A eleição do democrata Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos impõe ao governo do presidente Jair Bolsonaro novos desafios tanto em sua política externa como na interna.
A partir de agora, Bolsonaro fica sem seu mais importante aliado internacional, Donald Trump. E corre o risco de se ver isolado na agenda ambiental, no discurso anti-China e no enfrentamento do globalismo e de governos de esquerda na América Latina.
Além disso, sem Trump e sem a aliança estratégica com os Estados Unidos, Bolsonaro perde um importante elemento do discurso para sua base eleitoral mais fiel.
Como ficam as alianças antiesquerda, antiaborto e pró-Cristã
Embora Biden não seja um socialista, seu perfil não é o mesmo de Trump. E a tendência é de que não haja, da parte da nova administração dos Estados Unidos, um enfrentamento dos governos de esquerda latino-americanos da mesma forma incisiva que havia com o republicano na Casa Branca.
Isso pode deixar o Brasil isolado na América Latina. À exceção do Uruguai, que recentemente elegeu Luis Lacalle Pou, de centro-direita, Argentina e Bolívia elegeram presidentes de esquerda. No Chile, o presidente Sebastián Piñera também é de centro-direita, mas está enfraquecido por protestos que levaram o país a aprovar em plebiscito a convocação de uma assembleia para redigir uma nova Constituição para o país.
Dentro do governo Bolsonaro, espera-se que os Estados Unidos de Biden mantenham, por exemplo, o discurso contrário ao ditador venezuelano Nicolás Maduro e ao avanço da China na América Latina. Mas sem o perfil mais duro de Trump, de falar alto e de "guerrear" por meio de palavras na imprensa. Assim, Bolsonaro perde um importante apoio nessa agenda e no seu discurso.
Outro ponto em que o Brasil tende a ficar isolado é no enfrentamento do que a direita conservadora mundial chama de "globalismo". Os governos de Bolsonaro e Trump, juntamente com países como Polônia e Hungria, firmaram alianças para combater nos foros internacionais o avanço da agenda pró-aborto e anticristã. Diante da agenda do Partido Democrata nos Estados Unidos, é improvável que os Estados Unidos continuem dando a mesma importância que hoje dão a esse grupo – o que o enfraqueceria substancialmente. Isso se os americanos não se retirarem dessas alianças.
Uma eventual desarticulação dessa parceria no cenário internacional também teria impactos internos no Brasil. A agenda antiglobalista é cara ao bolsonarismo. E sem uma atuação mais destacada nesses pontos nos organismos multilaterais, o governo Bolsonaro corre o risco de perder um elemento que anima seu eleitorado.
Como o governo Biden vai influenciar a relação do Brasil com a China
Já a influência dos Estados Unidos de Joe Biden sobre a relação do Brasil com a China é motivo de incertezas. Alguns analistas e interlocutores do governo não acreditam que os Estados Unidos manterão sua política inalterada, pois os chineses são adversários estratégicos dos americanos.
Outros, contudo, acreditam que possa haver alguma mudança, como no caso da disputa pelo 5G. Alguns apostam que Biden vai diminuir a pressão atualmente exercida por Trump contra a a adoção da tecnologia chinesa pelo Brasil.
É quase certo, porém, que o governo americano passará a ter um discurso mais moderado em relação à China. Trump costumava se pronunciar de modo forte e incisivo contra a “China comunista”. Nesse sentido, declarações de Bolsonaro contra os chineses passam a não mais contar com o "respaldo" do presidente americano. Isso pode levar o brasileiro a moderar o discurso antichina para evitar maiores retaliações – o que pode impactar seu eleitorado mais fiel.
Amazônia passa a ser a maior preocupação de Bolsonaro
A pauta ambiental é a que possivelmente vai ter mais discordâncias entre o Brasil de Bolsonaro e os Estados Unidos de Biden – com risco de haver retaliação americana por causa principalmente da política brasileira para a Amazônia.
Biden falou, durante a campanha eleitoral, de “consequências econômicas significativas” caso o Brasil permaneça, do ponto de vista dele, leniente às queimadas e ao desmatamento ilegal. O democrata ofertou US$ 20 bilhões para que o Brasil preserve a Amazônia. Caso contrário, poderia haver retaliações comerciais.
Isso foi recebido como uma afronta por Bolsonaro. Em postagem nas redes sociais, no fim de setembro, o presidente brasileiro afirmou: “a cobiça de alguns países sobre a Amazônia é uma realidade. Contudo, a 'externação' [dessa cobiça] por alguém que disputa o comando de seu país sinaliza claramente abrir mão de uma convivência cordial e profícua [com o Brasil]”, criticou.
A possibilidade de Biden adotar uma política intervencionista na Amazônia não é descartada tanto entre os militares brasileiros como no Itamaraty.
Interlocutores do Itamaraty ouvidos pela Gazeta do Povo relatam que, historicamente, os democratas costumam ter uma postura de mais ingerência que os republicanos – e que a agenda ambiental pode justificar a adoção de retaliações comerciais pelos Estados Unidos ou a criação de entraves para o recém-assinado acordo de livre comércio entre os dois países.
“Os democratas imprimem um histórico imperialismo intervencionista. São mais protecionistas [na economia], até por suas ligações e acordos com os sindicatos. É algo a se observar”, diz um interlocutor do governo.
“Mas dificilmente o deep state [o establishment americano] vai deixar Biden cumprir promessas mais radicais e que possam ameaçar uma boa relação com o Brasil”, diz outro interlocutor.
No governo, aliás, ninguém aposta que os Estados Unidos vão mudar radicalmente a posição em relação ao Brasil, embora possa haver divergência por vezes mais duras. A aposta é que as trocas de afagos entre Trump e Bolsonaro sejam substituídas por um relacionamento mais pragmático entre as duas nações.
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