penas para delitos cometidos por militares, está uma que chamou a atenção de parlamentares apreensivos em relação à atuação das polícias militares (PMs) durante operações. O dispositivo permite que policiais, em função de comando, usem de "meios violentos" sem correr risco de serem acusados de praticar crime. O texto permite ainda que PMs e militares façam "bicos" como segurança particular e descriminaliza críticas de militares e PMs contra o governo. A proposta segue agora para o Senado.
Sobre a ampliação dos meios violentos, o texto do projeto diz que não há crime quando “o militar na função de comando, na iminência de perigo ou grave calamidade, compele os subalternos, por meios violentos, a executar serviços e manobras urgentes, para salvar a unidade ou vidas, ou evitar o desânimo, o terror, a desordem, a rendição, a revolta ou o saque”.
A redação é quase a mesma do atual texto do código, exceto por uma mudança sutil. A lei em vigor, aprovada em 1969, diz que não há crime quando os “meios violentos” são empregados por um comandante de navio, aeronave ou praça de guerra. Ou seja, não há crime quando o ato é praticado por um comandante das Forças Armadas, numa situação de guerra, por exemplo. O texto aprovado pelos deputados estende esse poder a PMs que estejam numa “função de comando”.
Poderia ser aplicado, assim, a um tenente da Polícia Militar que esteja à frente de uma patrulha ou de uma incursão dentro de uma comunidade pobre à procura de suspeitos.
“Isso não pode ser ampliado, permitindo, por exemplo, que, em uma ação do Bope numa determinada favela, as pessoas tenham uma atitude indiscriminada que caracterize abuso de autoridade e não se responsabilizem por isso. Não é bom para a polícia, muito menos para a sociedade”, argumentou, durante a votação, o deputado Daniel Almeida (PCdoB-BA), ao pedir a supressão desse artigo do texto.
Mas, no plenário, por 291 votos a 134, a maioria dos deputados acabou rejeitando a supressão e manteve o texto proposto pelo relator, o deputado General Peternelli (PSL-SP).
Antes da votação, Peternelli defendeu o dispositivo, argumentando que qualquer irregularidade na conduta do policial que estiver no comando daquela ação seria imputada a ele. “Se ele determinar a um subordinado que cometa uma irregularidade e o forçar a isso, também será penalizado. (...) Nós melhoramos o texto, com certeza, e aumentamos a responsabilidade para todos aqueles que estão em função de comando”, disse.
Parte importante dos deputados não se convenceu, principalmente entre aqueles do PT, PDT, PSDB e Psol. “Autorizar que sejam efetivados meios violentos – como tortura, ameaças, enfim, agressões – para o cumprimento de determinada ordem de comando não pode deixar de ser considerado crime. Nós até achamos que posições em situação de calamidade para preservar a vida, sim, mas não a utilização de meios violentos, como aqui está”, disse Erika Kokay (PT-DF).
“Precisamos dar as ferramentas para que os militares desempenhem digna e corretamente a sua missão, a sua tarefa, que não é simples. Ela é, muitas vezes, árdua, pesada, belicosa, perigosa (...). Agora, o que não podemos permitir é o exagero. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. O equilíbrio é que se impõe. E a supressão é exatamente para manter o equilíbrio e não haver exagero no uso dos meios e dessas ferramentas”, afirmou Pompeo De Mattos (PDT-RS).
“O texto praticamente abre um espaço imenso para que o comandante, no momento mais importante da ação policial, tenha em suas prerrogativas a possibilidade de qualquer tipo de erro sem a devida punição, o que é praticamente uma excludente de ilicitude. (...) Queremos um grau ainda maior de responsabilidade de quem comanda as ações. Nós entendemos que a polícia tem preparo para isso. Nós respeitamos a polícia e desejamos que ela continue tendo hierarquia e responsabilidade em suas fardas”, disse Samuel Moreira (PSDB-SP).
A redação aprovada é mais permissiva do que determinou recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) num julgamento relativo às operações policiais em favelas do Rio de Janeiro.
No início de fevereiro, os ministros decidiram que o uso letal da força só se justifica em casos extremos quando, por exemplo, estiverem exauridos todos os demais meios, inclusive os de armas não-letais, se for necessário para proteger a vida ou prevenir um dano sério e ainda se for decorrente de uma ameaça concreta e iminente.
A Corte deu às forças de segurança fluminenses autonomia para examinar, em cada situação concreta, a proporcionalidade no uso da força, mas desde que adotem esses princípios como guias.
O artigo do novo Código Penal Militar ainda poderá ser suprimido no Senado, para onde o projeto já foi enviado. Se essa e outras alterações forem aprovadas, a proposta ainda volta para a Câmara, que tem a palavra final dentro do Congresso. Só depois o projeto vai à sanção ou veto presidencial.
"Bico" de PMs e militares na segurança privada não será crime
Outro ponto que chamou a atenção no texto aprovado é a não criminalização do exercício de segurança privada por militares e PMs. O texto inicial previa que um oficial da ativa que trabalhasse como vigilante particular, de forma autônoma ou vinculado a uma empresa do ramo, poderia pegar uma pena de 2 a 4 anos de reclusão. Por pressão de parlamentares ligados à segurança, o texto acabou retirado.
“Estava criminalizando o ‘bico’ feito pelos oficiais”, resumiu o deputado Capitão Augusto (PL-SP) durante a discussão no plenário. Ele agradeceu ao relator pela retirada porque, segundo ele, isso poderia também punir os praças, de nível inferior na hierarquia e que ganham menos.
“Os policiais não têm condições de dar uma vida digna para os seus familiares e precisam fazer uma atividade extra, um 'bico', para complementar a renda”, afirmou o deputado.
Oficialmente, a criminalização do “bico” foi retirada a pedido do deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG). Ele disse que tal conduta deve ser punida apenas administrativamente, em processos disciplinares internos dentro das próprias instituições militares.
Com base em pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e dados oficiais do IBGE, ele estimou que ao menos 47 mil policiais, bombeiros e guardas municipais fazem segurança privada para complementar a renda. Isso equivale a 6% do total de 687 mil agentes de segurança pública do país.
É mais um ponto que pode mudar no Senado.
Críticas contra o governo deixam de ser crime militar, e outras mudanças
Outro ponto que passou foi a descriminalização de críticas ao governo. O atual texto da lei diz que será punido com detenção de dois meses a um ano o militar que criticar publicamente “ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do governo”. A proposta retira a expressão “ou a qualquer resolução do governo”.
“A Constituição Federal estabelece como direito fundamental a liberdade de manifestação”, justificou o deputado General Peternelli em seu parecer.
O novo Código Penal Militar também fixou uma pena mais grave para o tráfico de drogas cometido por um policial ou membro das Forças Armadas. Hoje, é de no máximo 5 anos de reclusão, bem mais branda que a punição da Lei de Drogas, aplicada a civis, com pena mínima de 5 e máxima de 15 anos de prisão. O texto do novo código eleva a pena do militar para o mesmo patamar.
Além disso, o militar que se apresentar drogado para o serviço poderá pegar prisão de até 5 anos.
Foi inserida também uma regra para punir mais severamente um civil que mata um policial, agente de segurança ou militar no exercício de sua função ou em razão dela. O homicídio será considerado qualificado, com pena maior. O mesmo ocorrerá contra quem assassinar um parente do policial por causa de sua atividade.
Por outro lado, militares e PMs que cometerem crimes hediondos – como estupro, lesão qualificada, sequestro em cárcere privado, abandono e maus-tratos, corrupção passiva e tráfico de influência – também serão punidos por crime militar, com as mesmas penas aplicadas a civis.
Mudanças no excludente de ilicitude voltaram à discussão, mas não passaram
O projeto de lei prevê várias outras mudanças no Código Penal Militar. Inicialmente, o texto também previa, por exemplo, uma ampliação do chamado “excludente de ilicitude”, a situação em que, em legítima defesa, o policial militar ou militar usa da força letal sem ser punido por isso.
Uma ampliação das hipóteses de excludente de ilicitude já havia sido tentada em 2019, pelo governo, no pacote anticrime. Mas a pressão contrária da oposição e de entidades de direitos humanos acabou levando à sua rejeição no Congresso.
Agora, novamente, isso foi tentado, mas descartado na reforma do código – será mantido o texto atual da lei, que restringe a caracterização da legítima defesa. A redação aprovada diz que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
O texto inicialmente proposto, e já rejeitado, dizia que considera-se em legítima defesa o militar que, “em enfrentamento armado ou em risco iminente de enfrentamento armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”; ou o militar que “previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.”
Na prática, seria excluída a exigência de "uso moderado dos meios necessários" e aberta a hipótese de uso da força em situações de "risco iminente de enfrentamento armado", além da permissão expressa de atirar num sequestrador.
Em entrevista recente à Jovem Pan, o relator, deputado General Peternelli, explicou de forma mais concreta a diferença entre o que havia sido proposto e o que ficou. “Alguns interpretam o excludente de ilicitude como se você estivesse atuando em uma área de operações da Polícia Militar ou do Exército, você observa uma pessoa armada e aí já provoca um tiro para abater aquela pessoa. O código aborda muito a legítima defesa, pessoal ou de outrem. Se aquela pessoa armada não estiver gerando uma ameaça à integridade ou de outrem, ele não poderia ser alvejado”, afirmou o parlamentar.
O próprio governo não insistiu na mudança e aceitou manter o texto atual da lei para aplacar a resistência da oposição, que novamente apontou que a alteração seria uma “licença para matar”. Mas nada impede que o Senado altere esse ponto, o que levaria o texto de volta à Câmara.