A bancada do agronegócio trabalha para garantir a votação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que pretende tornar lei a tese sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas. O projeto aguarda a votação de um pedido de urgência para seguir direto para a deliberação no plenário na Câmara dos Deputados.
A intenção desse grupo de parlamentares é aprovar, em breve, ao menos a urgência na Câmara dos Deputados. Se isso ocorrer, advogados que atuam como amicus curiae no julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) poderão pedir aos ministros que aguardem a decisão do Congresso Nacional sobre o tema. A retomada do julgamento, suspenso desde 2021, foi anunciada em abril pela presidente do STF, ministra Rosa Weber, e deve ocorrer no dia 7 de junho.
De acordo com a tese do marco temporal, ficará garantida aos indígenas a posse da terra em que estavam na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, seguindo o que diz o artigo 231 da Carta Magna. Em contrapartida, eles não terão direito às terras que ocuparam ou invadiram depois de 5 de outubro de 1988.
O STF havia ratificado essa interpretação em 2009, no julgamento sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. Naquela oportunidade, a Corte decidiu em favor dos indígenas e contra arrozeiros que chegaram à região nos anos 90 – depois da promulgação da Constituição. Naquele julgamento, o entendimento que prevaleceu foi o de que a data de 5 de outubro de 1988 era crucial para a definição da posse da terra.
No começo de abril, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), afirmou ao canal Agro+ que tinha o compromisso do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de pautar a proposta assim que um requerimento de urgência fosse apresentado. O requerimento, de autoria do deputado André Fufuca (PP-MA), líder do partido, foi apresentado na última semana de abril.
Relator do PL 490/2007 na Câmara dos Deputados, o deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA) disse que Lira tem a intenção de aprovar a proposta. Embora ainda não haja uma data prevista para a votação, a FPA articula a inclusão da proposta na pauta das próximas semanas. Na visão de Lupion, ao colocar na lei o entendimento sobre o marco temporal, o julgamento do STF ficará sem propósito.
Juristas e advogados contrários à tese do marco temporal contestam esse entendimento e são críticos ao PL 490. Em nota técnica, a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) avalia que a proposta busca inviabilizar demarcações e abrir terras indígenas para grandes empreendimentos econômicos como agronegócio, mineração e construção de hidrelétricas, entre outras medidas.
Além de enumerar um grande conjunto de decisões do STF que vão no sentido contrário ao proposto no PL 490, a nota técnica aponta que a discussão sobre os direitos territoriais indígenas ainda está em aberto no STF.
Relator do marco temporal na Câmara afirma que não cabe ao STF legislar
Em entrevista coletiva na sede da FPA, o deputado Arthur Maia reafirmou que o presidente da Câmara se comprometeu a colocar o projeto em votação. “Se não o fizermos, estaremos mais uma vez abrindo mão das nossas prerrogativas, enquanto Parlamento, para que o Supremo [Tribunal Federal] legisle em nosso lugar. Isso não é razoável. Portanto, eu espero que o presidente da Câmara faça prevalecer as prerrogativas do Congresso Nacional e, de fato, coloque isso [o PL 490] em votação o quanto antes”, disse o deputado.
Questionado sobre a possibilidade de aprovação da matéria, Maia disse não ter dúvidas de que há maioria favorável ao texto e destacou que o marco temporal é inegociável. “Eu sou um daqueles que defende que o processo legislativo é sempre um processo de negociação. Agora, uma negociação que possa excluir o marco temporal, não é negociação, é matar o projeto. Retirar o marco temporal é inegociável”, disse.
De acordo com Maia e Lupion, as bancadas do União Brasil e do Progressistas manifestaram apoio quase que unânime pela aprovação do projeto.
Para o agronegócio, o PL 490 resolve o marco temporal
Tramitando no Congresso Nacional desde 2007, o PL 490, originalmente pretendia alterar apenas o Estatuto do Índio, propondo que as terras indígenas fossem demarcadas por lei. Sendo assim, os atos administrativos relacionados ao processo de demarcação seguiriam sendo competência da Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai), mas passariam a ser analisados também pelo Congresso Nacional.
A justificativa é de que a própria Constituição prevê que cabe ao Congresso “dispor sobre todas as matérias de competência da União” e confere à União a competência para demarcar as terras indígenas.
No entanto, o substitutivo ao PL 490, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) com a relatoria de Maia, pretende regulamentar o artigo 231 da Constituição, dispondo sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas.
Sendo assim, no entendimento da FPA, se o texto for aprovado, vai reafirmar a tese do marco temporal previsto na Constituição e o entendimento do STF com relação às 19 condicionantes para demarcação de terras indígenas. Além disso, dará mais transparência ao processo demarcatório.
Esse entendimento também foi tema da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000 que foi debatida no Congresso Nacional durante quase 23 anos, até ser arquivada no começo deste ano.
A PEC 215 pretendia incluir dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Previa também a ratificação das demarcações já homologadas, além de estabelecer que os critérios e procedimentos de demarcação seriam regulamentados por lei.
O advogado, ex-deputado federal e ex-ministro da Justiça Osmar Serraglio foi relator da PEC 215. Para ele, o texto do substitutivo ao PL 490 resolve a questão da demarcação de terras indígenas no Brasil ao reproduzir o entendimento já dado pelo STF. “O projeto de lei reproduz jurisprudência do próprio STF. O objetivo da lei é exatamente evitar que a cada mudança de um ministro, isso resulte em nova definição, instabilizando o direito à propriedade. Quem definiu o marco temporal como sendo 5 de outubro de 1988 foi o Plenário do Supremo – e não uma Turma. O Código de Processo Civil, que é de 2015, no seu artigo 926, determina a regra: “Os tribunais devem uniformizar as jurisprudências e mantê-la estável, íntegra e coerente”. – Essa disposição será letra morta se houver mudança de interpretação”, disse Serraglio.
Cimi aponta que argumentos para lei sobre marco temporal são “mera falácia”
A intenção de aprovar o PL 490 e “esvaziar” o julgamento sobre o marco temporal é refutada pela assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Para eles, o fato de os ministros determinarem, por unanimidade, a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que discute a demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, do povo Xokleng, em Santa Catarina, evidencia uma contradição. A repercussão geral significa que o julgamento no STF servirá de diretriz para os demais processos envolvendo demarcação de terras indígenas em todo o país.
“O Supremo nunca fixou uma tese ou pacificou a matéria indígena, tanto é verdade que foi conhecida a sua repercussão geral. Até uma definição pela Corte, os argumentos usados pelo relator do PL 490 e apensos são mera falácia, carecendo de viabilidade”, aponta a nota técnica emitida pelo Cimi.
“Não há que prosperar o referido projeto de lei por vício de inconstitucionalidade. Ainda que assim fosse, teria, necessariamente, de aguardar a definição da Suprema Corte quanto à análise final do RE 1017365”, avalia a Assessoria Jurídica do Cimi.
Indígenas e agricultores buscam solução para conflitos do marco temporal
Enquanto o caso não é resolvido no STF ou no Congresso Nacional, indígenas e agricultores seguem sem saber como e quando terão suas terras demarcadas ou segurança jurídica para continuar produzindo e vivendo onde estão.
Indígenas do povo Xokleng afirmam estar constantemente em Brasília para lutar por seus direitos e garantir a derrubada da tese do marco temporal. “Nos últimos anos, a gente está quase todo mês em Brasília lutando pelos nossos parentes. O governo do nosso estado [Santa Catarina] está tentando negociar com a gente. Nos ofereceram uma proposta para pegar uma terra em outro lugar. A ideia deles [estado de Santa Catarina] era que o julgamento fosse suspendido. Mas nós não estamos lutando apenas pelo povo Xokleng, estamos lutando pelos parentes do país inteiro, e por isso não aceitamos”, explicou o cacique da Terra Indígena (TI) Ibirama Laklãnõ, Tucum Xokleng, durante o Acampamento Terra Livre (ATL 2023), que foi realizado no mês passado em Brasília.
Nicolas Nascimento, advogado e assessor jurídico do Cimi, afirma que, além da formação das comunidades indígenas do Brasil e sociedade em geral sobre o tema, a entidade também atua nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, atrelado à representação judicial da Comunidade Indígena Xokleng.
“Buscamos a aplicação dos artigos 231 e 232 da Constituição em sua integralidade e, em decorrência disso, a consolidação da Tese do Indigenato em detrimento do Marco Temporal. Simplificando, a tese que argumentamos indica que a ocupação das comunidades indígenas no Brasil se deu muito antes do início da colonização por Portugal e, portanto, seu direito sobre as terras é anterior a qualquer Constituição ou ordem jurídica importada da Europa. Estabelecer, hoje, que os povos indígenas precisem comprovar a posse ou disputa da terra na data da promulgação da atual Constituição é negar todos os séculos de genocídio sofridos por eles”, afirma o advogado do Cimi.
Em contrapartida, agricultores do interior de Santa Catarina, especialmente dos municípios de Cunha Porã e Saudades também estão se mobilizando. Por meio das Câmaras de Vereadores e das prefeituras, eles realizaram uma audiência pública para tentar garantir que a tese do marco temporal seja mantida.
A vereadora Tatiane Henicka, de Cunha Porã, é uma das autoras do requerimento da audiência pública. Ela é agricultora e filha de agricultores que podem perder suas terras caso a Terra Indígena Guarani de Araça'í seja demarcada. “As 175 famílias que vivem aqui geram um movimento econômico de cerca de R$ 45 milhões por ano. Mas vivem em total insegurança há quase 23 anos, desde que os índios foram vistos na região”, disse a vereadora de Cunha Porã, enfatizando os impactos econômicos e sociais caso o marco temporal seja derrubado.
A Procuradoria-Geral de Santa Catarina também tem atuado no caso do marco temporal. O procurador-geral, Márcio Luiz Fogaça Vicari, afirmou que o órgão tem solicitado audiências com os ministros do STF para entregar memoriais com a posição do estado sobre o caso. “Na nossa ótica, a jurisprudência do Supremo deve ser mantida. Eu me refiro ao caso da Raposa Serra do Sol. [...] A ministra Carmen Lúcia disse [em voto proferido] que o caso da Raposa Serra do Sol foi um esforço enorme que o Supremo fez para chegar em uma solução média e colocar um fim, pacificando a questão e dando um marco definitivo de interpretação. Espero que ela continue com a mesma posição que ela já expressou em voto”, afirmou Vicari.
Durante o I Seminário dos Povos Originários no Congresso Nacional, ocorrido em abril, a professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Roberta Amanajás afirmou que a Constituição de 1988 não atribui um marco para reconhecer o direito territorial. “O que ela reconhece é o direito ao território como originário, e que compete hoje ao Estado brasileiro reconhecer. É um procedimento meramente administrativo. E esse procedimento já foi considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no caso da terra indígena Raposa Serra do Sol”, explicou.
Posição do governo sobre o marco temporal
Durante o Acampamento Terra Livre (ATL 2023), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não mencionou o marco temporal em seu discurso. No entanto, Lula disse que demarcaria “o maior número de terras possível” e levantou uma faixa contra o marco temporal. A faixa foi entregue a Lula por um dos participantes do evento e trazia os dizeres: Juventude Xokleng contra o marco temporal. O ato ocorreu no encerramento do evento e contou com a presença de diversos ministros e autoridades.
"Eu não quero deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de quatro anos. Esse é um compromisso que eu tenho e que eu fiz com vocês antes da campanha", disse Lula.
A Funai, o Ministério dos Povos Indígenas e os indígenas da Juventude Xokleng foram contatados, mas até o fechamento desta matéria não retornaram. O espaço permanece aberto.
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