O embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, foi confirmado no cargo há pouco mais de um mês, depois de atuar por mais de um ano na mesma embaixada como encarregado de negócios (uma espécie de embaixador interino). Dentro de poucas semanas, poderá ter que lidar com um grande desafio: preservar as boas relações entre Brasil e EUA apesar de diferenças ideológicas, em eventual vitória do candidato democrata Joe Biden.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Forster afirma que, nos últimos dois anos, os governos de Jair Bolsonaro e Donald Trump criaram uma “agenda de grande dinamismo, que abarca uma quantidade de iniciativas”. Para boa parte delas, de acordo com o embaixador, não haverá perda de interesse em uma eventual administração Biden. “Agora, o ritmo provavelmente não será o mesmo”, ressalva.
Forster reconhece que alguns membros do Partido Democrata, de Biden, mostram-se bastante contrários ao aprofundamento da relação comercial com o Brasil, mas diz que a embaixada tem tentado “desfazer as percepções equivocadas” em temas como meio ambiente e direitos humanos, para evitar que isso prejudique as relações entre os países.
“O setor privado é amplamente a favor do aprofundamento das relações, e o setor privado, em princípio, não tem partido. Eles estão nos dois partidos ou acima dos dois. Do lado político-partidário, essa é uma agenda muito apoiada pelos republicanos, pelo atual governo, e há certas resistências do lado democrata”, diz Forster.
Para vencer essas resistências em caso de vitória de Biden, o embaixador diz que apostará na via do diálogo. “Falar com os dois lados está no DNA da diplomacia”, afirma ele. “Isso faz parte da nossa tradição. É nossa obrigação fazer isso. A gente não fala com base em simpatias políticas. A gente fala com base em preocupação com a defesa do interesse nacional brasileiro. Só isso que nos interessa.”
Confira a entrevista na íntegra.
Aliança internacional em defesa da vida ficaria incerta com Biden, mas há espaço para diálogo
“Isso é uma agenda que é levada principalmente pelas delegações do Brasil nas Nações Unidas, sobretudo em Genebra, onde está a Comissão de Direitos Humanos. O tema é principalmente deles. Agora, como esta foi uma iniciativa que começou por liderança dos Estados Unidos, tem um componente bilateral também. Acompanhamos isso desde o início.
É uma iniciativa muito importante, porque sinaliza pela primeira vez que países estão vindo para desfazer um mal-entendido, uma ambiguidade que a gente considera não construtiva – como é comum em textos de organismos multilaterais – uma ambiguidade destrutiva, dessa expressão "direitos reprodutivos das mulheres".
Ninguém pode ser contra os direitos reprodutivos das mulheres, contra assistência de saúde para mulheres… É claro que ninguém é contra isso. Mas isso passou a ser usado como uma palavra-código para se referir a um suposto direito ao aborto. É isso que foi condenado pelos países.
Foi uma iniciativa muito bem preparada, porque ela tem vários componentes. Ela afirma o direito das mulheres e o compromisso dos países em proverem toda a assistência médica a gestantes, a mulheres e a meninas, e reafirma que decisões a respeito de aborto e gestação devem ser tomadas por cada país e não por organismos internacionais, e não ser objetos de condições impostas por organismos internacionais a países que, às vezes, precisam de recursos, de auxílio. É uma afirmação da soberania nacional, da inexistência de um direito internacional ao aborto – isso não existe – e, terceiro, o compromisso de manter a assistência médica a mulheres e gestantes.
Tradicionalmente, essa agenda pró-vida era uma agenda bipartidária aqui nos Estados Unidos. Ela não tinha coloração política, estava acima disso. Em anos mais recentes se reduziu a bancada democrata que apoia as iniciativas pró-vida, mas ainda há, não desapareceu.
A gente não sabe que tipo de ênfase esses temas vão ter em um possível governo democrata. O que se sabe é o seguinte: para o Brasil, isso é uma defesa não só da lei brasileira, mas dos valores definidos pela sociedade brasileira, que é uma sociedade democrática e amplamente cristã. Não é algo negociável, esse tipo de valor. Não é algo de que se possa abrir mão por questões de conveniência ou de negociação com outro país. A gente está aberto ao diálogo sobre todas as questões. Estamos prontos a discutir as questões mais complexas, como a preocupação com o meio ambiente, os direitos humanos… Estamos sempre abertos e prontos a discutir para procurar estabelecer os fatos e desfazer percepções equivocadas. Agora, quando isso não é possível, existe um limite no diálogo. Na diplomacia, quando se bate em questões que são fundamentais, a gente, então, concorda em discordar, civilizadamente.”
Preocupação com 5G chinês também ocorreria com Biden
“Aqui nos Estados Unidos eles têm tomado iniciativas restringindo a participação de certas empresas. A preocupação deles aqui é com iniciativas que assegurem a segurança da rede. O Brasil, até certo ponto, partilha desse tipo de preocupação.
O próprio presidente Bolsonaro já falou que a decisão sobre o 5G, o processo de licitação que se espera para o ano que vem, vai ser definida levando em conta todos os elementos que compõem o que é uma equação muito complexa. Tem os aspectos óbvios de inovação tecnológica, os aspectos financeiros, econômicos… Tem também os aspectos de segurança, de dados, de privacidade de usuários, questões de segurança nacional. Estamos falando de infraestrutura de comunicações no país, de questões de segurança jurídica… Tem que levar em conta tudo isso. Não podemos isolar um aspecto e tomar uma decisão que pode comprometer o Brasil.
O importante disso tudo é o seguinte: essa decisão não vai ser tomada levando em conta interesses deste ou daquele país. Vai ser tomada levando em conta os interesses brasileiros, o interesse nacional brasileiro, o futuro da sociedade brasileira. Não se espera uma inflexão nesta preocupação aqui do lado do governo americano caso haja uma mudança depois das eleições.”
A possibilidade do acordo de livre comércio
"Nós não estamos, neste momento, negociando um acordo de livre comércio. O próprio representante comercial americano, perguntado na Câmara, falou que não há nenhuma negociação de livre comércio com o Brasil. O que há, sim, é um grande interesse em aprofundar a relação comercial.
Quando a gente fala em relação comercial, não é só o comércio de exportação e importação – claro que isso também é um componente importante –, mas também a questão dos investimentos bilaterais… Os Estados Unidos são o principal investidor estrangeiro no Brasil historicamente. Ainda hoje é o número 1. Do lado do comércio, é o número 2 – a China passou tem coisa de dez anos –, mas continua sendo o principal destino das nossas exportações de maior valor agregado, de produtos manufaturados… Motores, peças de automóveis, aviões, gasolina…
O que existe é uma constatação – não só de governos, mas sobretudo do setor privado dos dois países – de que a nossa relação está aquém de seu potencial. Meu bom amigo, o embaixador americano [no Brasil] Todd Chapman, tem dito que temos como objetivo dobrar a corrente de comércio Brasil-Estados Unidos em cinco anos. Isso é perfeitamente factível. Esse ano de 2020 é um ano totalmente atípico, por conta da pandemia. Mas, no ano passado, a nossa corrente de comércio ficou em torno de US$ 100 bilhões.
Ora, a corrente de comércio dos Estados Unidos com o México no mesmo ano é alguma coisa em torno de US$ 400 bilhões, quatro, cinco vezes mais. Mesmo com o acordo comercial que eles têm, o Brasil tem um potencial muito maior de relação com os Estados Unidos do que aquilo que vem sendo realizado. Quando a gente fala em um acordo de comércio, nós queremos aprofundar essa relação e buscar realizar plenamente esse potencial. Um acordo de comércio poderia ser uma forma de fazer isso. Vamos ver como as coisas andam daqui para frente.”
Aprofundamento da parceria comercial com o Brasil encontra alguma resistência do lado democrata
"O setor privado é amplamente a favor do aprofundamento das relações, e o setor privado, em princípio, não tem partido. Eles estão nos dois partidos ou acima dos dois. Do lado político-partidário, essa é uma agenda muito apoiada pelos republicanos, pelo atual governo, e há certas resistências do lado democrata.
Houve um grupo de 24 parlamentares, aqui, de uma comissão importante da Câmara – que está sob controle dos democratas –, que fez uma manifestação muito firme, mandaram uma carta para o representante comercial americano, dizendo que não apoiariam um aprofundamento de relações comerciais com o Brasil neste momento, em razão da preocupação sobretudo com questões ambientais, da Amazônia etc., mencionaram direitos humanos, Estado de Direito, etc.
O que nós fazemos diante disso? A primeira coisa é desfazer as percepções equivocadas. A carta não foi dirigida a nós, mas nós respondemos a cada um dos 24 parlamentares enfrentando cada uma das acusações que eles apresentavam na comunicação, procurando desfazer isso.
Quando se fala em ameaça ao Estado de Direito no Brasil, do que nós estamos falando? O Brasil é uma democracia vibrante, aberta, com imprensa mais que vibrante, a sociedade participando de tudo, o pleno funcionamento das instituições. São exageros. As pessoas pegam uma manchete de imprensa e querem distorcer.
A nossa obrigação é desfazer essas percepções. Com a parte de direitos humanos, é a mesma coisa. O Brasil tem um amplo respeito aos direitos humanos, um sistema robusto na própria Constituição Federal e com órgãos importantes no Executivo encarregados de implementar esse regime de proteções, garantias etc. Problemas todos os países têm, pontuais, aqui e ali, mas não é nada sistêmico, nada que justifique esse tipo de alarido.
Também tivemos a questão do meio ambiente, da Amazônia. Aí talvez tenhamos, de fato, alguns desafios importantes a enfrentar. O que nós falamos? Primeira coisa: desfazer os exageros que há a respeito disso. "Ah, a Amazônia está pegando fogo, estão cortando a floresta inteira…" Não, não é isso. Nós procuramos despolitizar essa discussão.
A questão de desmatamento é um problema real que temos que enfrentar com políticas públicas na área de proteção ao meio ambiente. Agora, essa é uma tendência que começou sete anos atrás. Não começou no dia em que o presidente Bolsonaro tomou posse. Querer colar isso a uma administração, a um governo, é um expediente que não vai longe… Os dados mostram que não é verdade.
Ao contrário: o que é diferente no governo Bolsonaro é a intensidade da reação a esses problemas. E aí talvez a gente não tenha sabido vender bem o nosso peixe, porque o que nós fizemos não foi pouco e foi, em vários aspectos, inédito. Invocar a Garantia da Lei e da Ordem para o meio ambiente, isso nunca havia sido feito… Permitir o uso das Forças Armadas. Isso é de uma gravidade enorme. Isso está na Constituição para evitar uma insurreição etc., situações muito excepcionais da vida de um país. E o presidente enfrentou de forma tão dura os crimes ambientais que botou o Exército para fazer isso.
Tudo isso são coisas que a gente está aberto para discutir e reconhecer desafios. No fim do dia, com essas pessoas, parlamentares ou outros interlocutores nossos aqui, que se opõem ao acordo porque o Brasil precisa resolver a questão do meio ambiente, que cria condicionalidades etc., isso é algo que não é muito inteligente, vamos colocar assim, por duas razões.
Primeiro, quando você se afasta de um país, quando você deixa de trabalhar com ele, obviamente ele não está em melhores condições de resolver do que se estivesse trabalhando em cooperação com você. Se o pessoal aqui nos Estados Unidos, democrata ou não, está preocupado com questões ambientais, venha trabalhar com a gente, vamos cooperar, vamos encontrar formas de trazer investimentos importantes, para criar oportunidades de trabalho para quem está na Amazônia, tudo isso…
A segunda questão é o protecionismo. Quando você impõe uma barreira a uma empresa que está exportando algum produto, isso, na verdade, prejudica justamente aquelas empresas que têm condições de cumprir o nosso Código Florestal, que é duríssimo – isso de exigir que se preserve 80% da cobertura vegetal na propriedade e só poder desenvolver 20%, isso não existe em nenhum lugar do mundo, só no Brasil, só na Amazônia especificamente. Eu vou punir essa empresa? É justamente a empresa que tem condições de cumprir esse Código, já tem um CNPJ, pode ser fiscalizada, pode ser multada…
É pouco engenhoso esse tipo de tratamento da questão. Nós preferimos sempre a via do diálogo, da cooperação diplomática para trabalhar juntos."
Embaixada brasileira mantém conversas com os dois lados
"A política interna, a luta política, os embates, a luta entre os partidos, luta de ideias etc., isso é uma coisa. A política externa, a diplomacia, ela se dá num outro plano. Em uma sociedade democrática como é a dos Estados Unidos, que tem um sistema bipartidário, é impensável que um país só se relacione com um partido ou um lado da conversa. Você necessariamente tem que se relacionar com os dois, porque é natural da democracia que eventualmente possa haver alguma alternância no poder, como pode ser que aconteça agora.
Isso de falar com os dois lados está no DNA da diplomacia. Isso começou quando a nossa antiga legação aqui em Washington foi elevada à categoria de embaixada, em 1905. Joaquim Nabuco, nosso primeiro embaixador aqui, já falava com todas as correntes políticas. Isso não é algo que a gente está inventando. Isso faz parte da nossa tradição. É nossa obrigação fazer isso. A gente não fala com base em simpatias políticas. A gente fala com base em preocupação com a defesa do interesse nacional brasileiro. Só isso que nos interessa."
Biden conhece bem o Brasil, garante embaixador
"O vice-presidente Biden, se ele for eleito, talvez será o primeiro presidente americano a ter um conhecimento direto do Brasil antes de tomar posse, antes de ser eleito. O Biden já esteve mais de uma vez no Brasil. Ele teve um papel importante no governo do presidente Obama para desfazer o mal-estar criado em função da questão de espionagem no governo da presidente Dilma Rousseff.
O Brasil, para ele, não é algo novo, não é algo estranho. Ele sabe do peso, da importância estratégica do Brasil. E é claro que isso é algo bom para nós."
E se Trump for reeleito?
"No caso da reeleição do presidente Trump, que de forma alguma está descartada, o que nós vamos fazer é o que nós vínhamos fazendo: continuar essa agenda de grande dinamismo, que abarca uma quantidade de iniciativas… Talvez, na hipótese de uma reeleição do presidente Trump possamos avançar com maior velocidade.
Os interesses não mudam, o peso do Brasil não muda, mas tem coisas que já estão andando que ficam mais fáceis até do ponto de vista burocrático, se você pensar que quando há uma mudança de governo é preciso nomear todo o primeiro escalão, às vezes é necessária aprovação no Congresso. Toma um tempo até que as pessoas estejam assentadas com os seus dossiês e com conhecimento de causa para começar a agir, ao passo que em uma administração que é reeleita há uma continuidade natural, então é mais fácil manter o ritmo.
Em termos de prioridades, o adensamento da relação econômico-comercial está dito. Quem disse foram os presidentes lá na reunião que tiveram em Mar-a-Lago em março último. Essa cooperação na promoção de valores comuns – sobretudo a democracia, o apoio à transição democrática na Venezuela –, isso vai continuar. E isso continuaria no caso de uma vitória democrata, não vejo que isso pudesse mudar. Do ponto de vista estritamente bilateral, essa imensa cooperação que está se abrindo aqui na área de defesa, de segurança, na parte científico-tecnológica, parte de cooperação espacial, mineração… É um mundo de coisas que nós estamos fazendo e vamos continuar a fazer se o presidente Trump for reeleito.
E para boa parte delas não vai haver perda de interesse se mudar a administração. Agora, o ritmo provavelmente não será o mesmo."
Entrada permanente do Brasil na OCDE não ficaria ameaçada
"Eu não espero que haja uma mudança na posição americana em relação a esse tema. Esse é um tema muito importante para o Brasil, porque isso é parte do processo de reforma econômica liderado pelo ministro Paulo Guedes, no governo do presidente Bolsonaro, de modernização da economia brasileira, abertura, desestatização, abertura para o setor privado, para o Brasil ser uma economia de mercado de verdade e crescer e gerar emprego para todo o mundo, como nunca fez. Isso é parte de um esforço muito importante das reformas todas que estão andando no Congresso, tudo isso, não é algo trivial, é realmente muito importante.
Mas também é muito importante, me parece, para a própria OCDE, contar com um país das dimensões do Brasil, um dos maiores países emergentes, uma das dez maiores economias do mundo.
Se você olhar os países que estão fora da OCDE, o Brasil de longe é o que mais já incorporou instrumentos da OCDE. O Brasil está pronto para começar o processo negociador propriamente dito. Eu esperaria, sinceramente, que num possível governo democrata esse apoio fosse mantido, porque há um interesse da organização, um interesse internacional e um interesse estratégico dos Estados Unidos em ter o Brasil como membro pleno da OCDE."
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"A questão dos valores compartilhados é fundamental. Também não vamos colocar todos os países no mesmo saco, há diferenças importantes. Posso dizer que essa questão dos valores compartilhados – defesa da democracia e do Estado de Direito, da economia de mercado – são valores fundamentais que nós compartilhamos e que orientam tudo o que a gente faz no plano bilateral.
Obviamente, quando a gente trabalha junto com relação a terceiros países, esses valores também pesam. Não creio que haveria uma inflexão importante [com a eleição de Biden] nessa área com relação à defesa desses valores, que são valores fundamentais da sociedade americana também."
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