As tragédias de Brumadinho e Mariana despertaram as autoridades para a precariedade das barragens de mineração no Brasil. Uma em especial, localizada no sul de Minas Gerais, preocupa por abrigar um depósito de lixo radioativo a céu aberto. A barragem na cidade de Caldas contém rejeitos da exploração de urânio, material usado na fabricação de bombas nucleares e também na geração de energia.
A área do tamanho de 100 estádios do Maracanã e que armazena 12,5 mil toneladas de resíduos tem sido alvo de monitoramento frequente do Ministério Público Federal (MPF) e da Indústrias Nucleares do Brasil (INB), órgão responsável pela segurança da estrutura. O MPF e a INB negociam a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para garantir a segurança da barragem.
O depósito é o que restou da primeira mina de urânio do Brasil. A exploração terminou em 1995, mas a região ainda não foi descontaminada. “A barragem tem uma altura máxima de 42 metros, uma extensão de 435 metros e volume total de 2,9 milhões de metros cúbicos”, explica o gerente de descomissionamento de Caldas da INB, Fernando Teixeira.
Segundo o procurador do MPF em Minas Gerais, Lucas de Morais Gualtieri, que acompanha de perto a situação no local, a barragem não oferece risco à população. Ele diz que há poucas famílias na região mais próxima da barragem, e há uma distância considerável entre as residências e o complexo.
“Em contrapartida, o dano ambiental potencial é muito alto. Se trata de um material radioativo. É importante frisar que esse material, urânio, é diferente de outros materiais como o césio, que tem um risco muito maior (de contaminação) pelo contato imediato. Ainda assim traria um dano considerável ao meio ambiente na medida em que próximo da barragem existem diversos corpos hídricos que servem, inclusive, no abastecimento da cidade”, explica.
Falhas na segurança foram identificadas
Em setembro do ano passado, a INB noticiou ao MPF a ocorrência de um “evento inusual” na barragem em Caldas. Um estudo da Universidade Federal de Ouro Preto, encomendado pela INB, mostrou que um sistema da barragem estava comprometido, causando risco de erosão e, consequentemente, de rompimento. “Eles contrataram uma auditoria especializada, que fez uma inspeção na galeria do sistema extravasor e identificou que o sistema estava comprometido porque estavam ocorrendo infiltrações. Em tese, o material depositado dentro da barragem estava infiltrando por dentro dessa tubulação”, explica Gualtieri.
A INB, então, deu início a construção de um novo sistema extravasor para solucionar o problema. A obra ficou pronta no mês passado, segundo João Viçozo, supervisor de proteção radiológica da INB.
“Com essa substituição do sistema extravasor foram dois ganhos. O primeiro ganho é a substituição de uma estrutura que foi diagnosticada com problema. E segundo é que esse novo extravasor é com uma tecnologia melhor do que o extravasor antigo, que era submerso, tinha dificuldade de fazer inspeção. Além de substituir uma estrutura que era antiga e foi diagnosticada com problema, o extravasor novo permite uma inspeção mais fácil um controle melhor”, explica.
“Já levamos perito do MPF ao local e ele nos passou que a estrutura não apresenta nenhuma deformidade relevante, não tem nenhuma erosão, enfim, visualmente ela estaria ok”, explica o procurador do MPF. “Mas a gente sabe que isso não é suficiente para assegurar o nível de certeza necessário se tratando de uma situação de tamanha gravidade”, ressalva.
Teixeira rebate, afirmando que a estrutura é constantemente monitorada pela INB e não apresenta risco iminente de rompimento. “As últimas inspeções de segurança regulares que nós tivemos geraram uma declaração de condição de estabilidade. Ela diz que a estrutura é segura, só não garante a estabilidade da barragem por falta de dados complementares, ou seja, alguns estudos que estavam faltando para garantir a estabilidade. Mas todos os pareceres que têm são de que a barragem é segura, ela não tem nenhuma evidência de trinca, abatimento, que possa vir a representar qualquer tipo de risco”, garante o gerente.
Segundo Gualtieri, a preocupação do MPF é com a falta destes estudos. “Eu não tenho condições técnicas de dizer nem que há motivos [para preocupação] nem que não há. Daí a nossa inquietação”, diz.
Plano de emergência contra lixo radioativo foi entregue em março
Por conta do acordo com o MPF, a INB entregou um plano de emergência para a barragem em março deste ano. Segundo Teixeira, apesar de o documento conter um planejamento para casos de emergência, é focado em medidas preventivas para evitar qualquer tipo de acidente. “O foco é sempre preventivo, sempre atuar antes de qualquer condição crítica na barragem”, explica o gerente de descomissionamento da INB.
Para Viçozo, o plano de emergência é importante para sistematizar ações que possam identificar problemas antes que eles evoluam para uma situação crítica. “Normalmente, quando se fala em plano de emergência o mais comum é a gente pensar na pior situação, que é o rompimento. Mas o plano não é só para uma situação de rompimento, ele também abrange essa parte preventiva”, explica o supervisor.
Segundo o MPF, o plano de emergência entregue pela INB é satisfatório, mas ainda deixa a desejar na questão dos prazos para implementação. “O que ficou faltando é implementação das questões que estão no plano. Por exemplo, o plano prevê que em caso de rompimento vai ser acionada a sirene, mas o sistema de sirene não está instalado”, explica Gualtieri.
O impasse, segundo o procurador, é financeiro. A execução do acordo custará em torno de R$ 15 milhões e a INB foi alvo de contingenciamento de verbas do governo federal. Para tentar resolver o impasse, o MPF oficiou o Ministério da Economia e o Ministério de Minas e Energia.
A INB afirmou à Gazeta do Povo que não está de braços cruzados. “A INB tem colocado custos estimados dessas implementações dentro do orçamento repassado ao governo federal. Estamos caminhando independente dessas questões de contingenciamento”, garante o superintendente de Engenharia, Licenciamento, Projetos e Qualidade, Douglas Antônio Machado.
Águas ácidas: outra preocupação do MPF
A situação de outra barragem do complexo (Águas Claras), que contém água contaminada, é objeto de outro procedimento no MPF. “A principal atividade ali é o tratamento de água, porque nós temos um processo de formação de águas ácidas no local. A água entra em contato com o material que está depositado e provoca reação química. A água se torna ácida”, explica Gualtieri.
Segundo o procurador, o processo de filtragem da água no local não é 100% eficaz. “Esse é o grande problema da barragem de águas claras, é o depósito desse material fruto de uma ineficiência no sistema de tratamento das águas ácidas. Temos procedimento a respeito disso, estamos em tratativas com a INB, mas ainda não temos nenhuma solução concreta para esse problema específico”, explica.
Viçozo garante que a barragem de águas claras não é um problema. “A gente monitora água, cloro, produtos agropecuários e nossos resultados não têm mostrado nenhum problema na qualidade da água que sai da barragem de águas claras. Toda região é monitorada”, garante.
“Além dessas análises da INB, a CNEN também faz análises independentes”, completa Machado. A CNEN é a Comissão Nacional de Energia Nuclear, órgão fiscalizador da barragem de urânio. A comissão é alvo de uma ação judicial do MPF, que busca melhorar os parâmetros de fiscalização.
Descontaminação já teve pontapé inicial, diz INB
Para deixar de representar uma preocupação, a área das barragens de urânio e de águas claras precisam passar por um processo de descomissionamento, ou seja, de descontaminação. “É uma questão bastante mais complexa e muito mais cara”, diz Gualtieri. O processo é demorado – entre 20 e 40 anos – e envolve cifras que podem chegar a R$ 500 milhões, segundo o procurador.
“Se tiver um planejamento baseado em riscos, uma questão programada, esse valor, embora assuste, ao longo do tempo se torna palatável, não é algo absurdo”, garante Gualtieri. “O Estado brasileiro não pode se esconder atrás da cifra monstruosa e tratar isso como desculpa para não fazer nada”, completa.
Viçozo diz que o pontapé inicial para a descontaminação da área já foi dado pela INB, mas ainda são necessárias soluções de engenharia para conter esses materiais de forma definitiva e estudos para definir qual o uso futuro dessa área pós descomissionamento. “É esse trabalho que nós estamos fazendo, já está em andamento há algum tempo”, garante.
O supervisor de proteção radiológica da INB diz que ainda não é possível estimar o custo da descontaminação da área. “Depois da caracterização, vamos ter condições, parâmetros, para chegar a soluções de engenharia que vão conseguir garantir segurança para a população. Só depois que tivermos esses projetos de engenharia, teremos condições de auferir o custo”, explica.
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