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A base ideológica do presidente Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados articula a criação da frente parlamentar conservadora para auxiliá-lo em seu desejo de se reeleger. O sentimento desses aliados no Congresso é que a bancada conservadora pode ajudar na aprovação de projetos da agenda de costumes. A avaliação deles é que, sem atender a essas pautas, a “onda bolsonarista” tende a ser mais contida em 2022.
Encarregada da missão de criar a bancada, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) contabiliza mais de 100 deputados e 30 de senadores que devem integrar o grupo. O mínimo necessário para oficialmente criar a frente parlamentar é um terço dos integrantes da Câmara e do Senado – ou seja, 171 deputados e de 27 senadores. “A meta é conseguir as assinaturas até o fim do ano”, diz, confiante, a parlamentar. Se a frente parlamentar for formalmente criada, Bia Kicis vai presidi-la.
Parlamentares bolsonaristas admitem que o presidente e sua base política precisam honrar algumas das promessas que fizeram para o eleitor conservador, que ainda está órfão de novidades na agenda de costumes.
A indicação de Kassio Nunes Marques ao Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, foi considerada como um erro político de Bolsonaro para a base mais ideológica do presidente. Ligado ao Centrão, Marques tirou a vaga de um possível ministro evangélico.
O cálculo político feito pela base bolsonarista no Congresso é que, em 2021, deputados e o governo precisarão, juntos, unir esforços para aprovar uma agenda conservadora. Bolsonaro precisará indicar ao STF um “ministro terrivelmente evangélico”, como o próprio presidente prometeu. E terá de acenar mais favoravelmente às pautas conservadoras. Para seus aliados no Congresso, a ideia é transformar essas demandas em resultados concretos para colher os frutos em 2022.
Bolsonaristas dizem estar em "dívida" com a pauta conservadora
Bia Kicis reconhece que há uma "dívida" dos legisladores com essa pauta que ajudou a eleger Bolsonaro em 2018. E ressalta que, por isso, vai se empenhar em tirar a bancada conservadora do papel. “[A criação da frente parlamentar] ajuda [eleitoralmente]; ela é muito importante. Primeiro porque, com a criação da frente, vamos identificar todos os parlamentares que são conservadores”, diz a congressista.
Os deputados bolsonaristas sabem, contudo, que só isso não basta. É preciso controlar a agenda do Congresso. Ou seja, ter aliados no comando do Senado e da Câmara. Se Bolsonaro tiver aliados na presidência das duas Casas, conseguir pautar e aprovar projetos conservadores em 2021, não terá obstáculos tão grandes para tentar se reeleger.
O ponto central, portanto, é vencer as eleições internas para a presidência da Câmara e do Senado, marcadas para fevereiro. Os presidentes das duas Casas são responsáveis pela pauta de votações. Rodrigo Maia (DEM-RJ), que comanda a Câmara, por exemplo, sempre se mostrou refratário a colocar em votação projetos da agenda de costumes.
Bia Kicis diz que, dentro do PSL, mais da metade do partido vai apoiar o candidato que for melhor para a governabilidade de Bolsonaro. “Jamais vamos apoiar alguém que seja oposição ao presidente. A outra parte do partido, e aí acredito que seja menos da metade, eu acho que vai depender de algumas conveniências, alguns acertos”, pondera.
De toda forma, a parlamentar considera que só a criação da frente parlamentar conservadora já irá impulsionar a agenda de costumes no Congresso. “Eu diria que a frente ajuda porque o presidente da Casa passa a ser pressionado e fica mais suscetível às pressões”, diz.
Com o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não é diferente. “Há um tempo, eu ouvi o Rodrigo Maia [sendo questionado]: ‘Você pauta muita coisa da esquerda’. E ele falou: ‘Mas só a esquerda me pressiona’. Não é bem assim. Mas, também, não deixa de ser verdade, porque a gente pressiona pouco”, reconhece Bia.
O objetivo, portanto, é que a frente possa elevar a pressão sobre o futuro presidente da Câmara. “O conservador muitas vezes acha que as coisas fluem naturalmente, mas não é assim. Estamos sob ataque o tempo todo. Precisamos reagir e dar um passo além”, diz a deputada. “Não temos só que ficar de zagueiros na Câmara nos defendendo dos projetos da esquerda. Não! Nós temos que pautar. E essa frente vai servir para isso, para pressionar mais. Tem tal projeto e vamos querer pautar. E aí o presidente da Câmara vai pensar: ‘Tem 200 parlamentares me pressionando’. Ele vai ceder”, avalia.
Prioridades da bancada conservadora
A base bolsonarista no Congresso mapeou alguns projetos da agenda conservadora que estão parados e que gostaria de ver aprovados. "Temos uma série de pautas importantíssimas que estão travadas”, diz a deputada.
Bia Kicis destaca os seguintes projetos:
- Estatuto do Nascituro (PL 478/07), que fala do direito dos fetos
- Redução da maioridade penal (PEC 115/15)
- Homeschooling (PL 2401/19), prática de educar crianças e jovens em casa
- Escola sem Partido (PL 7180/14), proposta que, entre outros assuntos, regula o uso do termo “gênero” ou “orientação sexual” em salas de aula
- Ampliação do porte de armas para mais categorias do serviço público (PL 6438/19).
A ampliação do porte de armas é um tema menos consensual na base conservadora. Bia cita como exemplo o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que é contrário. Bia Kicis, contudo, minimiza a contrariedade à pauta, uma vez que explica se tratar de uma frente muito aberta e ampla.
“Nós partilhamos aqueles valores que todos nós defendemos, que é a defesa da vida, o combate à liberação de drogas, uma série de coisas. Alguns assuntos são mais polêmicos. Mas vamos abrir o debate”, diz a deputada. “O que propus ao Girão é que colocássemos o tema para ser debatido. Quem sabe até a gente consegue trazer para o nosso lado pessoas que pensam diferente.”
Bancada conservadora do Congresso, não de Bolsonaro
A criação da bancada conservadora, entretanto, enfrenta alguns obstáculos. Os partidos de esquerda e mesmo alguns deputados da centro-direita tentam, nos bastidores, barrar a articulação. A alegação é de que o governo estaria colocando sua digital e participando ativamente do processo – o que caracterizaria ingerência de um poder no outro. Os ministros Fábio Faria (Comunicações), Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores) tem apoiado a iniciativa.
Bia Kicis rechaça as críticas: “Essa frente conservadora é uma frente eminentemente legislativa. O presidente muitas vezes não pode se envolver com certos assuntos. E certamente o presidente da República é uma pessoa que mantém uma distância bastante republicana do Parlamento. Ele não interfere no Parlamento, diferentemente de outros presidentes”.
A bancada, insiste Bia Kicis, é uma frente do Congresso. “Não é uma frente do Bolsonaro. Nós, que fomos eleitos pelo povo conservador, devemos explicações a nossos eleitores. É uma iniciativa que temos que trabalhar por eles, muito mais do que pelo Bolsonaro, que tem milhões de outros assuntos importantes para se ocupar, como a economia e outra série de pautas”, diz a deputada. “Nós, da frente conservadora, temos que fazer os temas conservadores andarem; é o nosso compromisso.”
O deputado Luis Miranda (DEM-DF), vice-líder do partido na Câmara e integrante da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), é um dos deputados que assinou a favor da criação da bancada e reforça que a articulação de Bia Kicis não tem dedo do governo. "Isso é coisa dela, ela e os 'bolsonaristas' tiveram uma sacada. Não é do Bolsonaro", destaca. Contudo, ele não acredita que a bancada terá a força imaginada pela parlamentar.
"É legal a ideia? É bacana? É, mas a pauta acho que é a mesma da FPE. Praticamente os mesmos membros que vão entrar são da FPE, os evangélicos. Então, o que eu penso? Que a Bia não vai ter grandes resultados com essa bancada. Vejo quase que como uma cópia da FPE, com um nome diferenciado. Porque me diz o evangélico que não defende a família, que não é conservador? Não existe", adverte.
Busca por adesão passa pelo convencimento
Entre os esforços de Bia Kicis para conseguir a assinatura para criar a bancada conservadora está no convencimento e na desmistificação. Segundo ela, por desconhecimento – e até preconceito –, alguns parlamentares titubeiam em assinar o requerimento de criação da frente parlamentar.
Ela usa o exemplo de um parlamentar do Nordeste que é conservador, mas acredita não ser e não gosta de ser associado a esse termo. “Ele me disse: ‘Não, eu não sou conservador. Gosto do progresso’. Eu disse: ‘Mas ser conservador não é ser avesso ao progresso’. E perguntei se ele era a favor do aborto, da liberação de drogas ou da ideologia de gênero nas escolas. Ele se mostrou contrário a tudo e eu respondi: ‘Então, deputado, eu tenho uma notícia para te dar: você é conservador’”, explica. O termo "progressista", por sinal, costuma ser usado para indicar alguém contrário ao conservadorismo.
Para ela, o desconhecimento de alguns acaba gerando o preconceito ao conservadorismo. “Quando a pessoa passa a conhecer e ver que não é aquilo, já vem o ‘eu concordo com você’. É um preconceito fruto de um desconhecimento”, analisa.
Parte do desafio para criar a frente parlamentar, portanto, está em desmistificar o que é ser conservador. “Às vezes, pensam que o nome conservador é avesso ao progresso, ao desenvolvimento, e não é nada disso. O conservador, como eu sempre digo, é uma pessoa normal. Uma pessoa que quer viver a vida normal, ter um trabalho, contribuir para a sociedade, ter os seus filhos. Mas que está sendo atropelado pelo progressismo, que quer passar por cima dos nossos valores.”